Autonomia, Parte I
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Uma mistura de chuva torrencial e água do mar bate contra o convés do The Loose Neutron enquanto Agente Trauss corre do corrimão traseiro e entra em uma das portas laterais do barco. Ele remove seu capacete e torce seu cabelo, água suja espirrando pelo chão de grade. Tropeçando enquanto o navio cambaleia, ele corre pela pequena grade de corredores e entra na cabine principal.

"Capitão," ele diz, seu colete e equipamento encharcados e formando uma poça no piso de madeira. "Capitão Delacruz. Tem uma enorme entidade nos seguindo. Ela parece grande o suficiente para danificar o casco."

Delacruz se vira, apoiando seu corpo magro e idoso contra o encosto da cadeira enquanto ele gira. Ele parece confuso. "Eu não consigo lidar com esse furacão no piloto automático, sabe. Eu tenho que focar. Está caindo um dilúvio. O que você acha que viu, filho?"

"Um cefalópode. Você não poderia perdê-lo de vista mesmo nessa chuva. Ele é laranja. Eu vi uma grande seção de seu corpo. É do tamanho de uma fragata."

As rugas no rosto de Delacruz se achatam conforme ele arregala os olhos. "Ele já nos alcançou? Se eu for mais rápido vocês não conseguirão ficar de pé lá fora."

"Está a apenas algumas centenas de metros atrás da gente. Ele está definitivamente se aproximando. Eu vi ele pela primeira vez pelos binóculos uns 10 minutos atrás. Ele estava duas vezes mais perto quando eu olhei antes de vir pra cá."

Ele acena com a cabeça. "Certo. Vá pegar seu companheiro Rogers e suba nas armas traseiras." Sua voz falha sob o ruído de seu sotaque sulista. "Mas não disparem até eu falar. Eu acho que podemos fazer ele perder interesse se acelerarmos, mas se preparem lá fora."

"Sim senhor."

"É 'sim capitão'. Fale comigo pelas comunicações do seu capacete quando vocês estiverem prontos."

Trauss finge uma risada e faz uma saudação falsa enquanto ele se vira e corre de volta para o corredor. Ele entra na sala de caserna e se aproxima de Agente Rogers, que está relendo uma cópia de SCP-3848 enquanto ele se reclina em sua cama. Ele esteve fazendo isso bastante. "Ei," ele começa.

"Por quê você está todo molhado?"

"Eu preciso de você no convés comigo. Tem um cefalópode massivo atrás do barco e ele está se aproximando. O capitão nos disse para manejar as armas traseiras."

"Merda, certo." Rogers rola para fora da cama e veste suas botas.

"Você estava sem suas botas enquanto nós viajamos através de uma zona quente de 3036? Nós estamos nos aproximando do Sítio. Isto é o pior de tudo."

"Eu estava tentando não ser paranoico," ele bufa

"Me encontre lá. Eu preciso me certificar que aquela coisa não está mais próxima."

"Certo. Ei, a de 20 milímetros é minha!" ele fala atrás dele.

Trauss retira o cabelo do rosto e coloca seu capacete de volta, abaixando a viseira e se preparando para as condições externas. Ele respira profundamente e abre a escotilha de estibordo, a chuva batendo contra seu equipamento e contra a roupa de mergulho abaixo enquanto ele desliza pela escada e cai no convés. Ele luta contra o vento enquanto cruza a curta distância da escada até a arma de arpão na traseira, pegando ela com uma mão com luva e se puxando para o assento.

Ele posiciona o visor da arma para ficar no mesmo nível que seus olhos e ajusta o foco, aumentando o zoom no horizonte. "Capitão, estou no arpão. Estou procurando por ele agora." Suas botas não são à prova d'água, e a água fria entrando está começando a distraí-lo.

"Onde está o Rogers?" A voz de Delacruz crepita em seu capacete sob o som da água correndo.

"Um minuto ou dois atrás de mim. Espere." Ele escaneia o horizonte. "Merda, eu não estou vendo ele."

"Tenho nada na frente, filho."

A visão das ondas cinza escuro e da chuva muda repentinamente para um borrão de laranja. Trauss se sacode em surpresa e reduz o zoom, refocando as lentes para revelar a visão de tentáculos transparentes se contorcendo e se debatendo na água, sua estrutura interna destacada por carne laranja fosforescente e veias. "Porra. Essa coisa está mais perto do que eu imaginava. Cerca de 113 metros de distância."

"À sua esquerda," Rogers diz no headset enquanto se aproxima. Sendo significativamente mais volumoso que seu colega, ele não tem problemas com o vento enquanto ele pula no assento do canhão automático de 20mm montado vários metros à esquerda de Trauss.

"A entidade está a 110 metros."

"Me diga quando é para disparar, Capitão." Trauss só consegue ouvir Rogers pelo fone de ouvido, os sons dos elementos sobrepondo sua voz.

"Não dispare, Agente Rogers. Mantenha conhecimento da posição da entidade."

Trauss gira o visor para o centro da massa da criatura de novo. Ele diminui o zoom. "75 metros."

"Subindo para 35 nós, galera."

Trauss apoia suas botas na moldura enquanto a embarcação acelera, suas costas contra o assento e os braços esticados. "65 metros."

"Por quê não posso disparar contra essa coisa? Ela claramente nos vê!"

"Eu disse pra esperar, Agente!"

"60 metros."

"Aproximando de 40 nós."

Trauss é grato por não ter senso de escala para velocidade enquanto o The Loose Neutron dispara através de ondas imponentes, o spray de cada impacto imergindo o convés em água fria do mar. Ele sente umidade começando a entrar em seu traje próximo ao seu pescoço. "50 metros."

"Eu não consigo ir mais rápido do que isso, companheiros-"

"Eu poderia disparar agora mesmo, Capitão!"

"Isso pode piorar bastante as coisas, filho, eu disse pra esperar!"

"30 metros."

"Porra!"

"30? Cristo, certo, disparem quando prontos!" o Capitão grita. O fone de ouvido de Trauss grita e geme, o som de estática aparecendo. O som dos disparos automáticos preenche o ar e domina o barulho do furacão enquanto Trauss foca onde os disparos de Rogers estão acertando na criatura. Líquido amarelo fluorescente sai pelas feridas de bala antes da carne ao seu redor se reformar imediatamente.

"Fodendo esperava por isso," Trauss murmura, sabendo que nenhum dos outros podia ouvi-lo. Ele assiste a criatura mergulha para baixo sob as ondas, os tentáculos atrás dela.

"De jeito nenhum," Rogers murmura.

"Falem comigo, garotos."

"Ela mergulhou para baixo da superfície, Capitão."

A embarcação se move para frente, a força pressionando Trauss contra o assento. "Estou desacelerando para 20 nós. Entrem agora."

Trauss sai de seu assento, escorregando no metal molhado. Ele cai no convés com um forte barulho e vai direto para a escotilha mais próxima, chuva cobrindo sua viseira de rosto e embaçando sua visão.

"Entre aqui," Rogers grita, abrindo a escotilha para ele. Trauss pisa na borda da escotilha quando a embarcação se inclina para o lado sem aviso, tirando seu equilíbrio e fazendo-o cair e deslizar pelo convés. Seu colete e equipamento protegem ele da maior parte do impacto, mas seu capacete bate contra o corrimão de aço com uma força que deixa ele tonto. Ele engasga e tosse enquanto a água do mar atinge seu rosto.

"Não solte!" A voz de Rogers parece distorcida e agitada no capacete danificado de Trauss.

"Não planejo fazer isso," ele fala, dedos ao redor de uma das barras de aço do corrimão. Ele assiste a água abaixo dele mostrar um pouco de algo laranja se movendo abaixo da superfície. O navio cambaleia na direção oposta e suas luvas escorregam, fazendo-o voar para cima em um arco e bater de volta no convés assim que o navio se estabiliza. Uma dor bate em sua caixa torácica e na coluna vertebral antes que uma pontada de cócegas em sua cabeça anulasse a dor. Sua mente se atrapalha em pensamentos devaneadores sobre esta ser a primeira vez que seu implante N3 notavelmente afetou ele enquanto ele rola de costas, balançando com o barco.

Trauss fica de pé no convés agora nivelado, quase incapaz de ver. Três tentáculos laranjas disparam pela chuva atrás dele. Ele luta e rola, ainda consciente do dano feito à sua coluna apesar dos contra-efeitos do N3 contra a resposta à dor. Um dos tentáculos o faz tropeçar, batendo sua cabeça contra o convés. Ele faz contato visual com Rogers conforme o homem mais velho sai da escotilha e começa a ir na direção dele, dizendo algo no que parece ser câmera lenta. O maior dos três tentáculos envolve a garganta de Trauss enquanto ele tenta afastar os dois menores, levantando ele do convés e arremessando-o para ficar acima da água corrente. Suas vértebras estalam, enviando dor pela suas costas e lados enquanto ele luta para se segurar na pele lisa da criatura. A resposta do N3 em seu cérebro é imediata e avassaladora, inundando seus membros com um calor entorpecedor e fazendo sua cabeça e ouvidos palpitarem.

"Não entre em pânico! Nós vamos fazer algo, porra!" A voz de Rogers sequer registra enquanto Trauss olha para o corpo da criatura segurando ele. Sua cabeça emerge, parecida com uma lula com dois olhos laranjas e pretos brilhantes, as córneas detalhas e vividas. A expressão em suas íris transmite uma presença sapiente, o nível de inteligência de que Trauss infere que ele não pode entender completamente. Ela aperta seu apêndice ao redor de seu pescoço, pontos pretos começando a aparecer nas bordas de sua visão. Ele ouve tiros mais rápidos do navio, mas o aperto da anomalia não vacila. Ele perde sensação em seus pés e dedos, o pulso batendo devagar. Um dos outros homens diz algo pelo seu headset, mas ele não consegue processar a frase, e apenas geme em resposta. A última coisa que ele vê antes de sua visão apagar é o olho da anomalia, sua pupila do tamanho de sua cabeça, olhando diretamente para ele enquanto sua consciência drena de seu corpo.


"Tem aqueles de nós que são a Fundação, e tem aqueles de nós que servem a ela."

Trauss abre seus olhos. Eles estão grudentos, como se ele tivesse dormido por séculos. Luz branca penetra sua mente enquanto ele tenta levantar a cabeça.

"Você sabe em que lado desta linha você está? Você quer saber em que lado desta linha você está?"

Trauss senta-se verticalmente e procura pelo falante. Manter seus olhos abertos custa muito esforço; ele reconhece por isso e pela falta de sensação em suas pernas que ele deve estar sonhando. Ele pisca três vezes e foca no homem em frente a ele: alguém mais velho que ele, vestindo um terno preto de três peças, uma barra preta obscurecendo os olhos independentemente do ângulo em que sua cabeça esteja inclinada ou de como ele se move. Trauss tenta falar, mas nenhum som sai, e ele percebe que ele não pode formular uma frase de qualquer jeito. "Sonhando?" ele diz. O som que sai parece que está sendo produzido debaixo da água.

O homem faz o mais próximo de contato visual que ele pode, cabeça centralizada atrás da censura. "Você sabe quem você é?"

Ele tenta responder, mas quanto mais ele processa seus arredores, mais a sua interpretação se despedaça; ele não vê seu corpo mesmo quando ele olha para baixo, e ele sequer tem um pescoço para inclinar para inicio de conversa. O homem em frente a ele está sentado em uma mesa, mas atrás dela há uma extensão de espaço cinza sem textura. A luz é ambiente e sem fonte e totalmente branca.

"Parece que você não pode ficar neste momento." ele abaixa sua cabeça para olhar para seu relógio. "Espero te ver novamente." Trauss vê um pouco de seu rosto, e o simbolo exibido nele envia um pico de dor em sua cabeça.

Ele pisca e a sensação fantasma dos olhos que ele costumava ter bate sombriamente no que sua mente se lembra de suas terminações nervosas. Sonhando, ele pensa, e permite que a onda de nada incompreensível o domine.


Trauss está ciente de que ele ficou consciente antes de seu corpo, e ele fica vários segundos entrando em um pânico interno enquanto ele não responde. A escuridão que o envolve se levanta quando alguém remove o pano preto de seu rosto. Ele sacode sua cabeça e olha de soslaio para a luz fluorescente, distinguindo três pessoas em pé ao redor da mesa em que ele está espalhado.

"Puta merda," um dos pesquisadores diz baixinho.

"O- Uh, oi," ele gagueja, limpando sua garganta enquanto se senta verticalmente. "O que aconteceu?"

"Poderia dizer sua identificação?"

"C-51174. Cyrus Trauss, Sítio-42. Er, digo- bem, é de lá que sou." Ele olha para si mesmo, se perguntando do porquê dele estar em um macacão de classe-D. Ele processa a sala ao seu redor, sabendo que ele nunca esteve aqui antes; os tetos são baixos e cheios de conjuntos de tubos e fios, e o piso e as paredes são compostos de um material cinza fosco desconhecido. A porta atrás dos pesquisadores é estreita e arredondada nas bordas, com uma faixa de LEDs brancos correndo em seu perímetro.

Uma das duas mulheres dá um passo adiante. "Agente Trauss. Bem-vindo à Área-32 Lunar."

Ele olha, vasculhando suas memórias internamente. Ele havia saído do Sítio-42 no The Loose Neutron. O processo foi bem tranquilo por várias horas. Ele havia visto algo e correu para dizer ao Capitão… e então o quê?

"Nós sabemos que talvez você esteja tendo dificuldades em processar isso." Sua voz é mais clara que a maioria, e ela enuncia um pouco demais, fazendo-a parece quase robótica. Trauss estremece e agarra a borda da mesa. Seu corpo se sente desproporcional e pesado de uma maneira que ele não consegue identificar. "Teve um acidente envolvendo uma entidade anômala liberada por SCP-3069. Você foi morto em ação por essa entidade às 17:20 em 4 de Julho de 2041."

Ele engole seco, sua boca seca.

"Você é uma cópia da consciência de Agente Trauss, salva via seu PII às 18:08 em 4 de Julho de 2041. Você tem a personalidade, memórias, e certificações dele. Não tem aspecto do cérebro humano que o PII não possa traduzir para ED-K++ e salvar como um arquivo digital. Você é Agente Trauss, totalmente, menos doze minutos de memórias e seu corpo original."

Ele se sente doente, a natureza direta da explicação dela parecendo um soco no estômago. "Eu- Eu estou morto. Eu morri."

"Aquele corpo morreu, mas você está bem aqui e vivo em outro corpo."

"Esse- esse é um classe-D. Você amnesticizou um classe-D e me colocou no corpo dele."

O homem fala. "Não. É mais estranho do que isso," ele tosse, tom na linha entre sardônico e grave. "Certamente. Esse corpo tem 95% do seu DNA original, e tem tecnicamente apenas sessenta dias de idade, porém a idade equivalente estimada baseada na saúde e na aparência é de 30 anos. Usando tecnologia similar à de SCP-2000, nós somos capazes de clonar-"

"Oh Deus. Oh, porra." Ele se inclina para frente e gesticula para a lata de lixo atrás da mulher que estava falando. Ela entende e dá a lata para ele rapidamente, olhando para o lado enquanto ele vomita bile e uma substância azul brilhante.

"Isso é apenas fluído preservativo. Não é possível remover ele todo até que o corpo seja autônomo e capaz de digestão e regurgitação."

Ele acena com a cabeça, desejando que ela parasse de falar. Toda e qualquer informação sensorial faz seu ouvido interno doer e palpitar. "Ok."

"Você entende?"

"Sim. Só me dê um minuto."

"Claro. Leve o tempo que precisar para se recuperar. Se você quiser, nós podemos esperar lá-"

"Não, não," ele diz, mãos tremendo. "Desculpe, eu só- não quero ficar sozinho agora." Sua respiração fica presa na garganta como se estivesse prestes a chorar, o que ele sente como que se não fizesse há anos. Ele tenta se distrair, fungando e enxugando os primeiros vestígios de uma lágrima. "Que dia é hoje?"

"7 de Setembro de 2041."

Ele congela. "Se passaram dois meses? O que eu estive fazendo por dois meses?"

A pesquisadora chefe cruza suas mãos nos pulsos e olha para ele com simpatia. "'Você' era um arquivo chamado 51174.edk no disco rígido daquele computador por dois meses." Ela aponta para o monitor de tela sensível ao toque montado na parede ao lado dela. "Nós precisávamos de tempo para sintetizar esse corpo depois de receber as notícias que apenas dois dos nomeados da Diretiva A-42 chegaram ao Sítio-3069. Aquele script então foi colocado no corpo que você atualmente ocupa aproximadamente 20 minutos atrás."

"Esse corpo tem o mesmo PII que o meu corpo real?"

"Na verdade, um bem mais avançado. Você tinha o N3, e este é o N4."

"Qual é a diferença?" ele rouca, garganta queimando.

"Você será providenciado com uma cópia do esquema quando você for informado amanhã."

Ele acena com a cabeça, outra onda de náusea tomando ele. Quando sua visão escurece e sua cabeça começa a girar ele faz a decisão de se deitar novamente. Ele não tem certeza de se seu corpo está tremendo por causa da temperatura ou do sofrimento emocional, mas é sobrecarregante e ele logo se vê perdendo consciência de novo. A pesquisadora chefe diz algo sobre garantir que ele tenha proteína suficiente em sua dieta enquanto a sala fica fora de vista e sua cabeça bate contra a mesa de aço.

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