Anno Zero
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Belial, Behemoth, Belzebu.

O coral profano nomeava os inomináveis. Seu clamor pelos seres das trevas faziam o mais corajoso guerreiro gelar a espinha.

Asmodeus, Satanás, Lúcifer

Naquela grande catedral a virgem chorava sangue, da mesma forma que a cruz era revertida com desdém. Eles estavam ali por um motivo, para entoar a presença do senhor das moscas, para honrar o nascimento do filho pródigo, o verbo do renegado.

Uma espiral de loucura era formado diante de seus olhos, mas nem sempre fora assim. A vida de Benedito mudou do vinho para água a partir do ano 954 da Era Comum, este voltava com seus irmãos a Roma após uma longa estadia em Jerusalém. Sobre sua posse estava a preciosa e santa cruz de Cristo, a relíquia cristã que em pouco tempo estaria sobre o altar da Antiga Basílica de São Pedro. Eles foram recebidos sobre grande honraria por Vossa Santidade daquele tempo, o Papa João XII. Para a surpresa de Benedito que descobrira a poucos dias que já fazia 7 anos que o antigo líder de Roma e seu convocador, Papa Agapito II, havia falecido de forma trágica. Apesar da tristeza pela atual descoberta este se portava de forma alegre ao perceber que o novo Papa era seu amigo Otaviano de Túsculo. Depois de tanto tempo estava curioso para saber os motivos de sua evidente conversão a fé cristã.

— A vontade de São Pedro incendeia vossos corações. — Diz o Papa para os peregrinos. — Vocês trouxeram para Roma o que era nosso por direito, a cruz de nosso salvador, a chave para a salvação divina. Tiveram uma longa jornada, por favor, sintam-se a vontade para descansar.

Ele chama Benedito para uma conversa particular enquanto os demais membros dos peregrinos se dispersam. Os dois caminham de forma amigável pelos arredores da cidade antiga enquanto trocam memórias de um tempo distante.

— Papa? Nunca pensei que isso fosse acontecer. Por que não continuou a linhagem de seu pai como suserano de Espoleto?

— As coisas mudam meu amigo. Não se pode viver como um devasso enquanto o mundo queima em brasas.

— Nem consigo te reconhecer. Sempre disse que idolatria era para os imbecis.

— Sei que é difícil de acreditar que aquele príncipe inundado pela lascívia se configurou como o máximo expoente de nossa Igreja na terra. A voz de Deus. Te digo apenas que tive uma revelação.

— Então não fora o único meu amigo.

— Como?

De modo estranho o Papa é chamado por Benedito para se aproximar do Lago de Como.

— Quando estávamos em Jerusalém, algo ocorreu a mim e a meus irmãos. Tínhamos nos infiltrado no santo sepulcro quando fomos cercados por tropas do Califa Al-Muti. De alguma forma ele sabia que estávamos na cidade. Tentamos lutar, porém eram muitos, o que nos restou foi rezar. Rezar para o criador que eliminasse os hereges do solo sagrado. Foi feita sua vontade, os sarracenos caíram de joelhos e o Santa Cruz se pôs a brilhar. Levamos a relíquia para nossa embarcação, não demorou muito para que mais sarracenos viessem em nosso encontro. Atearam fogo no barco, neste instante caímos sobre as águas.

— Difícil acreditar que tenham sobrevivido.

— Nossa fé foi nosso maior motivador. Lembra-se de Mateus 14:22-33?

Benedito se aproxima do lago, medita por alguns instantes e anda sobre as águas. O Papa se encontra surpreso, como uma pessoa poderia ficar em pé sobre o lago sem afundar?

— Nos mantivemos fiéis a nossa fé, ela não nos deixara cair. Confiamos em Cristo e esse nos salvou. Essa era a nossa missão. A maioria de meus irmãos foi perdendo o poder conforme nos aproximávamos de Roma. Fui o único que se manteve firme sobre as águas.

— Muito impressionante de fato, devo supor que a Cruz possui habilidades além da compreensão. Mandarei os escrivães tomarem nota do seu caso, não quero que confundam você com um bruxo. O sangue do salvador pinta a cruz, afinal você precisava viver, pela Igreja, por seus próximos e por Alba.

Aquele nome atingiu em cheio o coração de Benedito, já fazia tanto tempo, só que este nunca perdera as esperanças. Antes de partir para sua jornada até a terra santa, tinha trocado juras de amor com uma jovem lombarda. Apesar de nunca terem consumado os votos o casamento dos dois já estava marcado para seu retorno. Esse sentimento era tão grande quanto sua fé.

— Como ela está?

— Para sua surpresa não está casada, nada pode anular um casamento arranjado por Deus. Acho que não encontrou nenhum mortal capaz de preencher seu coração, melhor ela te contar os detalhes. A mulher que procura deve estar neste momento na Basílica de Latrão, ela retira grande parte do dia para rezar, principalmente por ti meu amigo. Todos temíamos por sua vida, principalmente ela. Agora vá atrás da moça, depois continuamos nossa conversa, temos muito a discutir.

— Gratias tibi atrás, vossa santidade.

— Me chame apenas de João, formalidades são apenas para eventos.

Benedito segue então para o encontro de seu antigo amor. Sobre o altar ele observa uma irmã ajoelhada diante da cruz. Quando esta se levanta ela vira-se de modo que seu olhar se cruze com o do peregrino.

— Alba?

A mulher olha surpresa, seus olhos safiras brilham numa intensidade nunca antes vista.

— Já faz tanto tempo. Eu rezei para que você voltasse em segurança. Meus clamores para Deus foram atendidos, o Espírito Santo realmente lhe protegeu.

— Você se tornou uma Freira?

— Uma serva do senhor.

— Enquanto a nós?

A mulher sobre o hábito olha para baixo de forma triste.

— Não existe mais nós. Sou uma mulher devota apenas a Deus, é apenas ele que foi capaz de preencher meu coração. Essa foi a melhor forma de te proteger, me privei de minha liberdade por amor a ti, somente assim o senhor o traria de forma segura para casa.

Aquelas palavras o atingiram como pedras. Não podia acreditar que sua amada havia se privado de tudo para lhe proteger. Ele poderia até estar zangado, mas não poderia se intrometer. Alba não estava casada com algum príncipe ou camponês, ela havia se tornado uma serva do senhor por livre vontade. Só lhe restou rir e dizer:

— Talvez eu tenha sido tolo de pensar que tudo continuaria como antes, Otaviano até se tornou Papa.

— Não se sinta mal por mim, a muito tempo estou feliz. A luz que me guia seca as lágrimas da tristeza. Agora preciso ir, foi muito bom te encontrar.

Ela parte partindo seu coração, o deixando sozinho sobre a tarde crepuscular. Sentado sobre os degraus da basílica, desolado, pensando se era isso de fato o que Deus havia escrito. Havia realmente entendido o que o Papa quis dizer com: "não encontrou nenhum mortal capaz de preencher seu coração". Mas por quê? Por que depois de todos esses anos de servidão Deus tenha tomado posse de sua amada? Não fora obra do destino, tão pouco um sentimento egoísta, foi um pacto. Alba fez um pacto com Deus em troca de sua segurança. Ele apenas queria entender o motivo. Agora assim como seu amor, sua fé estava fragilizada.

Passou os próximos dias afastado do mundo, pensando consigo mesmo, perambulando pela cidade. Tentou conversar com seu amigo sobre o ocorrido, mas este constantemente dizia que fora uma escolha do Pai Eterno. Sempre concordava com a cabeça, porém no fundo sentia raiva, raiva por não ter sua amada em seus braços, raiva por ter se doado tanto e não ter recebido nada em troca, raiva por peregrinar sem propósito. Essa era a verdade, o que ele faria sem Alba? Ele já completou o mérito de trazer uma relíquia para os braços da Igreja. O que ele faria agora? Voltaria para Pisa como o sétimo filho na linha hereditária? Não, ele precisava de Alba. Por ora ele deveria retirar esses pensamentos de sua mente. Enquanto fazia sua caminhada matinal escutou a conversa de dois jovens.

— Estou falando, eles tinham mantos negros.

— Não consigo acreditar nesse tipo de coisa.

— Mas é a pura verdade. Tinham mantos negros e perambulavam pela rua.

Benedito interrompe perguntando do que eles estavam falando.

— Julio é um mentiroso, ele acha que viu fantasmas correndo pelas ruas em direção a basílica.

— Fantasmas?

— É verdade! Eles usavam longos capuzes, eram seres sem rosto.

— Você tem muita imaginação garoto.

— Ninguém acredita em mim. Não percebem o que está acontecendo? Todas as meretrizes da cidade desapareceram de uma hora pra outra!

— Devem ter se convertido, afinal esse não é o século da redenção?

Deixou de conversar com os garotos e seguiu seu rumo ao Mons Vaticanus pela Via Cássia, embora fosse recomendado que não ficasse remoendo o passado, este não conseguia. Subiu ao topo do monte e se sentou sobre a verde rampa gramada. Aquele era o lugar onde seus votos, sobre os olhares de Vênus, foram trocados. Era uma boa vista, Benedito conseguia deslumbrar a cidade que deixara sete anos atrás. Constantemente se perguntava se deixaria novamente, se partiria mesmo sem Alba.

— Você gosta mesmo deste lugar.

Como um prelúdio para seus lúgubres pensamentos, a moça estava ali diante dele.

— Dificilmente se pode evitar velhos hábitos. Por que está aqui irmã?

— Gosto de sentir a brisa fresca da estação.

Alba coloca uma cesta no chão, dentro desta, maçãs rubras refletem o esplendor solar. A freira senta-se ao lado de Benedito.

— Otaviano diz que você está distante. Ele acha que você irá partir. É verdade? Vai mesmo voltar para Pisa?

— Você chama o Papa deste modo?

— Ele pode ter se tornado o Papa, mas ainda é meu irmão.

Ambos riem.

— Não tem muito mais que me prenda nessa cidade, minha missão está completa. A Cruz está sobre posse da Igreja e não tenho nada a fazer.

— Eu lhe agradeço.

— Era parte de minha missão. Não precisa agradecer.

— Não falo disto, falo de minha escolha. Você aceitou bem minha vocação.

Será que deveria mentir para Alba? Aquela era uma ferida que havia se formado assim que ele colocou os pés sobre a cidade.

— Eu dou minha benção, você optou por seguir a Deus. Quem sou eu para julgar?

— Sei que ficou chateado.

Alba se aproxima.

— Essa é a vontade do criador, que escreveu o meu destino.

— Enquanto a tua vontade?

— O que eu quero não importa, Benedito. Apenas a vontade dele é a correta. Eu estou feliz servindo a ele.

Novamente o ódio pulsava em seu coração. Por que ele tomaria Alba se esta não é a vontade dela? Só queria ver seus cachos dourados mais uma vez e concretizar o que um dia prometeu naquele lugar. Seu corpo preso naquele hábito o deixava insano. A noite caiu assim como a despedida dos ex-amantes. Benedito segue pelas ruas desertas, vê mulheres sem rumo, paradas entre as esquinas do palácio. "Meretrizes desaparecendo, nem a peste pode acabar com esta praga", pensou consigo mesmo. A lua cheia já estava completa no céu, de forma que só esta fosse o sol daquele mundo imerso em escuridão. Observou um rosto familiar escondido entre as construções. Benedito o puxa pela roupa.

— O que faz acordado a esta hora! Acha que aqui é Veneza?

— Eu vou provar que existem fantasmas andando pelas ruas.

— Vamos pra casa garoto, vou pedir pra sua mãe cortar seu hidromel.

— Espere! Olhe ali! Você não acha nem um pouco suspeito?

Benedito analisa bem e vê três figuras sombrias indo em direção à basílica.

— Volte para casa garoto, eu mesmo vou averiguar isso. Devem ser só os monges em uma peregrinação noturna.

Despachando o garoto para casa, Benedito acompanha as misteriosas figuras até seu destino. Não havia luzes dentro da basílica, tão pouco pessoas que podiam ser identificadas. Adentrou no local que estava tomado pelas sombras. Apesar de estar tranquilo com a situação, escuta música sendo tocada em algum lugar. Ele segue o som a ala lateral do altar, quando toca na parede é jogado para uma câmara inferior, as escadas em espiral desciam para onde a música ficava cada vez mais forte. Benedito desceu até deslumbrar, com certo horror, algo que só poderia vir dos mais nefastos pesadelos de um beduíno. Uma capela inversa a basílica, os santos foram substituídos por figuras profanas, querubins por diabretes e a cruz estava invertida.

Diversas figuras encapuzadas ocupavam grande parte do espaço e as velas negras queimavam sobre os candelabros. Escondido, teve de tampar a boca para não regurgitar, o cheiro de sangue fresco misturado a enxofre pairava sobre o local. Diferentemente de Jerusalém que o cheiro do sangue era disfarçado pelo clamor da batalha, aqui o que se fazia era a podridão. Três corpos de mulheres nuas amplamente desfigurados pintavam de escarlate o assoalho. Por uma porta sai um augúrio similar a Sua Santidade. Sobre seu corpo estava uma casula preta e vermelha, sobre a mente uma mitra de símbolos estranhos e em sua mão esquerda estava a férula invertida, aquela era a herege trindade das vestimentas. A ele é entregue o tibúrio, a fumaça saindo do objeto fedia a cinzas de cadáveres chamuscados. Virando-se sobre a cruz o Antipapa clama:

Pelos símbolos do criador juro ser daqui em diante
Um fiel servo de seu arcanjo mais poderoso,
O príncipe Lúcifer,
Que o criador do mundo designou como seu regente
E o Senhor deste mundo, amém.

— Filhos e filhas aqui presentes, estamos reunidos hoje não só para louvar, mas profetizar a queda do enganador. Nosso amado anjo caído foi expulso do céu por se revoltar contra tirania do falso Pai. Sua rede de normas e mentiras serão queimadas pelo fogo inferior, quebraremos nossas correntes rumo a morte. Ontem ganhamos a chave para nossa descensão ao reino de nosso mestre, hoje temos o homem que dará forma a besta, amanhã será o dia da desconsagração.

O corpo de Benedito se levanta, o peregrino é levado lentamente para o altar. Não conseguia controlar a si mesmo, algo estava o puxando, algo que no fundo ele desejava. Ele cai de joelhos sobre o altar, a cruz invertida sombreava seu rosto enquanto o Papa se aproximava. Podia-se notar que seu rosto era pálido e seus olhos eram cobertos por piche.

— Você veio! Estamos muito contentes.

Todos ao redor batem palmas e gritam em alegria.

— Sei que deve estar assustado. Vamos primeiramente com as apresentações, sou Sadictus Duodecimus. Você deve ser aquele que trouxe a cruz.

— Eu não respondo aos seguidores de Satã!

— Mas responde a um Deus que tomou para si aquilo que mais amava.

As palavras acertaram-no em cheio. Ele estava confuso e com raiva de toda essa situação envolvendo Alba. Ele queria respostas.

— Sei que a mulher que ama fez um voto de devoção para Deus, indo contra todos os seus instintos e sonhos. Pense comigo, por quê? Por que se prender a esses dogmas antigos se não é isso que seu coração deseja?

— Não darei ouvidos a quem que tem a alcunha do homem que deixou Jesus morrer na cruz.

— Deixou o enganador morrer na cruz! Provérbios vazios, que limitam a verdadeira natureza humana.

— Natureza? Você matou essas pessoas.

— Eram meretrizes, se multiplicando como ratos. Nossa Igreja deu um motivo maior para sua existência.

— Que motivo seria esse?

— A sua libertação.

O Papa molha a ponta dos dedos no sangue fresco e passa na testa de Benedito, este tenta resistir de forma falha. O líquido se mistura a pele como uma tatuagem imunda, seus gritos só fazem aumentar a alegria da criatura em sua frente.

— Você pode me olhar com raiva meu filho, mas um pecador não tem a capacidade de me julgar.

— Eu não sou um pecador!

— Não? Quanto sangue derramou pela cruz? Quando finalmente abraçar teu crime finalmente poderá ser agraciado pela força do obscuro. Por hora meu filho, lhe dou minha benção. Nessa capela de ritual, você irá renascer, será o receptáculo da força de nosso mestre. Por isso mortal eu te liberto.

A fumaça fica cada vez mais forte fazendo o peregrino cair de forma inconsciente ao chão. Acorda em sua residência aflito e sem entender nada do que ocorreu, mesmo assim não ignora o sonho que teve. Perguntou se havia marcas em sua testa, todos negaram. Benedito conta sua experiencia a João e exige que o mesmo mande os guardas averiguarem a basílica, no entanto.

— Nada? Isso é impossível! Eu vi com meus próprios olhos.

— Os guardas já averiguaram meu amigo, não tem nenhuma capela subterrânea. Tem certeza que não tomou mais hidromel do que devia?

— Pare de me tratar como se eu fosse um louco.

— É difícil te defender quando você diz que presenciou uma missa negra dentro dos territórios do papado. Fale a verdade, não é isso que vem te afligindo. Desde que descobriu a verdade sobre a irmã Alba, está agindo de forma estranha.

Benedito senta-se sobre uma azinheira, retira um pouco de terra e questiona o antigo amigo.

— Eu simplesmente não consigo entender. Por que Deus a roubaria de mim?

— Ela morreu de forma cruel?

— Não.

— Ela está casada com algum tirano que a espanca todos os dias?

— Não.

— Então o que te aflige? Assim como você decidiu ir atrás da Sagrada Cruz, ela decidiu se tornar freira.

— Ela decidiu para me proteger.

— No começo pode ter sido, mas ainda sim foi escolha dela. Você sabe que ela está feliz, então por que a insistência? A realidade é que você está sucumbindo a um sentimento. A tentação.

Quando essa palavra foi jogada ao ar, a raiva em seu interior pulou pra fora.

— Você não entende o que eu sacrifiquei!

Benedito se levanta, seu poder faz a árvore se contorcer em resposta a tamanho ódio.

— Eu dei minha vida por ele! O que preciso fazer para provar minha fé?

A árvore se desfaz em pedaços.

— Você possui um grande poder em mãos, meu amigo, não desperdice este com coisas levianas. Atente-se a vontade de Deus, assim como ele lhe deu a vida, ele pode retirá-la.

O Papa se retira, deixando benedito sozinho com os escombros do antigo vegetal. "Poder", pensou consigo mesmo. Deus havia lhe entregado esse poder e ele usaria esse poder para tomar Alba para si. Esse era o trato, esse era o prometido, essa era a justiça.

Sobre o altar ele observa a jovem Freira rezando mais uma vez.

— Alba, vamos embora de Roma.

— Acho que você entendeu mal, tenho um compromisso com o Senhor.

— Não percebe que é isso o que ele quer? Por qual motivo ele me deixou vivo? Eu deveria estar morto agora.

— Mas não está, todos passamos por nossas próprias provações. Deve usar seu renascimento para seguir os passos do salvador. Deus te salvou porque tinha planos para você, não para ficarmos juntos.

— Se você não virá por bem, você virá por mal!

Benedito usa sua força e levita Alba pelo pescoço, rasgando seu hábito, seus cabelos loiros ficam a mostra quando o véu é partido em milhões de pedaços. Os cachos dourados são expostos sobre a imagem do salvador, ela chora em desespero tentando esconder o cabelo.

— Nem em minha morte eu trairia Cristo.

Ele deixa Alba sobre o altar e parte enfurecido para as ruínas do Circus Maximus. Era um lugar que ele costumava ir quando perdia a cabeça, ficar em uma atmosfera alegre sempre ajudava, mas não desta vez. Ele joga ofensas aos céus enquanto a pouca vegetação do local é completamente destruída. Pensou em todos os anos de adoração e de lições vazias, que foram cuspidas em seu rosto. Caído sobre a grama ele esperou o anoitecer. "Enganador", gritou sobre o relevo. Com a mão sobre a testa, este se lembra do Antipapa, seu ódio o havia cegado ao ponto de ir de encontro ao profano.

Ele estava dentro da basílica apenas acompanhado por trevas, ou era isso que ele achava. Seu medo tinha acabado, tomado pela raiva. Ele teria Alba, mesmo que isso significasse trair a vontade do criador. De forma repentina um círculo de velas se acende ao seu redor, os objetos eram portados por figuras encapuzadas. Da escuridão o Papa Sadictus XII surge a seu encontro.

— Fico feliz que tenha ouvido o clamor de nossa ordem. Diga criança, por que está aqui?

— Quero Alba de volta, Deus a roubou de mim.

— Mulheres, o original flagelo dos homens. Você a deseja?

— Mais do que qualquer coisa.

O silêncio gélido se fazia presente entre a completa escuridão, o olhar cínico do Papa o deixava claramente desconfortável.

— Quero que a liberte!

— Infelizmente não posso forçá-la a nada. Ela precisa fazer sua escolha. Entretanto…

De sua túnica ele retira uma maçã, tão suculenta e brilhante que Benedito se assustara. Nunca havia visto tamanha beleza vinda de um fruto.

— Posso retirar a influência daquele que a domina. Entregue a maçã a sua amada, ela lhe dará o conhecimento necessário para decidir.

Ele levanta o fruto aos céus, da mesma forma que seus discípulos põem as velas em alto.

Escutai a nossa prece a Satanás, nosso credo antiniceno. Este Fruto surrupiado do Éden, dos portões fechados aos seguidores dos justos, a fonte da malícia humana. Louvemos o mestre das trevas, a motriz da verdade agora é entregue aos mortais que estavam cegados por tamanha luz.

Benedito se sente tonto, perdendo o equilíbrio, Sadictuss o segura dizendo:

— Deixarei a maçã em suas mãos, ela será a chave para teus desejos.

Benedito cai no chão desacordado. Quando abre os olhos está deitado em seu quarto, na lateral da cama encontra o fruto. Vendo seu reflexo pela maçã, sorri. Enfim teria a mulher na qual fora prometida, já podia pensar na vida que levaria junto a ela, os nomes dos filhos, o tamanho de seu reino e o casamento real. Seus pensamentos logo foram cortados pelas batidas em sua porta.

— Olá meu amigo. Tem tempo para conversar?

— O Papa possui tempo para conversas?

— Sempre para uma alma aflita. Notei que talvez eu tenha desprezado teus sentimentos por minha irmã. Vamos andar um pouco.

— Eu entendo que esteja preocupado, só que eu estou bem.

— Almas contaminadas não conseguem ver o pecado até este ser exibido diante de si.

— Pecado? De novo essa história de tentação? Eu nunca trai a confiança de Deus, a meu único pecado foi ter desperdiçado os anos de minha vida em busca da Cruz em adoração cega. Se ele sabia de meu amor por Alba, por que ele me salvou dos sarracenos? Por que ele se compadeceria com um pecador?

Não sobreveio a vocês tentação que não fosse comum aos homens. E Deus é fiel; ele não permitirá que vocês sejam tentados além do que podem suportar. Mas, quando forem tentados, ele mesmo providenciará um escape, para que o possam suportar.

— Primeira Epístola aos Coríntios 10:13. Como você…

— Esqueceu quem eu sou? Admita seu erro Benedito, você está tentado. A tentação não vem só pela carne, mas por aquilo que é visto contra as leis de Deus. Você acreditou em uma memória, esquecendo o seu objetivo aqui. Você não sobreviveu por Alba, mas sim por sua fé.

Uma aljava de flechas fora jogada contra si. Sim ele estava tentado por Alba, mesmo sabendo que aquilo era algo contra a moral. Colocou tantas expectativas e esperanças em sua mente que esquecera o porquê dele realmente estar naquela cidade, para louvar o Senhor. João tinha razão, buscar a cruz foi um exercício de fé, assim como a provação de Alba era. Estava tão cego pelo poder que renegou toda a sua vida por um sentimento egoísta. Ele sentia vergonha de si mesmo, não podendo se declarar cristão a partir disto.

— Acho que finalmente compreendi. De nada adianta ter feito diversos sacrifícios por Deus, se quando finalmente completo sua missão profano seu nome.

— Todos os mortais pecam de algum modo, a tentação é inerente ao ser humano pelo pecado original. Só que com a força do salvador, todos podemos resistir. Foi assim que eu me tornei Papa, não sou melhor que homem algum, apenas tive a revelação certa. Estava doente, com o pecado corroendo minha alma até que tive a revelação.

— Qual revelação?

“E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará”.

— Essas palavras arrebataram-me ao reino dos céus. Eu me arrependo de tudo que fiz, por isso tomei o nome de João para mim, o apóstolo que Cristo amava, o responsável por espalhar a palavra. Eu preciso espalhar a palavra, as pessoas precisam conhecer a verdade.

"Verdade", essa palavra ecoou por sua mente, o fruto que guardava em sua roupa era o fulgor mentiroso disfarçado de revelação. "Apenas Deus pode revelar a verdade" disse para si mesmo.

— Ainda há redenção para mim?

— O amor do perdão não é um dos ensinamentos de Cristo? Se queremos seguir seus passos precisamos aprender a perdoar o próximo, creio que já reconheceu seu erro.

— Devo desculpas a Deus.

— Não só a Deus, a melancolia tomou conta de Alba. Ela se sente triste por sua dor, esse sempre foi o dom dela, se compadecer com a dor do próximo.

— Obrigado amigo.

Benedito estende o braço, em contradição aos padrões da Igreja João abraça o velho amigo.

— Posso ser o suserano de Roma, mas ainda assim me preocupo com ti meu irmão. Agora vá!

Sobre o altar de uma grande igreja romana um pecador e uma freira se encontram. O arrependimento está grafado no rosto do homem, este se ajoelha diante da cruz. A freira vira-se e diz a frase que poderia curar o mais ferido coração.

— Eu te perdoo.

Ela sorri, enquanto lágrimas caem de sua face.

— Eu fiz coisas terríveis.

— Não fez, ainda estamos aqui, certo? Você ainda é a pedra que sustenta nossos caminhos para o céu.

Eles se abraçam de forma amigável, era tão amável a forma como tudo estava. Ele havia aprendido sua lição e entendido a vontade de Deus. Só que um pecador sempre será um pecador, esse é o pecado original, e naquela noite este tomou forma.

— O que é isso? Nunca vi uma maçã tão bela quanto essa.

Benedito estava tão hipnotizado que nem percebeu quando Alba comeu o fruto proibido. Ela solta o alimento ao chão enquanto coloca as mãos sobre a cabeça e grita. De forma abrupta cai no chão. Benedito se desespera, este fato se consuma quando nota que a freira não está respirando. Não havia ninguém aos arredores da igreja para socorrê-la. Ele estava sozinho com o corpo de sua amada. Não conseguia entender, estava confuso com aquela situação. Poderia a maçã estar envenenada? Seria isso mais uma provação que ele teria que passar para provar sua fé? Nada disso importava para ele, não era forte o suficiente para suportar tal fardo. Acharia a saída mais fácil, mesmo que isso significasse blasfemar o Espírito Santo.

Com a maçã em mãos, respira fundo e morde. A mordida foi como o estilhaçar de um vitral. Ele foi capaz de ver todo o mundo, cada parte deste. Guerras, fome, miséria levados por homens declarados santos. Reinos montados a partir dos ossos de seus súditos enquanto propagavam mentiras. Gritos de horror e desespero eram a massa pútrida que constituía aquela feia espiral de insanidade. Ele viu o mundo como realmente era, tomado por escuridão. Essa era a verdadeira Idade das Trevas.

Os últimos raios de sol banhavam a igreja através dos vitrais, o céu crepuscular não disfarçava a imensa podridão abaixo deste. Alba estava diante do peregrino, com os cabelos esvoaçantes a mostra.

— Você viu, não viu?

Decidiu permanecer em silêncio.

— Fraudes, cobiça, destruição, todos os ensinamentos jogados fora. Lembra-te de meu medo quando era pequena?

Ainda se manteve em completo silêncio.

— Sempre tive medo de Deus, de minha alma ser jogada ao mais fundo inferno por meus pecados. Tinha medo do inferno, das atrocidades que poderiam ocorrer lá. Hoje não tenho mais medo.

Alba vira-se em direção a Benedito.

— Hoje descobri que já vivemos no inferno, e nós somos os próprios demônios.

O olhar triste da moça desaparece quando esta lança um beijo no peregrino, seus lábios doces como cereja se cruzam com os dele em uma explosão lúdica.

— Alba…

— Embora eu tenha visto um mundo inundado de trevas, vi luz vindo de ti. O seu interior reluz.

— Como um pecador pode brilhar?

— Nem tudo que reluz é ouro. Nesta noite não existe nada mais reluzente que ti.

Benedito viu o mundo como era, sentiu a dor de cada irmão que neste vivia, só que algo não estava certo. Ele ainda queria acreditar em Deus, que havia um motivo pra aquilo tudo. Alba o beija novamente, tenta resistir, só que acaba por sucumbir à tentação.

Eles entram em uma comunhão de corpo e sangue diante da imagem do messias, o filho de Deus. Murmúrios amargos podem ser escutados enquanto líquido vermelho pinta o assoalho. Com os portões virgens abertos, ambos saboreiam o doce sabor do pecado. A presença do nazareno apenas deixa a situação mais profana, embora nenhum deles se importasse com o fato.

Sobre o banhar da lua eles se levantam. Alba sorri e abraça seu amado.

— Amanhã partiremos para Pisa, já posso pensar nos preparativos do casamento.

Ela se retira, Benedito está petrificado sobre o luar. A alegria de Alba não fora compartilhada com este. Ele tinha Alba para si, então por quê? Por que não estava feliz? Ele havia, mais uma vez, traído a confiança de Deus. Olhando para suas mãos e em seguida para a imagem do salvador.

— Cristo, o que eu fiz?

Consumido pela culpa, por não ter resistido a tentação e o pior de tudo, por ter corrompido o coração de Alba. Andando como um herege moribundo a procura de consagração, acha uma pequena capela, lá ele vê um padre no interior de um confessionário. Cambaleia até o local e diz:

— Padre, eu pequei.

— Eu sei meu filho.

Uma voz familiar passa por seus ouvidos, aquela voz rouca e maligna. Seus dedos começam a tremer ao sentir a energia pesada que aquela criatura emanava. A porta de seu confessionário é aberta e diante dele está o Papa João XII com o mesmo rosto cínico de sua metade maligna.

— Todos sabemos de seus pecados.

Ele joga o crânio de Benedito contra a madeira, que cai rapidamente desacordado.

Acordando ofegante, como se tivesse passado por um pesadelo, vê um homem de rosto familiar diante de si, este veste roupas de soldado.

— Não te vejo a tempos.

— Que? Onde estou?

— Andou tomando hidromel demais mestre Benedito?

— Espera quem é você?

— Talvez ainda esteja meio tonto por conta do sono. Em resposta à primeira pergunta você está em Roma, em resposta a segunda é Julio. A última vez que vi o senhor foi nos meus 10 anos. Lembra que eu acreditava nessa baboseira de fantasmas?

Benedito estava tonto e confuso, como aquele garoto poderia ter virado um homem em tão pouco tempo? Isso era obra do Papa, ou melhor do Antipapa.

— Poderia me dizer que dia é hoje?

— Hoje é sábado, 14 de maio do ano 964 da Era de Cristo.

Benedito tentou conter o espanto, haviam se passado dez anos. Ele poderia se assustar, só que visto os recentes acontecimentos, nada mais o surpreende.

— Onde esta o Papa?

— Em uma missa privada no Palácio de Latrão, nem os guardas devem chegar perto.

Um trovão pode ser ouvido no horizonte, ambos notam que o céu estava coberto por nuvens vermelhas, como se estivesse sangrando. Benedito deixa Julio sozinho e corre para seu destino. Quanto mais se aproxima do local mais vermelho o céu ficava. As ruas estavam desertas, o que era bom pois não tinha tempo para dar explicações aos guardas. O peregrino abre as portas do palácio, mas não vê ninguém. Encapuzados chegam por trás deste cobrindo seu rosto, tenta se debater por alguns instantes até finalmente ceder. Ele gostaria que seus olhos se mantivessem cobertos, pois o que ele estava prestes a ver era inimaginável. Com o véu removido de seu rosto, ele pode testemunhar com tamanho horror aquela cena implacável. Eles estavam diante do altar com Alba presa de cabeça para baixo no Santa Cruz invertida. Diferentemente das últimas vezes o lugar era bem iluminado, a luz escarlate vinda do céu, que passava pelo teto quebrado, só deixava tudo mais desesperador. O Antipapa falava nomes impronunciáveis até virar-se para o peregrino.

— Por quê?

— Você ainda pergunta?

— Nada faz sentido. Você é o Papa da Santa Igreja, como pode sucumbir a isto. Todas as palavras de revelações sobre resistir à tentação eram mentiras.

— Uma mentira contada há séculos para a humanidade, mas hoje todos conhecerão a verdade.

— Apenas Deus pode revelar a verdade!

— Você é tolo ou está se fazendo, pelo próprio ego? A verdadeira revelação é aquela dada pela Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Esse é o último motivo de eu estar fazendo tudo isso, por estarmos aqui.

— Eu não posso compreender.

— Então deixe-me lhe mostrar a verdade. Durante o martírio de São Pedro o imperador romano Nero, se banhou no sangue do apóstolo, o profano em pessoa apareceu para este.

— Nero foi o primeiro Antipapa?

— Ele foi a pedra base para o dia de hoje. Naquele dia fora feito um pacto secreto entre Nero e Satã, o sangue dos papas estava ligado diretamente ao sangue dos Antipapas. Deste modo para cada Pedro existe um Nero sem exceção, mesmo que o Pedro tenha se tornado Nero em algum momento.

Alba grita em dor enquanto as nuvens começam a girar.

— Por que você precisa de Alba?

— Simples, somos a trindade que testemunhará a chegada do Anticristo. Você é o homem, a representação do Espírito Maligno, nosso mestre não tem o poder de dar a vida, mas você tem. Quando coloquei a marca em sua testa o destino já estava selado. Alba é apenas o receptáculo para a glória do inferno.

— Usou a própria irmã em uma loucura dessas!

— Você cometeu o pecado original, você foi advertido por mim. Eu sabia que não resistiria a tentação, você já perdeu peregrino.

Ao perceber que tudo fora sua culpa, virou o rosto para o chão. O Antipapa se irrita.

— Não banque o inocente comigo! Você comeu o fruto! Você viu exatamente o porquê de estarmos aqui. Desde Gênesis o destino da humanidade é o mesmo que os dos vermes, rastejar sem rumo pela sujeira sugando nutrientes uns dos outros. Nós estamos aqui apenas para refazer esse ciclo de mortes, de novo e de novo. Você ao menos escuta as palavras vazias que saem de sua boca? Essas palavras são para inflar o ego hipócrita dos reinos decadentes. Agora eu lhe pergunto meu filho, o que fazemos com os vermes?

Benedito não queria dar a graça da resposta.

— Destruímos, devemos acabar com esse ciclo de sujeira, vamos nos libertar das mentiras de Deus. Apenas o Anticristo pode destruir a terra, o filho de Lúcifer deverá nascer de onde o filho de Deus morreu, um equivalente místico. Se sinta feliz meu filho, você presenciará a chegada do ímpio, em breve ele varrerá as nações e os reis cairão um a um.

— Você é louco.

Sadictus bate no rosto de Benedito.

— A profecia da serpente enganadora se tornará realidade e seu filho ascenderá aos céus colocando em brasas todas as estrelas de Deus. Você não passa de mais uma vítima da tentação, como disse antes, um pecador não pode me julgar. Agora oremos.

Sobre a presença dos reis do inferno

Alba passa a se contorcer cada vez mais, a dor da moça atravessava o coração do peregrino.

Belial, Behemoth, Belzebu.

O coral profano nomeava os inomináveis. Seu clamor pelos seres das trevas faziam o mais corajoso guerreiro gelar a espinha.

Asmodeus, Satanás, Lúcifer

Naquela grande catedral a virgem chorava sangue, da mesma forma que a cruz era revertida com desdém. Eles estavam ali por um motivo, para entoar a presença do senhor das moscas, para honrar o nascimento do filho pródigo, o verbo do renegado.

Eu amaldiçoo a criança presa no ventre, que por dez anos fora alimentada com a dádiva da perfeição.

O recém-nascido é retirado do interior de Alba. A criança, tão expressiva quanto um cadáver, é levitada no ar enquanto seu batismo começa.

Eu lhe ofereço aos caprichos de Satanás, o verdadeiro regente deste mundo. Agora se inicia o começo do fim.

Eu proclamo o ANO ZERO, Amém

O chão começa a se partir, Benedito continua petrificado sobre o altar inundado pela culpa. Ele bota as mãos sobre o rosto e chora, implorando a Deus que sua alma seja levada diretamente para o mundo inferior, pedindo perdão por tudo que causara. Quando comera o fruto não vira o inferno, aquele era o seu verdadeiro inferno. Ver Alba nua e acorrentada dando vida ao herege.

— O bone Jesu, exaudi me. Sei que não sou digno de tua atenção, sou apenas um pecador sujo que abriu os portões da malícia. Violência, heresia, luxúria, cobiça, quais são os outros? Não sou digno de teu perdão ó senhor, mas por favor proteja Alba, ela não tem culpa. Meu egoísmo mortal a levou para a tentação.

— Eu pequei por fraqueza, Benedito.

Benedito nota que está em um lugar completamente plano e branco, Alba está vestida com seu hábito religioso.

— Onde estamos?

— Não importa, o poder de Deus é imensurável. Apenas saiba que aqui ninguém pode te machucar.

— Por que eu estou aqui? Será que não percebe o que sou? Eu condenei o mundo a destruição! Por que Deus iria me querer seguro?

— Jesus não fora crucificado ao lado de ladrões? Sua cruz já está pesada demais, deixe seu ego de lado e aceite a benção de Cristo, só assim poderá ascender a redenção.

Ela toca no ombro de seu amigo.

— Talvez você não saiba, mas ficamos presos por 10 anos em algum lugar entre a dobra dos mundos. Durante esses 10 anos eu estive acorrentada carregando o ímpio. Mesmo estando parada, saber que a semente do mal crescia dentro de mim, me destruía. Eu estava a ponto de fazer o imperdoável.

— Blasfemar o Espírito Santo.

— Ele me impediu. Como um raio de luz entre todas as trevas, Cristo me impediu, perguntou se eu poderia suportar o fardo de ter o inimigo em meu ventre. Me mantive forte, essa deveria ser minha verdadeira provação para confiar em Deus. Eu confiei nele, e peço que confie nele também, apenas assim poderá purificar o pecado original.

— O pecado original?

— O pecado original é a falta de confiança no Senhor. Foi por ignorar os apelos do pai e dar ouvidos a serpente enganadora que fomos expulsos do paraíso. Agora preciso te pedir que faça algo, não será fácil.

— Qualquer coisa para impedir essa loucura.

— Preciso que me mate.

Um silêncio toma conta do entorno. Benedito, não queria perder sua amada, só que ele não poderia deixar o mundo arder em chamas. Apesar de não ver a relação entre a morte de Alba e a salvação do mundo, ele aceitou.

— Não entendo como isso possa ajudar, talvez nunca entenda, mas eu confio em Deus, sei que ele poderá consertar tudo.

— Obrigado meu amigo, em algum momento você entenderá os planos dele para ti.

Abrindo os olhos, Benedito vê novamente os horrores daquele local, o grito distorcido do Papa agora se fazia presente.

— Esse será o apocalipse, a verdadeira revelação. Olhe meu filho olhe para o destruidor do mundo.

Benedito levita no ar e passa a entoar palavras santificadas.

Anima Christi, sanctifica me.
Corpus Christi, salva me.
Sanguis Christi, inebria me.
Aqua lateris Christi, lava me.

— Espera, o que você está fazendo!

Passio Christi, conforta me.
O bone Jesu, exaudi me.
Intra tua vulnera absconde me.
Ne permittas me separari a te.
Ab hoste maligno defende me.

Usando todo o poder cedido pelo Salvador, Benedito endireita a cruz, fazendo com que a criança caia de forma leve sobre uma mesa.

In hora mortis meae voca me.
Et iube me venire ad te,

Uma lâmina de luz é formada a partir de seu braço direito. Com lágrimas no rosto ele avança sobre a Cruz.

Ut cum Sanctis tuis laudem te.
In saecula saeculorum.
Amen

Ele perfura o centro da cruz, atravessando o coração de Alba, a relíquia sagrada brilha transformando em pó todos os encapuzados no local. O lugar outrora destruído passa a se construir novamente em uma capela. A Santa Cruz se parte em diversos pedaços que voam para todos os cantos do mundo, apenas um deles permanece no espaço, acertando em cheio a barriga do Antipapa. Benedito pode deslumbrar os últimos suspiros de Alba. Com a moça em seus braços, lágrimas correm durante a despedida.

— Sei que não era esse o destino que queríamos.

— Mas foi esse o destino que Deus escreveu para nós.

— Você tem muito valor para esse mundo, sabia? Você ainda fará coisas grandes, posso sentir.

Ela abraça Benedito uma última vez antes de se desfazer em cinzas.

— Bravo, bravo!

Sadictus aplaude. Enquanto solta grandes gargalhadas, seguidas pelo cuspir de sangue. Havia sido empalado por um grande fragmento do Cruz.

— Como pode estar tão contente à beira da morte?

— A morte não significa nada para mim, sou apenas um peão diante da grandiosidade do mestre, já cumpri meu propósito. Mais de mim virão.

— Seu culto perdeu, o mundo está a salvo.

— O mundo nunca esteve e nunca estará a salvo enquanto vocês viverem em uma mentira. Só que ele trará o fim de tudo.

Sadictus aponta para a criança que repousa sobre a mesa, ao seu lado existe um punhal.

— Não, isso não.

— Vamos lá, prove para seu Deus que você tem fé. Assim como Abraão tinha que sacrificar seu filho, você terá também, só que dessa vez não haverá cordeiro para purificar.

Benedito pega o punhal, ao lado da criança. Quem poderia imaginar que aquele ser de aparência tão pura seria o próprio destruidor do mundo.

— Ao menos dê um nome a ele, crianças mortas voltam para assombrar os pais.

Ele dormia tranquilamente sobre a mesa, era meigo ver uma criatura como aquela. Benedito então levanta o punhal e dá início a uma nova era.

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