2 - Gato
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O relato a seguir se demonstrou uma prova da sorte da Sra. Lu.

Mesmo em laboratórios, algumas descobertas são feitas por enganos ou pelo acaso; o micro-ondas por uma barra de chocolate próxima a um aparelho militar; o velcro por plantas que grudaram num caçador; o pneu por borracha exposta ao calor… São apenas alguns entre milhares —, então como não aconteceria com uma “pesquisadora”?

Acredito, e espero que aqueles utilizando dessa pesquisa também, que a sorte não é um fator que desmereça uma descoberta. Tudo depende de se o acontecimento será observado pelo ângulo certo e, se discutirmos sobre ângulos, até mesmo isso pode ser um golpe de fatores aleatórios.

Talvez isso não tenha sido devidamente contextualizado anteriormente — produto de meu próprio desinteresse: Sra. Lu era uma dona de casa, nunca deixou de ser. Mesmo depois do falecimento de seu marido. Ela preferiu sobreviver com a aposentadoria dele e isso não era de nota até a sua “pesquisa” chegar em minhas mãos. Fico tentando imaginar a razão de nunca ter tentado vender suas informações, como algumas vezes vi falecidos colegas tentarem fazer.

Tudo de interesse contextualizado, incluo suas anotações redigidas na pesquisa ███-35A.


Acho que nunca houve uma dessas coisas que me fizesse ficar tão arretada! Por um momento até pensei que estava enlouquecendo, porém Bethoven também o notou. Começou a latir feito louco, mas nem se aproximou do bichano — o que foi mais do que muito estranho. Que tipo de gato amedrontaria um cachorro grande como o Bethoven? Eu mesma respondo: algo que não é um gato!

Começou com arrepios enquanto eu lavava a roupa e que continuaram mesmo depois de ter fechado todas as janelas do apartamento. Tentei seguir meu dia mesmo com essa pulga me mordendo. Fui varrer a casa. Quando juntei a sujeira na pá, havia um monte de pelos cinza no meio dos pelos laranja do Bethoven.

Ele apareceu enquanto eu arrumava a mesa.

Era um gato enorme e bem alimentado. Pelos longos e cinza, olhos dourados que pareciam ter um brilho mais forte do que a lâmpada da sala.

Bethoven… Não sei se ele sentiu que havia algo na casa também ou se ele só queria brincar, mas ele correu afobado até a sala de jantar, como se o tivessem chamado. Olhou o gato por um momento antes de começar a latir. Ele com certeza era maior que o gato, mas ainda assim… Ele latia como se tentasse afastar esse intruso antes que o machucasse.

O gato não foi embora. Ficou parado nos desafiando.

Deixei a louça na mesa. Se o cachorro (que era pra ser de guarda) não o espantou, eu iria.

O gato se virou, o rabo cheio e felpudo levantado. Se esfregou um pouco no batente da entrada da sala de jantar — o que pra gato é o mesmo que marcar território — e seguiu pro corredor que dava na saída e que tinha uma entrada pra sala de estar no meio. E eu o segui pra abrir a porta e mandá-lo embora.

Numa virada de esquina, ele ousou usar um clichê de filme comigo e sumiu.

O procurei na sala de estar, nem sinal dele além dos pelos cinza no chão, camuflados pelo piso de madeira escura em tom parecido com o pelo. A mesma coisa pelo resto da casa, porém a presença dele permanecia. Ele estava observando de algum lugar.

Deixei isso para lá. Ele havia sumido de vista e Bethoven parou de latir.

Roberto chegou e me acostumei com a sensação.

Quando ele foi dormir, a força do sentimento voltou. Eu podia ver dois pontos luminosos por um momento quando virava a cabeça. Por que essas coisas gostam tanto de se esconder no canto do olho?

Eu não sei dizer se meus pesadelos foram por causa daquele gato, mas de manhã, senti ardência de arranhões quando fui tomar banho. Do meu joelho ao tornozelo, arranhões ainda abertos, mas que não sangravam.

Nem posso dizer que aquele bichano desapareceu logo em seguida. Queria, mas não posso.

Ele reapareceu no dia seguinte. Na semana inteira seguinte. E se no primeiro dia apenas chegar perto dele fez ele desaparecer o resto do dia, nos dias seguintes ele reaparecia num espaço cada vez menor de tempo. Depois de uns quatro dias, logo depois que o espantei ele reapareceu, nem mais esperava. A sensação dele me observar, porém, nunca ia com ele. Ficava mais fraca, mas assim que sua imagem voltava ficava “normal”.

A cada dia, minha paciência ficava menor. Tentei fazer armadilhas pela casa, mas nenhuma funcionou. Não importa muito falar delas aqui. Toda vez que ele era preso, fosse com madeira, aço, vidro… ele passava pelo objeto como areia pelas frestas de uma porta de madeira. Passava, sentava em algum lugar e me encarava.

Sobre os cortes… Eles desapareciam assim que novos surgiam em lugares e ângulos diferentes.

Ainda assim, com todos esses problemas causados pelo maldito felino, tentei manter minha rotina. Uma vez que nada funcionava contra ele, me irritar não iria fazer diferença. Fiquei acostumada a xingá-lo e falar com ele em voz alta, até mais do que falava com Bethoven.

Foi na segunda semana dessa palhaçada que encontrei minha saída daquela tortura!

Sempre gostei de revistas de donas de casa. Não consigo fazer metade das coisas fáceis que estão escritas lá… Mas havia essa coluna chamada “respire e relaxe” que tinha algo fácil de fazer: acender um incenso de lavanda.

Na hora desci em uma dessas lojinhas estranhas pra comprar incenso. Ele me acompanhou, é claro. Assim como passava mais tempo comigo, ia cada vez mais longe do apartamento ao meu lado.

Coloquei o incenso num copo velho de café. Senti um certo suspense riscando o fósforo, pensando se iria relaxar assim que o acendesse, se iria demorar, o quanto isso poderia me fazer esquecer o gatuno. A fumaça subiu tecendo espirais frágeis que se desfaziam antes mesmo de alcançar o teto.

Não demorou muito para eu descobrir que não é uma boa ideia acender um incenso com janelas fechadas (coisas não explicadas em colunas e nem pensadas durante meu pequeno desespero). Quando a casa estava quase enjoada com o aroma de lavanda, me dei conta e abri a janela mais próxima… Mas então, me surpreendi.

Olhando pela janela do prédio, vendo as pessoas e carros abaixo… Notei que não havia aquela chata sensação de estar sendo observada. Olhei para trás esperando o julgamento da peste, mas não havia ninguém. Nem sequer o Bethoven — aposto que estava dormindo no meu quarto.

Quando era pequena, havia essa história do homem que comprava sapatos menores de que seu pé para que pudesse sentir o alívio quando os tirasse. Lembro da minha avó contando e eu não conseguia entrar na mente daquele sujeito para entender. Inconcebível é uma palavra engraçada, mas muito justa pra mim. Não fazia sentido… Até que eu tirei o meu próprio sapato apertado. Aproveitei um bom tempo na janela, olhando pra frente sem a urgência de me virar.

Obs.: Os arranhados sumiram dois dias depois.

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Folha retirada do diário 3. Há uma foto do gato e do cachorro da Sra. Lu — Bethoven — com rastros de uma coloração amarela nos olhos da anomalia.


Sinto que devo dizer que, enquanto leio seus relatos, a falta de cuidados da Sra. Lu são notoriamente inconcebíveis se aplicados à qualquer funcionário da Fundação. Os primeiros relatos que encontro apenas me demonstram que ela já deveria estar morta antes mesmo do marido. Por essa razão, vejo valor em sua sorte.

Talvez aquele que ler essa pesquisa pense que eu desmereço o trabalho de cientistas que tentaram por anos e anos antes da chegada de seus resultados, nunca dependendo do acaso. Entretanto vejo uma beleza bruta na "sorte", nas aleatoriedades que nos levam em boas direções de vez em quando. E, talvez, norteado por essa admiração de sua sorte, sigo lendo seu diário.

OBS.: Algum tempo após esse episódio, encontraram esse espécime que Sra. Lu deu tantos apelidos ao longo de seu relato. Irei inserir os estudos à essa pesquisa logo.

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