Mil Vezes Antes de Sua Morte

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1.

Todas as manhãs, o pastor abria os olhos e se levantava da cama. Ela não era bem uma cama: um colchão velho e fedorento coberto por um cobertor. Seu barraco malcuidado estava caindo aos pedaços. Não havia água encanada nem eletricidade. Ele preferia o escuro para esse tipo de negociação.

Ele jogava água fria do poço sobre o rosto. Ele vestia roupas novas, tão abarrotadas e fétidas quanto as velhas. Ele pegava sua bengala e andavam, limpava os currais, enchia o cocho, trazia ração para as ovelhas. Ele as levava para os campos altos para deixá-las pastar. Ele tomava cuidado com os lobos, mesmo que ele não precisasse mais fazer isso. Só parecia ser algo que um pastor deveria fazer.

À noite, ele podia ser encontrado em frente ao fogo. Ele o aquecia. Ele se movia em um padrão inatural, mas animado. As paredes estavam forradas de prateleiras e mais prateleiras de livros velhos, todos os quais ele lia repetidamente. Eles o confortavam. Mundos aninhados dentro de mundos.

Às dez ele ia dormir, antes do ciclo recomeçar ao amanhecer. Nos meses frios, o ar podia ficar amargo, mas as matas próximas o mantinham saudável. Sempre que ele tosquia ou abatia seus animais, ou quando era época de ordenha, ele se forçava a ir até à cidade. Ele não falava senão para negócios. Às vezes ele comprava mais ovelhas, ou mais livros, mas nunca olhava para cima. Olhos nos pés, como seu pai lhe ensinara.

Ele olhava pela janela e via as estrelas cadentes e se perguntava quais delas eram reais.


Claro, ele nem sempre foi um pastor. Isso quase não é preciso dizer.

Uma vez, ele estava em finanças, aquele ganho de alto risco de aposta e extração. Outra vez, ele tinha sido um soldado do exército imperial, reprimindo a dissidência em milhares de mundo imperiais, acreditando em algo maior que ele próprio. Em uma vida diferente, ele abriu uma pequena floricultura em Kensington. Ele já foi um membro da SCP, um militante da Mão, um insurgente do Caos, um marido, esposa, pai, mãe, amante.

As imagens passavam por ele agora, cenas de um filme meio lembrado. Tantos séculos para sofrer o ataque dos sentidos. Os slogans em néon que ecoavam no céu diziam o suficiente: seus passados haviam contribuído para o que o lado de fora era, e ele odiava isso. Ele tinha sido tantas pessoas que tinha perdido a conta, mas todas compartilhavam uma coisa em comum: todas se envolviam, plenamente e de todo o coração, na transformação da terra.

Então ele gastou o resto do dinheiro em um corpo "Perpétuo" Neo-Prometheus, alguns acres de encosta e algumas ovelhas. Ele se despediu e fugiu. Ele olharia para o sol e seus olhos permaneceriam os mesmos. Ele se cortaria e a ferida se fechava novamente. Ele tremia no escuro e tentava não se lembrar.

Ele já fora tantas coisas. Ele não sabia quanto tempo ele seria esta coisa, mas ele não queria mais nada. Ele só queria que todos calassem a boca. Ele só queria que o céu estivesse limpo.


Uma noite, o céu estava limpo. Nenhum anúncio ou propaganda ecoando de cima. Geralmente havia uma ou duas noites por mês em que isso acontecia. Qualquer bom anunciante sabe que muita familiaridade diminui o efeito.

Ele desejou para que a escuridão viesse, mas ele simplesmente não conseguia dormir. Os cobertores pareciam arranhar e agarrá-lo, enquanto ele os torcia em formas estranhas. Ele se lembrou de guerra, romance, coração partido, homens sorridentes em salas de reuniões. Ele abriu os olhos e ainda não estava sonhando.

Ele então ouviu risos.

Eles estavam distantes, mas sua terra era extensa. Eles estavam na floresta. Ele não sabia o que pensar sobre isso. Fazia… décadas, provavelmente, desde a última vez que alguém fizera isso. Seriam apenas mais garotos bêbados ou idosos aproveitando sua juventude roubada. Ele os perseguira com uma espingarda da última vez. Ele sabia que não conseguiria matá-los, mas podia pelo menos feri-los.

Mas ele não tinha mais uma espingarda. Ele a perdera na primavera de 29. Ele gemeu, se levantou e cambaleou para fora. O vento o mordia enquanto as nuvens eram afastadas pela lua; uma cena pastoral clássica. Toda a razão pela qual ele se mudara para cá para começo de conversa.

Os risos tinham vindo das árvores ao norte. Ele podia ver os sinais distantes de um fogo, queimando alto e brilhante. Lentamente, ele começou a andar. Ele estava assustado. Ele não queria ser visto e não tinha certeza se queria ver. Seu corpo permaneceria perpetuamente jovem e em forma, mas sua mente via as coisas com uma nitidez acessível apenas aos mais velhos.

Ele se aproximou. Seu corpo farfalhava entre as árvores, quebrando galhos e espantando pássaros. Ele não estava sendo sutil, mas não conseguia evitar. Por que eles não podiam simplesmente deixá-lo em paz? Ele ouviu vozes, viu chamas saltando por entre as árvores. Esta era sua terra. Ele não deveria- não precisava se esconder.

Ele chegou a uma imensa clareira, e uma fogueira estava diante dele. Era um negócio grandioso, crepitando incessantemente enquanto lambia as árvores. Ao redor havia pessoas dançando, espalhadas em panos multicoloridos, rindo, bebendo e conversando.

Ele tentou se aproximar deles, mas tropeçou e caiu no meio da celebração. Um homem que ele nunca tinha visto em sua vida empurrou uma bebida em sua mão, e então ele estava sendo abraçado por dois bêbados corpulentos, e então levado para a dança. Fazendo círculos ao redor do fogo, uma fogueira de sorveira, faia e carvalho, e ele riu e bebeu e não sabia por que estava rindo e bebendo.

"O que é isso?", perguntou ele a uma mulher. Ela era jovem e bonita, e sorria tão amplamente.

"Fogueira de ossos! Tu não conheces a fogueira dos ossos?"

Ele sacudiu a cabeça. Ele os viu jogando coisas ali- objetos brancos de marfim.

"Onde vocês arrumaram os ossos? Não há mais ossos assim."

Ela olhou para ele intrigada. "Ora, estranho tu eres. Venha pois dançar!"

E eles jogam os ossos na fogueira por proteção por mais um ano, e ele dançou, e ouviu à flauta frágil, e bebeu e se divertiu, e o fogo se elevou, subindo e subindo, por mais um ano. Seus rostos estavam tão pálidos. Eles mostravam dentes quebrados para ele. Corpos humanos reais, não falsificados, não forjados; corpos de Deus, ele podia ver, do campo e das aves.

Ele falava sobre ovelhas, sobre o pastoreio e o rebanho, e os rapazes só concordavam com a cabeça aie, aie, e eles lhe serviam mais cerveja amarga, e as damas riam e elas se jogavam e pisoteavam e de davam braços. Eles falavam de invernos rigorosos e do fim da morte, o que significava duas coisas para cada um que de alguma forma se revelava como um.

Ele beijou a garota, no final, e ela sorriu e riu e colocou uma cruz de madeira na mão dele. Ele adormeceu no barro claro, olhando para as estrelas, vendo os padrões nelas. O caçador e a cobra. Escorpião e falta justa. Ela murmurou em seu ouvido, e todas as luzes se apagaram.


Ele acordou em uma margem, o amanhecer começando a brilhar. Ele gemeu e segurou a cabeça. Não havia fogo, nem cinzas, nada. Nenhum sinal de ninguém. A mulher se foi, todos eles se foram. Será que tinha sido um sonho?

Ele procurou no bolso e encontrou a cruz de madeira. Ele sentiu o manto de lã em volta de seus ombros. Não. Foi real. Alguém esteve aqui.

Ele levantou suas pernas cansadas e começou a andar de volta. As folhas farfalharam. Não havia barulho ali, e quase nenhuma luz. Um corvo olhou para ele, inclinando a cabeça em movimentos precisos. Ele não era de interesse do corvo.


O livro estava encadernado em plástico barato. Livros impressos eram raros, e este tinha pelo menos dois séculos de idade. Ele o abriu, observando a cola sair da lombada. Ela saltou pelo chão.

Seus olhos eram novos e frescos, como foram por décadas. Seu cérebro era velho, mas pulsava mais, mais alto, mais barulhento enquanto ele lia, rugindo em uma compreensão que nunca poderia ser obscurecida. Era a luz de um homem que havia passado pela velhice e saído do outro lado, pronto para entrar em transe novamente.

Na Idade Média, a primavera e o verão frequentemente viam celebrações rurais chamadas de Fogueira de Ossos. Estas celebrações veriam camponeses jogando ossos no fogo para afastar os espíritos. Como muitos festivais, esta era uma ocasião de celebração que frequentemente via fantasias, bebidas e indulgências espirituais e materiais, com

Ele não leu mais nada. Os estorninhos grasnavam ao longe, e sua mente estava em chamas.

Porque ela estava sempre em chamas. A grama cinzenta e as nuvens baixas podiam deixá-la dormente, por algum tempo, mas não apagá-la. Havia um mundo lá fora, de pessoas e terra e sujeira, sangue e dor, a vida expandindo sua vegetação em cada canto da criação. Agitação que nunca era a mesma duas vezes, uma palavra feita uma por um mundo tão frágil.

Ele não sabia o porquê de ter visto o passado, mas isso o impulsionou para cima, para a frente, seus membros se transformando em movimento. Ele andou. Seus ombros fora, jogados para trás e seus olhos olharam para o néon metálico e as luas artificiais e ele andou, as botas esmagando a grama frágil, descendo a encosta, pronto mais uma vez, querendo o mundo novamente. Uma cidade, depois duas, depois mil, depois uma história de viagem, luz, vida, aquela curva da meia-noite!


2.

E assim ele voltou ao mundo. Ele o abraçou, como fizera antes. Ele começou do zero, mas tinha todo o tempo imaginável. Ele se tornou um incendiário, um reformador. Ele fez grandes discursos em cima de altas estátuas, sua juventude perpétua ajudando suas palavras a ressoar através de multidões e céus. As leis foram alteradas, os culpados foram punidos, papéis agitavam ao vento enquanto ele voava e ria.

Ele envelheceu novamente; não no corpo, mas na mente. Novas ideias estavam sendo introduzidas às quais ele se opunha, teimosamente insistindo na justiça do jeito antigo, seu jeito- e, embora ele nunca admitisse, de sua posição e status. Ele estava no topo de um prédio bem alto, olhando para baixo, para as formigas e as linhas e as grades entrecruzadas. Era tudo tanto. Ele via parasitas, fungos, comendo a matéria morta dessas árvores de metal.

Ele engoliu o resto de seu uísque. Ele tirou o casaco, depois o paletó, e os colocou cuidadosamente sobre uma cadeira. Ele colocou a mão contra o vidro, e então com um empurrão súbito o quebrou. O vento uivava em seus ouvidos enquanto ele juntava os braços, corria para frente, e pulava.

Depois que ele atingiu a terra e se despedaçou, eles levaram meses para reconstruí-lo. Apenas o melhor para o grande reformador. O falso choque de um mundo imortal em rostos acima de peles olhando para fora das telas de televisão- era disso que ele se lembrava. Era isso que seus olhos viam, dia após dia, enquanto um novo corpo era construído, em mesas brancas e desoladas com um alfaiate esticado sobre ele.


Ele voltou para sua fazenda. O charme rústico que ela uma vez tivera tendo ido com a cidade que se aproximava dela, mas seus bosques e pastagens ainda eram legalmente sua propriedade, e assim ninguém podia tomá-los. Prédios altos ficavam cada vez mais altos, mas sempre havia espaço para ovelhas.

Levou décadas para ser totalmente esquecido. Ele observou os memorandos, as lágrimas, os discursos emocionantes em memória de seu antigo eu. Eles estavam gritando no céu, doze horas por dia, seis dias por semana. Ele começou a esquecer qual tinha sido seu nome, desta vez. Não importava. A história era vasta demais para ser lembrada.

A maioria das noites ele passava tremendo, até que de repente ele não estava mais tremendo. As sombras dos edifícios ficavam cada vez mais profundas. Os céus começavam a gritar a agora, grandes monumentos de som cintilante. Tiranos do espaço sórdido, pedindo, implorando por mais mãos na linha, mais homens para o Império, mais trabalhadores para as colônias.

Ele pegou seu travesseiro e o empurrou ao redor de seus ouvidos. Ele lia um livro, tentando absorver-se em outro lugar e tempo, mas as mãos das estrelas se estendiam em seu quarto e seguravam seu crânio com força. Ele gritava, ele soluçava, e os moradores dos prédios altos se perguntavam quem estava em tanta dor. Eles nunca pensaram em olhar para baixo.

E então, uma noite, aquilo aconteceu de novo. Uma luz de fogo nas árvores. Ele se levantou novamente, quase chorando. Ele precisava disso. Estava tão frio aqui. Ele precisava de todos eles. Ele cambaleou, meio acordado e meio risonho, para fora de sua casa e para a noite.


Vidas piscaram em uma montagem febril. Em uma iteração, ele era um vagabundo das estrelas, um eremita que viajava de planeta em planeta contando histórias que se queimavam na mente. Em outra, ele era um grande capitão de navios mercantes, conhecido tanto pela honestidade quanto pela bravura. Ele era um escritor de histórias e um cientista que resolvei o mistério do Contínuo de Michaels. Ele era um bom homem e uma perversa mulher, um burro de carga silencioso e uma terrível cobra.

Ele havia atravessado os oceanos de Sirius IV, aquele experimento fracassado de terraformação. Ele olhava para o fundo do oceano, para os caranguejos e a agitação e as fazendas sem fim de algas, e via nessa complexidade uma espécie de ardósia monolítica e banal.

Desta vez, ele tinha sido um marinheiro do céu na Linha Dilatada, aquela região do espaço nascida do fogo que circundava o buraco negro da galáxia. Ele e outros desciam até o buraco negro, estilhaçando arpões e canhões leves preparados, experimentando a irrealidade que havia além e invadindo-a em busca de estranhos tesouros. Ele tinha visto uma mulher lá, olhando para cima, articulando a boca sem palavras e com sons inesquecíveis de angústia.

E agora, como ele fazia todas as vezes, ele havia retornado à sua fazenda. Os milênios retomaram os edifícios ao seu redor; sem cidades, sem aldeias. A Terra era uma pequena engrenagem em um império de trilhões, e só os rústicos e nostálgicos viviam lá ainda- um refúgios para os Uma Vez Mortos, aquela pequena minoria de sete ou oito bilhões que nascera antes da eternidade.

Podia ser uma década. Podia ser séculos. Mas toda vez ele via um pingo de fogo, e os encontrava na floresta, e voltava para o mundo. As fogueiras seriam acesas no alto e eles dançariam em círculos estranhos. Ele não sabia e não conseguia dizer se eram as mesmas pessoas todas as vezes. Ninguém mais as via ou as mencionava. Era simplesmente uma dessas coisas, ele imaginou.

Ele se sentou na margem e olhou para o amanhecer. Os foliões estavam todos deitados, exaustos ou bebendo cerveja e hidromel. Eles conversavam da colheita que estava por vir, da esposa do conde, dos homens do xerife. Ele se perguntava um pouco com esse discurso. Ele se perguntava se isso era realmente o discurso do passado, ou se era apenas uma construção, uma fantasia.

Por que ele veio aqui? Os ciclos de sua vida continuavam inabaláveis. Toda vez que ele tentava resistir, de uma forma ou de outra, ele parecia apenas fazer acontecer. A agitação dos mundos não parecia mais tão uniforme, mas parecia mais opressiva. Mas ele pensava nisso, e em seu oposto, muitas vezes.

Não. Ele sabia por que ele vinha aqui. Ele vinha aqui quando estava com frio e tremendo, quando ele era rejeitado ou desprezado, ou estava desiludido com a realidade. Ele vinha aqui por causa do homem que ele tinha sido no último ciclo, da mulher que ele tinha sido antes daquele, cada versão de si mesmo desde o início tinha sido outra pessoa.

Ele vinha aqui para morrer. Devido às coisas que todos eles sentiam, por trás dos olhos, e nunca falavam.

Os fogos se apagaram. Os foliões desapareceram. Ele se levantou, suspirou e olhou para o sol. Era hora de dançar novamente.

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