Até Que As Velas Se Apaguem

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Sabe, eu pensei que não teria um momento pior do que tive em Serra Leoa. Meu nome é Siaka Stevens, eu fui um ex-revolucionário da Frente Revolucionária Unida de Serra Leoa. Eu lecionava história na Universidade de São Paulo antes de tudo acontecer. Vejo que a situação foi de mal a pior, temos poucos suprimentos e as pessoas estão morrendo de pouco em pouco. Não sabemos pelo que lutamos ou por que estamos aqui, mas se está lendo isso significa que ainda temos esperança.

Eu e outros quatro sobreviventes estamos presos na prefeitura da cidade de São Paulo. Desde que o sol se foi as coisas começaram a ficar difíceis para nós. Por pura sorte nós conseguimos encontrar um abrigo seguro nessas últimas duas semanas. Quando o rádio ainda tocava ouvíamos uma transmissão contínua dizendo que os sobreviventes deveriam ir para o Forte Victor, aquilo era um lampejo de esperança. Só que depois de alguns dias as transmissões pararam nos deixando novamente sobre o véu da incerteza.

Nosso grupo é composto por cinco pessoas, além de mim Siaka, há outros sobreviventes. O primeiro que devo citar é Ismael Torquato, ele é o segundo-tenente do exército brasileiro e atuou ativamente na UNAMSIL (Missão das Nações Unidas em Serra Leoa). Eu o conheci no continente mãe, desde aquele tempo formamos um bom laço de amizade. Os demais, fui apresentado quando o caos se instaurou na cidade. Hector, Pedro e Damião, pessoas que eu mal conheço e que nos últimos tempos se tornaram meus melhores amigos. É engraçado como o desespero une as pessoas.

Pedro vasculhava ativamente por toda prefeitura por mais alguns suprimentos.

— Acabou tudo, não há nenhuma migalha. — Arfou Pedro.

— Não pode ter acabado, tem que ter alguma coisa. — Retrucou Ismael.

— Eu conheço esse lugar como a palma da minha mão, trabalho aqui há mais de dez anos.

A situação ia de mal a pior, sem comida não iríamos sobreviver por muito tempo. Hector observava o lado de fora por entre as tábuas presas nas janelas. Hector Rodaviva era um homem velho que mantinha ainda seu velho uniforme de jardineiro. Não tem sido fácil para ele. Durante o evento inicial ele perdeu a esposa, pergunto-me se ele ainda tem vontade de viver.

— Pessoal! — Chamou ele. — Vocês acham que o Forte Victor ainda está ativo?

— Não custa nada tentar. Vamos morrer de qualquer forma se ficarmos aqui por muito tempo.

Nós retiramos de pouco a pouco as tábuas que prendiam a porta. A nossa única segurança contra o mundo do lado de fora. Quando enfim abrimos, aquele bafo gélido veio até nós, não estando ausente do cheiro forte de putrefação. Observando ao redor notamos o grande número de cadáveres sobre as escadarias da prefeitura. Ainda consigo ouvir em minha mente os gritos das pessoas pedindo para entrar, mas como você em breve descobrirá, não só existiam pessoas do lado de fora.

Fomos de carro em carro tentando achar um veículo que ainda tivesse com o tanque cheio. Encontramos um Corsa 2010 dentre todo aquele emaranhado de cadáveres e sangue seco. Eu abri a porta do carro e tentei fazer uma ligação direta. Pela minha experiência em Serra Leoa eu ainda possuía alguns truques na manga.

— Eureka! — Gritei com extrema felicidade. Talvez Deus estivesse do nosso lado afinal.

Damião, Pedro e Ismael foram no banco de trás e eu segui dirigindo com Hector no banco da frente.

— Acho melhor passar na delegacia primeiro, estamos com as mãos nuas. Um soldado como eu não pode se sentir desprotegido.

— Acho que segurança nunca é demais.

Cortamos o caminho e seguimos em direção a delegacia. A cidade de São Paulo que costumava ser bem viva durante a noite está morta. Não posso dizer que elas estão vazias, pois, há centenas se não milhares de corpos espalhados por todos os lugares. Ela se comportava como um grande espaço liminar, prestes a nos abocanhar para a fuga desta realidade.

— Estou vendo alguma coisa.

— Eu também vejo, é a delegacia!

Estacionei com certa facilidade. Ao descer do carro uma energia tenebrosa passou pelas nossas espinhas. Era curioso pensar que um lugar o qual deveria transmitir segurança estava envolto em temor. Nenhum de nós chamou por alguém, pois tínhamos certeza que ninguém responderia. Hector foi na vanguarda, aquele velho senhor realmente não possuía medo da morte. Com uma lanterna já fraca foi iluminando o local. Tinha se passado tão pouco tempo desde que o sol desapareceu, porém aquele local parecia sujo e acabado.

Começamos a procurar por suprimentos e algum tipo de arma. A delegacia a qual era tomada por incríveis corredores estava completamente desorganizada como se um furacão tivesse passado pelo local. Computadores jogados de um lado para outro e sangue nas paredes. No fim só conseguimos encontrar alguns papéis espalhados pela mesa, um pé de cabra, um taser e é claro, mais corpos. Dois homens, ou parte deles, estavam dentro de uma cela. Seu peito parecia ter sido explodido com seus intestinos espalhados por todos os lados.

— Não olhe. — Disse Ismael. — Isso ainda vai te enlouquecer.

— Eu sei.

Suspirei, tentando afastar da minha mente o odor de sangue seco que pairava no local. Já perto de uma janela notamos o formato de uma escopeta.

— Eu sabia que tinham deixado uma arma para trás.

Estava presa em um recipiente de vidro, sendo travada por um grande cadeado. Ismael não perdeu tempo e tentou, de forma ineficaz, forçar o cadeado. Após alguns minutos ouvimos uma batida vindo da janela. Quando enfim olhamos para o local nossos rostos se transfiguraram em tamanho horror. Como se o próprio Diabo tivesse rasgado nossa face de insegurança e brincado com os rumos da própria atmosfera. Uma mão ensanguentada pressionou o vidro fosco. O líquido vermelho escorria loucamente por todo aquele plano. Só pude ouvir o grito agudo de Pedro.

— Corra!

Saímos em disparada sem ao menos olhar para trás. Quando chegamos no carro tivemos a surpresa, ele não ligava. Engoli um bloco em seco com a tensão que sufocava nossas gargantas. Sempre fui um sujeito de sorte, tinha sobrevivido a uma guerra civil na África ocidental. Não poderia morrer de forma tão deplorável sem ao menos ter chegado ao forte. Apesar de tudo parecer perdido minha sorte mostrou que não me abandonou. Fiz a ligação direta sem ao menos abrir os olhos e ele ligou. Ouvir o ronco do motor foi como estar envolto novamente pelo leito de minha falecida mãe. Fazia muito tempo que eu não me sentia daquela forma. Fazia muito tempo desde que eu tivera esperança.

Acelerei com tudo sem olhar para nossos perseguidores. Era melhor assim, o lugar deles era na escuridão. Continuamos percorrendo até sairmos da cidade de São Paulo pegando a antiga BR-116. Durante o percurso ninguém teve a audácia de levantar a voz para entoar uma única palavra se quer. Não os julgo, deveriam guardar energia para os perigos que nos esperavam a frente. Olhando para eles, esse pequeno grupo de moribundos que se apegaram a gota de vida nesse escasso deserto, eu me sinto bem. Quero ver todos rindo e se divertindo quando chegarmos ao forte. Talvez esse fosse o meu maior desejo.

Paramos sem cerimônia quando notamos uma travessia complicada a frente. Estava tudo um breu com a ausência do sol. Só podíamos notar as cadeias montanhosas ao nosso redor em conjunto com os vastos pastos.

— Por que parou? — Perguntou Hector.

— Não estou sentindo tanta firmeza nessa ponte.

— A ponte não parece quebrada vendo daqui, porém não faz mal conferir. Eu e Siaka vamos dar uma olhada. Aproveitem o tempo para esticarem as pernas.

Chegamos mais perto para ver se tudo estava de acordo com a ponte. Notamos então pequenas tachinhas prontas para furar o pneu de que passasse.

— Cuidado! É uma armadilha! — Gritei.

Da escuridão, duas figuras humanoides aparecem. Um falso sentimento de alívio se forma no meu coração ao notar que possuíam feições similares. Um era baixinho de pele clara e segurava em uma das mãos um artefato capaz de explodir o peito de qualquer um. O outro era um careca pardo muito musculoso. Como fui tolo de pensar que eles seriam a única coisa para nos preocupar, enquanto nós ainda estávamos do lado de fora.

— Parado aí mesmo! — Disse o homem com a arma.

Nós lentamente colocamos nossas mãos na cabeça.

— Calma, não queremos confusão.

— O que vocês querem então?

— Chegar no Forte Victor como solicitou o rádio.

O outro homem soltou um grunhido insano o qual fui incapaz de discernir se era um choro amargo ou uma risada ensandecida. De qualquer forma, qualquer traço de humanidade já havia sido retirado daqueles pobres malfeitores que nos pusera de reféns. Talvez eu tenha ido longe demais ao falar que não tinham humanidade, a ausência de sanidade na mente deles indicavam que ainda eram humanos e não as criaturas que nos cercam na escuridão.

— É mentira! Mentira! Não há ninguém lá. O governo nos abandonou.

— Abaixe a arma soldado. Ninguém aqui quer sair machucado.

Ismael era bom em apaziguar, seus dias como funcionário das Nações Unidas o ensinaram a lidar com pessoas em situações de estresse. Podia-se até dizer que ele tinha o dom da palavra. "Não só de tiros se faz um soldado, afinal quem entra em cena quando se têm reféns" ele costumava dizer. Enquanto nosso tenente tentava de forma infrutífera apaziguar nossos algozes, Pedro sorrateiramente colocava a mão sobre um pedregulho jogado ao chão. Hector não ficou para traz e tratou de retira o taser do bolso.

Subitamente eles partem para o ataque. A pedra é jogada em cheio contra a cabeça de um deles. O outro se apavora, tenta desesperadamente colocar as mãos no revólver do aliado, porém, os fios vindos do taser o atingem em cheio. Ele urra de dor enquanto seu corpo se contorce ferozmente após diversos espasmos de agonia. O perigo imediato havia sumido. Os dois estavam esparramados no chão e em breve serviriam de alimento para aqueles que nos vigiam na escuridão.

Estas coisas são verdades.
O mundo está escuro.
Nós movemos os corpos desacordados.
Com alguns suprimentos fizemos um coquetel molotov.
Tomamos a arma de nossos bandidos.
Voltamos para o carro.
E nós estamos vivos.

O Forte Victor ficava na cidade de Santa Isabel, ainda demoraria um pouco para chegar até lá. Pelo retrovisor eu olhava fixamente para Damião o qual possuía um grande explosivo em mãos. Aquela garrafa cheia de gasolina poderia ser a nossa salvação. Damião era um antigo piloto da FAB, não sabíamos muito sobre ele, era realmente um homem de poucas palavras. Para ser sincero ele era do tipo que preferia agir do que falar.

Após algumas horas já estávamos completamente afastados de qualquer resquício de civilização. Campos abertos, entradas de sítios e grama alta, a zona rural não iria manter as criaturas distantes de nós, contudo uma certa calmaria impregnava o meu ser. Eu sei que faltava muito para termos algum tipo de paz. A nossa única companhia era o asfalto da estrada que era percorrido rapidamente.

Pedro havia avistado a placa da cidade de Santa Isabel. Adentramos no município envolto pelas cadeias montanhosas e relevos irregulares. Estávamos perto do Forte Victor, muito perto, mas como sempre nosso fio de esperança foi cortado subitamente por uma barragem na estrada. O resto do caminho deveria ser feito a pé. Engoli em seco aquela revelação, não queria acreditar que teríamos que nos expor tão facilmente as criaturas. Estávamos em frente a barragem a qual era a entrada para um longo bosque. Dois quilômetros, falei para mim mesmo, somente dois quilômetros. Era o necessário para enfim chegar ao forte.

É redundante a este ponto comentar que o bosque era escuro, porém, aquele local conseguia emanar uma escuridão diferente. Estranhamente tal passagem aparentava possuir uma personalidade própria como um maelstrom apenas esperando para nos sugar para dentro. As árvores retorcidas davam-nos boas-vindas. Elas sorriam de forma que não conseguimos ter um minuto sequer de alívio. Adentramos no bosque, portando apenas nossa coragem em mãos. Os feixes das lanternas poderiam nos afastar deles, só que não funcionariam por muito tempo. Apesar de odiarem a luz, eles tinham outras formas de se misturar na escuridão.

A primeira hora foi particularmente tranquila, apesar de completamente sufocante. Após algum tempo nossas pernas estavam começando a dar sinais que iriam ceder. Era previsível pensar que estávamos notavelmente cansados. Já fazia bastante tempo que não tínhamos uma boa refeição. O ronco em nossas barrigas tornava-se ensurdecedor. Até que por pura conveniência demos de cara com uma aceroleira, não era muito, mas foi o suficiente para limpar nosso esôfago.

Pedro apontou a lanterna para uma espécie de cabana no meio do mato. Possuía um telhado triangular por cima de um longo retângulo de madeira. Pedro aproximou-se da casa, estava muito escuro para que eu pudesse notar qualquer movimento. Quando Pedro virou para nós, não era mais ele, apenas um reflexo distorcido de horror e desespero.

— Eles estão aqui! — Gritou ele.

Saímos em disparada entre as árvores daquele insaciável bosque. De relance pude ver as criaturas se aproximando. Eles eram como… Eles eram como… Sua aparência era similar a.. Droga!!! Não consigo nem se quer descrevê-las sem que eu sinta um arrepio percorrendo por minha espinha. Os inarráveis estavam a nossa procura. O som que saiam de seus corpos moribundos era como se alguém estivesse perfurando meu crânio com uma furadeira. Quão terrível foi. Uma eletrizante euforia percorria meu corpo. Eu tinha que sobreviver. Precisava sobreviver. Ao longe podíamos ver a silhueta do Forte Victor. Eu não podia morrer naquele momento, não tão perto de encontrarmos nossa luz entre toda essa escuridão.

Damião não tardou e acendeu um dos coquetéis. O explosivo voou pelo ar como uma fada em disparada, prestes a destruir nossos perseguidores. Até que um grande clarão se fez. Um clarão tão grande que poderia invejar a formação crepuscular que a tanto tempo eu não via. Eu podia chorar de alegria ao desbravar tal obra de arte piromaníaca. Luz! Sim, luz! Era o que precisávamos.

Os cadáveres de nossos inimigos foram rapidamente se dissolvendo. Todo aquele fogo ia se dissipando, devorando aos poucos cada árvore do bosque. Não houve planta, animal ou criatura capaz de parar o avanço das labaredas celestiais. Quão belo foi. Estava com os olhos vidrados fixamente nas chamas purificadoras quando de forma célere.

— Ei Siaka! Ei! — Olhei para o lado e vi rosto de Hector. Aquele rosto velho e cansado.

— Vamos. Temos que sair daqui.

Acenei com a cabeça e segui com os outros. Pude notar um sorriso de alívio vindo de meus companheiros. Nós agradecemos Damião por ter nos salvado. O homem fez um gesto de "de nada". Saímos um tanto lentos. Estava tão frio com a ausência do sol que me perguntei se ser engolido pelas chamas não seria uma saída mais fácil. Nossa esperança estava logo a frente. O forte, com toda sua magnificência, estava em pé diante de nós. Íamos lentamente até a construção, mas poucos passos para sair do bosque. Sentimos o toque gélido do medo. As brasas atrás de nós haviam subitamente se apagado. Aquela sensação de alívio foi suficiente apenas para nos dar um singelo suspiro de descanso.

Corremos desesperados até dar de cara com as grades que cercavam a construção. Não daria para pular, pois a parte de cima estava tomada por fiação elétrica. Seguimos pela lateral até encontrar o portão. Tocamos o interfone esperando alguma resposta. E felizmente ela veio. Aquela voz. Uma voz tão desesperada e temerosa como as nossas choramingava do outro lado.

— Quem está aí?

— Nós somos sobreviventes.

— Impossível! Só existem eles do lado de fora!

— Não! Nós somos humanos de carne e osso.

Era uma voz feminina que mal podia juntar duas sílabas. Qualquer um de nós estava muito nervoso para falar qualquer coisa. Não poderia ser verdade, não chegamos tão longe para ser barrados na porta. Hector tomou a frente e de forma suave tentou convencer a moça.

— Escuta aqui moça, nós viemos por causa do rádio. Disseram que poderiam nos ajudar.

— Não! Não! Não! Todos aqui estão mortos. Eles vieram e mataram todos, não há ninguém.

— Por favor moça, eles nos pegarão se ficarmos do lado de fora. Eu te clamo. Por favor.

Após alguns minutos a voz respondeu.

— Tudo bem, vou abrir muito rápido.

— Muito obrigado, moça. Muito obrigado.

Os portões do Éden se abriram para nós. A essa altura do campeonato, pouco importava do que tinha do outro lado. Lá nós depositamos nossa esperança e nesse lugar seguro nós teríamos a nossa tão sonhada paz. Era como se o tempo estivesse parado, como se todos nós estivéssemos cegos diante de tudo. Não sei dizer se havia corpos, monstros ou suprimentos do lado de fora. Tudo aconteceu num piscar de olhos, como se fossemos arrebatados para o outro mundo.

Quando me dei conta já estávamos do lado de dentro. Uma das luzes florescentes piscava sobre nós. Apoiei-me sobre uma das paredes e caí. Comecei a gargalhar. Você só sabe dar valor a vida quando está prestes a perde-la. Eu toquei no chão, observei as paredes de concreto e encarei as luzes por algum tempo. Enfim havia chegado o meu momento. Eu finalmente havia chegado ao meu lugar seguro. E naquele momento, eu tive esperança.

Olhei por tanto tempo para a lâmpada sobre minha cabeça que meus olhos estavam aos poucos ficando cegos. Recobrei a realidade após meu lúdico descanso. Agora, olhando com um pouco mais de calma, vi que os corredores estavam com manchas de sangue por toda parte. Hector segurou firme o taser e Ismael aprontou o revólver. Sabíamos que as criaturas não poderiam nos alcançar lá dentro, porém, nosso local seguro não parecia estar em ordem. Seguimos até o segundo andar da instalação, novas manchas de sangue, sem sinal de corpos. Estava tudo tão iluminado que era possível ver o reflexo de nossos rostos cansados nos poucos espelhos que encontrávamos.

No meio do corredor ouvimos soluços baixos. Um choramingar amargo que ecoava por toda instalação. Quando nos aproximamos da escuridão ela surgiu. A moça que nos dera abrigo estava diante de nós. Sua pele era escura como a minha, seus cabelos duros como a muito tempo não fossem lavados e o seu rosto estava tomado por lágrimas secas. Ela apontava uma faca para nós em um ato falho de se defender.

— Calma moça, nós somos humanos.

A mulher cai ao ouvir as palavras proferidas por Pedro.

— Eles vieram e mataram todos. O meu marido… — Ela cai em prantos até se recompor novamente.

— O meu marido foi até o subsolo para tentar ligar as luzes externas. Já faz uma semana que ele não voltou.

Eu me aproximei da moça.

— Olha, vai ficar tudo bem. Nós sobrevivemos e você também vai.

Apesar de minhas palavras bonitas, eu sabia em meu íntimo que a nossa grande esperança não era um local tão seguro assim. O Forte Victor havia sido invadido, não havia garantia que as luzes se manteriam acesas para sempre.

— E agora? O que nós faremos?

— Não sei. Não há para onde ir.

— Só que nós não podemos ficar aqui.

Nós refletimos por algum tempo. A moça após se acalmar se apresentou como Dolores, ela costumava ser uma professora no passado, antes de tudo acontecer.

— Por que não pegamos um avião?

— Avião? Para onde?

— Lembro que Damião já foi piloto da FAB. E lembro também que o Aeroporto de São José dos Campos é perto daqui.

— Esse é seu plano? Voar?

— Qualquer lugar é mais seguro que aqui.

— Droga. Chegamos tão longe para nada.

— Não foi para nada, ainda temos esperança.

Falei em voz alta. Dolores disse que havia alguns jipes na garagem que poderiam ser usados como transporte. Então estava decidido mais uma vez nós partiríamos em busca de paz e segurança.

Estas coisas são verdades.
O mundo está escuro.
Nós descemos pelas escadas do forte.
Ligamos o jipe.
Saímos em disparada a rumo ao avião.
Passamos por vales, colinas e bosques.
Chegamos ao Aeroporto.
E nós estamos vivos.

O lugar estava completamente vazio. Não havia sinal de qualquer ser ou criatura naquele grande horizonte de concreto, ou era o que achávamos. A escuridão rondava o vasto espaço, o silêncio era o que escutávamos. Ao longe, perto de um dos terminais, um voo comercial pairava solitário. Damião exclamou que deveria ser um jato do modelo PREMIER IA. Nos aproximamos devagar do pássaro metálico. Ismael foi na frente, estava portando um longo pé de cabra nas mãos. Nós ouvimos alguns barulhos vindo de dentro da aeronave, então ficamos a postos. O velho soldado abriu suavemente a porta e subiu as escadas. Cada passo seu fazia um estrondo. Nós estávamos na retaguarda prontos para o confronto com o que quer que tivesse do outro lado. Passamos nossa jornada toda fugindo, não poderia ser sempre assim. Com o coração na mão ele adentrou na escuridão, de lá uma figura sombria surgiu. Ismael não tardou e cravou o pé de cabra na cabeça do ser. Após alguns instantes meu amigo ficou paralisado, ele olhou para trás e lágrimas escorriam de seu rosto.

— Ei. Está tudo bem?

Dolores olhou dentro do avião e começou a gritar. Seus olhos cederam as lágrimas e ela caiu ao chão. Eu me aproximei, como previsto não era uma criatura, tão pouco um homem sádico. Oh Deus! Aquilo era um jovem. Não devia ter nem seus 17 anos. Suas faces rosadas e magras eram entupidas pelo sangue escarlate que pulsava de seu crânio. Ismael começou a tremer, como se algo tivesse sido arrancado dele. Um homem que sempre zelava pelos inocentes havia ceifado a vida de um.

— Eu era! Eu era uma professora! Eu deveria zelar pelos jovens, protege-los. Eu falhei. — Dolores gritou.

Eu tentei em vão acalma-la. Era impossível. A dor de tirar a vida de um semelhante pode ser insuportável. Eu e Hector retiramos o corpo do rapaz. Quando toquei nele um arrepio passou pela minha nuca. Então seria assim que eu iria terminar? Apenas uma esfera amorfa sem vida? Não. Não podia ser assim. Embora fraco eu ainda tinha esperança. Damião ligou os motores do avião e subimos rumo aos céus. Não importava se estávamos a quilômetros das criaturas, ainda assim sentíamos medo. Um medo tão forte que era capaz de nos afogar em completa escuridão. Voávamos sem rumo em busca de um lugar melhor, mas para que? Para ser devorados pelas criaturas que viviam na escuridão? Para morrer de fome em alguma vala comum? Ou até mesmo para ter nossos crânios perfurados por um semelhante? Eu não tinha respostas. Só restava esperar.

Damião notificou que teríamos que fazer uma parada de emergência, após voar por algumas horas o combustível estava acabado. Pousamos no Aeroporto Tom Jobim no Rio de Janeiro, só que desta vez não estávamos sozinhos. Eles ouviram nossa chegada. De todas as frestas, prédios e buracos eles surgiam. Damião começou a encher o tanque. Nós só precisávamos aguentar por alguns minutos. As criaturas se moviam lentamente em nossa direção. Ismael arrancou o revólver do coldre e disparou contra um dos monstros. A cada tiro, sua face era iluminada. Um sentimento de horror tomou conta de meu ser. A face de Ismael não estava séria e concentrada como de costume, mas sim com um sorriso sádico impregnado em sua face. Ele gritava aos berros.

— Caiam soldados! Caiam! Eu nunca deixarei vocês pegarem meu esquadrão.

Ele gargalhava em sintonia com as balas, uma melodia estridente era formada naquele espetáculo de horrores. Sua mente parecia ter se dividido em milhões de pedaços, sendo suportada apenas por uma casca vazia de impulsos. Hector protegia Dolores, só tinha o taser para se defender. Pedro estava iluminando o avião enquanto Damião abastecia. De pouco em pouco, eles caiam um a um. Ainda assim eram muitos. Ismael explodia, o que deveria ser a cabeça deles, de uma forma tão brutal que eu não conseguia nem reconhece-lo. Os estrondos pararam depois de alguns instantes, apenas pequenos cliques podiam ser ouvidos. As balas finalmente acabaram, e nós estávamos sozinhos na escuridão. Por sorte, isso foi suficiente para Damião abastecer o jato. Nós corremos para dentro e mais uma vez subimos sem rumo.

Já no avião, nada podia ser dito. Hector retirava um pequeno pingente com a foto de sua falecida esposa enquanto cantarolava uma música familiar. Ismael mantinha os músculos rígidos, presos a poltrona do avião, como se estivesse preso em um pesadelo sem fim. Eu não o julgava, todos nós estávamos. Dolores soluçava em intervalos de tempo irregulares, algumas lágrimas eram derramadas no piso. Damião e Pedro se mantinham a postos no trabalho de não deixar o avião cair. Já eu, não sabia se estava preparado para mais um encontro com as criaturas. O avião desceu entre uma pista de pouso improvisada em algum local longe da costa. Pedro disse que era a ilha de Fernando de Noronha.

Olhando para fora, observei o mar. Tão negro quanto piche pela ausência do sol. A areia da praia estava fria e inerte e os poucos ventos que sopravam prenunciavam o abraço da morte. Havia uma pequena cabana onde poderíamos descansar e tomar alguns suprimentos. Damião preferiu ficar no avião, então eu e os demais entramos. Fizemos turnos de vigia de duas em duas horas. Ninguém conseguiu dormir de fato, a pressão em nossos ombros era tanta que era impossível deixar o estado de alerta. Primeiro foi Hector, depois Pedro, logo em seguida Ismael e por fim eu. As criaturas ainda não tinham nos alcançado naquele lugar. Talvez estivessem nos dando um momento de alívio, apenas engordando a presa antes de devorar.

Durante meu momento de vigia, observei uma luz se aproximando ao longe. Eu sabia que não eram eles, eles odiavam a luz. Conforme a foi se aproximando pude deslumbrar que uma criança havia se aproximado de nós. Ela devia possuir por volta dos dez anos de idade, tinha tranças no cabelo e um vestido surrado. Ela carregava consigo uma pequena vela. Não fiz cerimônia ou perguntas, apenas deixei que ela entrasse. Os outros não notaram sua presença de imediato. Após do término de meu turno eles finalmente interagiram com a garota.

— Devemos chama-la de vela?

Perguntei para os outros. A garota balançou a cabeça em negação. Ismael parecia ter se acalmado e seu olhar sádico cheio de peso havia enfim passado.

— Acho que esse não é o nome dela.

— Certo, qual é então?

A garota começou a se comunicar em linguagem de sinais. Tirando Ismael, ninguém fazia ideia do que ela estava dizendo.

— O nome dela é Adriana.

— Não pode ser só coincidência.

— O que isso tem a ver?

— Adriana significa "aquela que vem da Ádria" ou "aquela que é escura". Isso até poderia ser um mal presságio visto de que Ádria é escuro, porem essa palavra tem origem em Adar. Adar é o Deus do fogo. Talvez essa garota seja a luz que precisávamos para desbravar a escuridão.

— Quem sabe, luz é sempre bem-vinda nesse momento.

Ele lança um longo sorriso. No fim Ismael estava certo, nós, um bando de vagabundos, se apegando a vida tão desesperadamente, tínhamos que encontrar algo para lutar, para proteger. Damião chega depois de muito tempo. Ele não trouxe boas notícias. Aparentemente o avião estava com problema de sobrepeso e não poderia levar mais uma pessoa a bordo. Ismael olhou para a garota e levantou o braço. Antes que pudesse soltar qualquer palavra uma mão pousou sobre seu ombro.

— Não. Eles precisam de você. Eu vou.

— Não! Você não pode!

Não adiantava pestanejar. Hector estava seguro de seu destino. Aquela face velha e cansada tomada pela barba branca de um homem que já viveu o que deveria viver. Olhando para criança ele sabia o que era mais importante. Todos possuíam velas em seu entorno e a dele em breve iria se apagar de qualquer modo. A verdade que nenhum de nós gostaria de aceitar era que Hector já estava morto. Não existia nele algo realmente forte que o apegasse à vida. A escuridão não só tirou o sol dele, mas também sua esposa, seus filhos, sua alma. Ele seria apagado para que nós sobrevivêssemos, tirando o peso de seus ombros e finalmente extinguindo esse seu grande fardo.

Colocaria todas as suas apostas na garota. Eles seguiram para o lado de fora, cada um se despedindo ao seu modo do amigo. Ismael deu um forte abraço no velho, aquela seria a última vez que iria vê-lo. Eu também abracei Hector, porém em meio a tristeza senti um completo alívio por ter sobrevivido. Pode ser egoísta de certa forma, deixar um amigo para trás para que eu sobreviva. Essa definitivamente foi a minha queda e mostrou o quão frio pode ser o homem. Hector me disse uma vez sobre sua esposa, que eles adoravam ouvir Frank Sinatra. A música que ele estava cantarolando no jato, eu sabia que conhecia, era My way. Nós subimos novamente no avião. Adriana fez um gesto de adeus com uma das mãos. Tínhamos passado por tantas coisas juntos, mas no fim ele escolheu o próprio caminho. Ele fez do seu jeito, e ninguém poderia tirar isso de Hector Rodaviva.

Olhando pela janela pude testemunhar o semblante sério de meu amigo enquanto ele se despedia. O avião subiu e Hector permaneceu sozinho na escuridão. De todos os cantos eles chegaram até ele, se alimentaram de sua carne de forma tão violenta que no fim só um borrão preto podia ser deslumbrado. Esse foi o fim de Hector Rodaviva. O estado ensandecido de Ismael havia retornado, o velho soldado balbuciava frases sem sentido.

— Não se preocupem soldados. Eu vou proteger meu esquadrão. Eu vou mata-los, vou matar todos eles.

Ele se tremia com uma tensão imensa, os outros estavam ficando assustados. Dolores começou a se tremer também. Seu olhar de tremendo horror estava fixo em meu amigo.

— Ismael já chega! Está assustando ela.

— Mas eu vou mata-los. Você vai ver. Vou fuzilar todos. Assim como fazíamos em Serra Leoa.

Com essa frase de Ismael, Dolores começou a gritar histericamente.

— Nós vamos morrer. Nós vamos morrer também! Vamos acabar igual ao Hector!

Ela se tremia como um animal prestes a ser devorado pelo predador. Seus gritos expurgavam todo desespero interno. Eu me aproximei da moça e um grande estalo foi escutado. A face dela estava vermelha e minha mão pairava sobre a lateral de seu rosto. Eu mesmo não acreditei no que havia feito. Mesmo durante meus anos de guerra, eu jamais ataquei uma mulher, porém dessa vez foi necessário. Ela estava prestes a pular no abismo da insanidade. Olhei sério para ela.

— Já chega! Eu disse que ninguém vai morrer!

O meu tapa trouxe a desgastada professora de volta a realidade. Permaneceu quieta por alguns instantes com seus olhos fixos nos meus. Como forma de cortar toda a tensão o rádio do avião começou a apitar.

— Alô, alô, câmbio.

Ismael pegou o aparelho e começou a falar.

— Sim, sim. Estamos aqui.

— Aqui quem fala é o Capitão Carlos do 14º batalhão de infantaria recifense. Quem está falando? Identifique-se.

— Eu sou o segundo-tenente do exército, Ismael. Estamos em um avião com um grupo de sobreviventes.

— Sobreviventes? Certo. Temos uma base aqui em Recife, se conseguirem chegar podemos acolhe-los com mantimentos e um local seguro. Aguentem firme em breve nos encontraremos.

— Obrigado, muito obrigado.

Nós vibramos de alegria. No fim realmente havia esperança para todos nós. Abracei Dolores e levantei Adriana pelos ares. O Capitão Carlos passou as coordenadas para Damião. Sentei-me na cadeira, relaxado. Olhei para trás e pensei em Hector. O sacrifício de nosso amigo no fim não seria em vão. Observei cada um dos presentes. Dolores estava deitada ao lado de Adriana, possivelmente tentando acalma-la. Ismael estava a todo momento se comunicando com o rádio, encontrando uma forma de apaziguar todo sentimento interno. Pedro permanecia sério auxiliando Damião em suas funções. Relaxei por alguns instantes ao pensar que aquele sonho antigo de ver todos em segurança estaria finalmente se completando.

Damião disse para nós que deveríamos pular do avião, já que não havia pista de pouso nos arredores da base. Primeiro foi Ismael, deu-me um forte abraço e saltou de paraquedas. Logo em seguida foi Pedro. Dolores se estremeceu um pouco por achar que iria falhar diante da grande queda, ela encheu os pulmões de ar e saltou. Eu deveria pular com Adriana presa a mim. Ajeitei a garota junto ao paraquedas e observei a altura. Por alguns instantes tive motivos para hesitar, mas logo senti que perto das criaturas aquele salto de fé não seria nada. Então como uma pluma em pleno ar eu me joguei. Contei 30 segundos e abri o paraquedas. Estava muito nervoso, mas a garota conseguiu me acalmar, colocando sua mão sobre a minha. Ela era a esperança, era a última vela que iria queimar eternamente na ausência do sol. Precisava fazer isso por ela.

Caímos em cima de uma casa a poucos metros da base. O avião acabou por cair em algumas rochas perto da descida. Foi um barulho estrondoso, a luz que a explosão causou seria o bastante para afastar as criaturas. Deixamos de observar todas as chamas e descemos pela varanda. Fomos cautelosos, o portão estava lá diante de nós. Seria fácil, havíamos sobrevivido antes, agora não seria diferente. Coloquei a garota em minha corcunda e segui em frente. Corri até o portão ficando para trás com a garota e como se já nos esperassem, eles vieram. Saíram de todos os lugares, como uma armadilha. Sim realmente era uma armadilha. Eles preferiram a mim que possuía muita carne em meu entorno. Com toda força que me restava eu arremessei Adriana pelos ares. Uma das criaturas pulou em minhas costas, rasgou minha barriga trazendo meus intestinos para fora.

— Salve a garota!

Urrei em um sentimento de desespero misturado com dor. Pedro segurou a criança pela mão e a levou para perto do portão. Eles se arrastavam pelo chão em sintonia com minhas gotas de sangue que manchavam o asfalto. Olhei em volta e não pude ver Dolores. Damião acendeu um dos coquetéis e lançou contra o grupo de monstros que se formava. A explosão desintegrou vários, porém o piloto estava perto demais e acabou falecendo com as chamas infernais. Ismael se virou para as figuras negras e retirou duas facas do bolso.

— Eu vou lutar até o final.

E assim o fez. Lutou até o último suspiro contra os devoradores de homens. As facas cortavam a carne das criaturas de tal modo que era difícil saber qual era o sangue de meu amigo e qual era o sangue deles. Ismael morreu como viveu, um verdadeiro soldado com um único objetivo: Defender os inocentes. Só restava Pedro e a garota, quando estava a poucos metros de chegar, o portão rapidamente se fechou. Não é possível entender os motivos de tal ato nefasto. Talvez o porteiro tenha ficado com medo das criaturas se aproximando. Talvez eles tenham mudado de ideia. Talvez, só talvez tudo isso seja uma grande piada e nossos corpos despedaçados sobre o chão preto tenham se tornado um espetáculo diante de seus olhos. Independente de qual fosse o caso, aconteceu. Estávamos sozinhos com as criaturas.

Pedro em um último gesto de altruísmo abriu o bueiro e lançou a garota aos esgotos. Eles chegaram sobre Pedro, perfurando seu peito e saboreando sua carne. Não dá para saber sobre o que se passou em sua cabeça em seus momentos finais, talvez tenha pensado em seu cachorro de estimação ou em seu antigo trabalho. Enquanto a mim? Atirado sobre o chão vi a tocha sendo levada adiante. Adriana carregaria nossa vontade de sobreviver até o fim. Para mim a vela já havia se extinguido, mas a dela ainda demoraria muito tempo para se apagar.

Estas coisas são verdades.
O mundo está escuro.
Nós lutamos com todas as forças.
Atravessamos desafios.
Provações.
Passamos a luz adiante.
Sacrificamos tudo.
E nós estamos mortos.

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