A Esposa Abandonada
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Mary R. Henrique, 18 de Setembro de 1940

Ai, ai… por onde começar… meu marido está ficando estranho. Não só constantemente reclama de seu trabalho, mas parece também estar ficando maluco. Eu fico dando opiniões para ele, mas ele fica ignorando elas!… ele está falando que "vai mudar todo o rumo da história da medicina". Ele não está se alimentando corretamente, nem está querendo sair do hospital! Está dizendo que "A nova era da medicina apenas se constrói com sangue, suor, e lágrimas." Sinceramente, não sei o que pode ser esta "Nova era", mas é algo em que ele crê veementemente.

Será que… ele está doido por causa de alguma doença?… ele sofreu algum acidente e não fui contatada?… algo definitivamente está errado aqui, eu sei disso. Vou conversar com ele… estou preocupada.

Mary R. Henrique, 20 de Setembro de 1940

Desculpe por não falar com você ontem, amigo… estava com os pulsos doendo de tanto mandar cartas para aquele imbecil do meu marido. Ele está se negando a me responder… já fiz tudo o que podia, mas mesmo assim, não estou recebendo resposta alguma. Quando ele voltar, vai receber os piores nomes possíveis, não porque eu o odeie, mas sim porque me preocupo com sua saúde e estado mental. Apesar dele cuidar das pessoas debilitadas e doentes, quem cuidará dele?

Eu só queria saber o que está ocorrendo com ele… já comuniquei com o hospital, e eles disseram que estava tudo sob controle… eu definitivamente não acredito. Senhor, por favor, me garanta que ele está bem, e é só delírio meu.

Mary R. Henrique, 24 de Setembro de 1940

Desisto. Aquele babaca passou dos limites por completo. Hoje, ele dorme fora de casa, por bem ou por mal. Eu dei para ele suas malas e mandei ele ir se ferrar… nem me preocupo tanto, pois sei que ele vai voltar… ele sempre volta.

Mary R. Henrique, 25 de Setembro de 1940

Agora ele está pedindo desculpas… Ora essa! Me deixou preocupada, se recusou a me responder, e acha que será tão fácil assim?… Mas, na verdade, eu acho que ele precisa se recuperar de seus devaneios, então darei uma chance. Apenas uma chance.

Mary R. Henrique, 26 de Setembro de 1940

Bem… tudo aparenta estar do mesmo jeito. Ele permanece doido, parece que não mudou nadinha!… sendo bem sincera, acho que ele está me enrolando. Ele não quer que eu descubra algo, é o que parece. Vou perguntar para ele, vou pedir para ele me contar com toda a sinceridade que ele tiver.

Vou ter que parar de escrever em você por um bom tempo… arranjei um emprego. Não dá para sustentar a casa se não há ninguém realmente gastando o dinheiro com algo que seja realmente importante.


14/11/1943

A campainha toca. Mary sai correndo para fora de sua casa, abre a portinha de sua caixa de correio, e pega um envelope. Entusiasmada, ela volta correndo para dentro de sua casa para ver o que pode estar dentro do envelope. Ela corta sua ponta, retira a carta e, para sua surpresa, era de seu marido. Este que havia sumido a um bom tempo, por nenhum motivo aparente. Mary suspeitava que era por conta de toda sua maluquice anterior, e que ele provavelmente nunca mais iria mostrar sinais de vida.

Mary,

Nunca senti os mais profundos recantos de minha alma serem atacados de tal maneira como esta. Milhares de soldados foram feridos, e agora cabe a nós escolhermos de quem vamos cuidar. Estou alquebrado, não aguento mais observar os corpos desfalecendo, perdendo a vida apenas por conta de escassez de leitos e remédios. Perdoe-me pelas minhas decisões Mary, perdoe-me. Mas este é o momento… É o momento da nova era da Medicina. Que o sangue dê a vida à máquina perfeita.

— César

"Soldados feridos? Guerra?" ela pensou, extremamente confusa. Ela estava correta por ter achado que era sua paranoia, mas ela se sentia… Má. Ela se sentia como se, durante todo este tempo, ela havia maltratado ele por ter contado a verdade. Embora ela queira, ela não pode fazer nada. Não possui o tempo para investigar. Ela possuía um trabalho a fazer que, até então, não a interessava o suficiente para se voluntariar… Até reparar em um pequeno, minimalístico detalhe.

Era o hospital onde seu esposo trabalhava.

Mary, desesperada, entrou bruscamente em seu carro, ligou-o, e foi ao hospital onde seu esposo estava trabalhando. Seu coração palpitava fortemente, quase saindo pela boca; ela não estava prestando atenção ao trânsito e aos sinais, mas mesmo assim, chegou na instituição médica. Tudo estava deserto, não haviam corpos em putrefação, nem ao menos médicos ou paramédicos. Decidiu vasculhar cada canto do hospital até encontrar uma nota, presa por uma fita na lateral de uma mesa.

Tipo de Emergência: Média

Doutor(a): César Silvestre

Data: 1941

  • Descrição da Emergência: Todos os experimentos conduzidos aqui no hospital parecem ter funcionado de forma esplêndida… Porém, este local não foi feito para isto. Se descobrirem o que atualmente fazemos aqui, podemos ser denunciados, ou pior. O meu objetivo é nos movermos para um local no exterior. Caso esta opção não seja válida, seria bom nos movermos para uma construção abandonada. Sim, haverá riscos de contaminação maiores, assim como uma presença maior de precariedade, mas isto será apenas um pequeno efeito colateral. Podemos limpar o lugar, ajeitar alguns dos escombros, e acabaremos escondidos de forma efetiva.

Estado da Sugestão:

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Passava por sua mente várias coisas. Ela não sabia onde podia ser, muito menos se chegaria lá. Ela levemente lacrimejou, por conta de não ter acreditado em seu esposo, mesmo quando sabia que ele estava com problemas, quando sabia que internamente ele pedia ajuda.

Ao voltar para sua casa, e olhar novamente a carta, percebeu algo que não tinha visto… Era um desenho colado a uma segunda folha, com as inscrições:

Neste local está meu corpo pútrido, e a máquina da salvação.

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— César


15/11/1943

Com alguns rápidos treinos psicológicos, Mary está mentalmente capacitada para ir até o local. Mesmo com uma extrema mágoa lhe sobrepondo, ela devia ir lá e verificar. Pelo desenho que seu marido havia mandado, ela conseguia reconhecer: Uma instituição médica em que ela trabalhava, antes de conhecer seu esposo. Ela liga seu carro, tendo mais cautela do que anteriormente, e prossegue dirigindo até o instituto. Chegando lá, ela se depara com o local, decaído ao longo do tempo. Já fazia 23 anos que ela não havia tido contato com aquele lugar. Ao entrar pelos seus portões, sentiu como se a própria morte lhe recepcionasse. O vento gélido predominava no ambiente, junto a uma série de escombros espalhados pelo chão, tais como simbologias desconhecidas riscadas nas paredes. "O que seria toda esta bagunça?" Pensava ela.

Mary sempre se encarregou de tratar feridas graves; este exercício psicológico que exercera durante tempos lhe deu uma aptidão de calma inimaginável, reforçada ainda pelas constantes brigas e afrontas de seu marido. Mesmo assim, o medo percorreu-lhe a espinha, dançando uma valsa fúnebre e temerosa; seu coração era uma bomba relógio, que poderia explodir a qualquer momento.

— Que Deus me ajude. — Sussurrou para si mesma, antes de adentrar a instituição.

No local, havia uma necrópole; pletoras e pletoras de corpos pútridos, exibidos com mordidas e arranhões severos, que desenhavam na carne as mais grotescas imagens. Madeiras foram anexadas às janelas, algumas manchadas daquele líquido rubro, outras ainda com pedaços dos mais variados órgãos.

Mary não suportou ver aquela cena. Mesmo já tendo visto carnificina, ficou zonza, e posteriormente teve que se escorar em uma das paredes, frias e rugosas. Recuperando-se, ela pôde observar uma iluminação azulada que posteriormente decidiu seguir.

Ao entrar no local, viu o que supostamente não teria coragem de manter em sua memória. Observou um corpo putrefato que constantemente observava o chão, sem a metade de seu corpo abaixo de sua cintura, anexado a uma quinquilharia mecânica que se prendia em suas costas. O indivíduo exprimia sons horríveis e agudos por conta de todo o maquinário, que parecia suprimir o ar de seus pulmões. O velho corpo levanta sua cabeça e começa a dialogar lenta e pausadamente, devido ao sintetizador preso em sua garganta.

Mary pôs-se a vomitar, visivelmente aterrorizada, afastando-se da figura.

— Mary, você veio?

Mary, embora mentalmente capacitada, não estava preparada para ver tal coisa. Não possuía a capacidade de falar com seu esposo, que estava praticamente falecido.

— Sou eu, amor. — Movimenta um de seus braços, de forma enferrujada — Queria me desculpar por ter sido… Rude. Me desculpar por tudo que fiz e por tudo que pretendia fazer.

Ela respira fundo. Conta de um a dez mentalmente, tentando raciocinar. A este ponto, ela pôde dialogar.

— César… O que h-houve com você?? — Diz, com visível desconforto.

— Eu mudei, amor. Meu corpo estava falhando, meus rins haviam deixado de funcionar como antes, não havia nenhuma forma de sobreviver ao destino. Eu estava fadado a morrer… Até ter esta ideia.

— Mas… Q-Que raios de ideia é essa, o q-que aconteceu com este lugar?!

— Esta é a "Nova era". Eu usei este lugar que já estava falido para testar meus planos. Meus melhores planos. Pensava em transformar tudo e todos daqui em "super-humanos". Seriam imortais, superiores a qualquer um. — Ele movimenta sua cabeça, olhando para uma janela que estava tampada por barricadas — Me prendi aqui dentro por um bom tempo. Três… três anos ou quase. Foi o tempo que fiquei aqui. Estudei tudo que poderia. Química. Física. Taumaturgia. Tudo que eu pudesse usar para criar uma nova humanidade… Mas eu falhei.

Alguns segundos de silêncio se passam, até César responder.

— Esta minha ideia se baseava no conceito da imortalidade. Utilizei ela em alguns pacientes. Eles não poderiam morrer com o decorrer dos anos. Eles estavam felizes. Eu estava feliz.

— Mas… E q-quanto a você, César?…

— Me coloquei nesta máquina quando alguém havia descoberto minhas atividades. Não pude reagir, meu corpo estava terrível. Eu sabia que ele tinha me denunciado, então eu resolvi me esconder aqui com a máquina. Havia decidido que queria me tornar imortal de qualquer praga. Queria possuir eterna longevidade. Queria possuir imunidade a dor. Estudei, estudei, estudei e estudei. Até cheguei ao ponto de remover os meus rins. Tudo se torna fácil com álcool.

Mary se aproxima de César, lhe observando com um olhar de pena.

— Após me tornar nesta lataria, eu ainda podia me movimentar de sala em sala. Até lhe enviei uma carta, saindo do instituto pela primeira vez em meses. Não ficou tudo bem. Decaía. Comecei a escutar tiros, vindos da entrada. Os pacientes antes imortais que tentavam lutar, acabavam morrendo. Não possuía a capacidade de suprir suas necessidades a tempo. Não possuía mais os remédios. Não possuía mais a mobilidade do jeito que tinha. — César dá uma pausa consideravelmente grande, para redirecionar seu torso a uma parede.

— Fiquei preso nesta sala. As rodinhas deste maquinário haviam sido quebradas. Ninguém conseguiu me encontrar. Entediado, não pudia mais interagir. Mesmo usando esta tecnologia, meu corpo não funciona. Meus pulmões estão parando. Meu coração certamente não vai aguentar por muito tempo. A cada segundo, sinto como se meu corpo fosse desmoronar. Eu já podia sentir. Sentir o que meus pacientes sentiam. O que sentiam antes de pensar sobre a imortalidade.

César estende a mão e aponta para uma tomada, com visível dificuldade.

— A minha vida. Ela depende disto. Eu não aguento. Não consigo. Por favor. Tire a tomada. Remova ela. Faça isso pelo meu bem, e pelo bem de quem chegar aqui.

Mary se movimenta, ficando a frente de César. Ela abre sua mão para segurá-la.

— Certo…

Mary, com sua mão desocupada, acaba de uma vez com o sofrimento de seu amado. Agora ele havia definitivamente falecido; nem um milagre lhe traria de volta.

O efeito colateral da vida é a morte.


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