Um quebra-molas que apareceu no caminho sem aviso quase fez César botar o café da manhã todo para fora.
"Porra Santos." Disse o cabo, com a voz trêmula. "Vai mais devagar cara…"
"Me desculpe, princesa." Respondeu Santos, em tom de deboche. "Mas a gente não tem o dia todo. O sargento quase arrancou a minha cabeça fora porque você demorou meia hora pra se levantar."
"Ah, foda-se…" Disse César, olhando pela janela, tentando focar em algum ponto fixo no horizonte, porém o balanço do caminhão tornava aquela tarefa quase impossível. O cabo já havia feito aquele trabalho diversas vezes. Era simples, era rápido e ele era recompensado. Mas mesmo assim, só de ver um fósforo aceso César sentia seu estômago revirar. Talvez nem seja o trabalho em si. Interrogar alguém e se livrar do corpo. Ele estava acostumado àquilo tudo. Mas o cheiro. Aquele cheiro fazia o cabo ficar tonto toda vez. "Pelo menos o lugar é perto." Pensou César, enquanto fechava os olhos para tentar descansar um pouco.
"Acorda César. Eu nunca mais vou te deixar dormir seu desgraçado." Disse Santos, enquanto dava alguns socos no ombro do companheiro. "Se a gente fizer isso logo, ainda dá tempo de pegar o almoço quente."
César lentamente tirou sua cabeça da janela, olhando em volta para tentar entender onde estava. "Canedo." Pensou o cabo. A estrutura principal da usina ficava pouco mais à frente do caminhão, no topo de uma pequena colina. César pegou sua pistola e a pasta arquivo do porta-luvas, abriu a porta e saiu do veículo.
O cabo ficou alguns segundos parado, observando a grande chaminé de tijolos, abaixo do céu nublado. Ele colocou sua arma no coldre da cintura e se dirigiu à traseira do caminhão, para ajudar seu companheiro.
"Finalmente." Disse Santos. "Vamos."
César pegou uma das pontas da lona, levantando-a com seu companheiro, para revelar três pessoas deitadas no chão. Os dois soldados entraram no veículo, e começaram a levar aqueles homens para fora. Após botar o último deles de joelhos no gramado, César começou a retirar os sacos de pano de suas cabeças.
O homem do meio vestia um terno cinza listrado, um par de sapatos de couro e uma gravata vermelha, enquanto os dois outros vestiam apenas regatas brancas e calças beges, além de sandálias de couro.
"Então…" Disse Santos, retirando seu fuzil das costas. "Acho que vocês sabem como isso funciona. O sargento pediu para dar uma última chance de vocês dizerem onde está isso aqui."
Santos estendeu a mão para César, que o entregou a foto do objeto.
"Bom, não posso prometer nada, mas talvez vocês escapem de virar churrasco, e fiquem simplesmente em uma cela. O que acham?"
Os homens permaneceram em silêncio, olhando fixamente para a foto.
"Tudo bem, tudo bem. Sei que a oferta não foi muito honesta. E provavelmente seria melhor morrer do que voltar pras mãos do delegado, não é?" Nenhuma resposta. "Vamos fazer assim então, na maior sinceridade, ou vocês falam onde está essa porra, e eu dou um tiro na cabeça de cada um logo, ou vocês não dizem, e aí a gente vai ver qual aguenta mais tempo na fogueira. Que tal?"
"Quem vocês pensam que são?" Disse o homem no centro. "Vocês acham que só pelo seu general estar no gabinete presidencial, vocês controlam tudo que acontece no país? Vocês são ridículos. Nós três, somos nada. Já cumprimos nosso papel. E nada que você oferecer aqui vai nos fazer mudar de ideia. Na próxima, que tal comprar alguma coisa no leilão, ao invés de tentar destruir ele? Assim você acaba levando alguma coisa para casa, e todo mundo ganha."
"É… Talvez você tenha razão. Mas eu não dou a mínima. Meu trabalho é dirigir um caminhão e soltar bala em filhos da puta como vocês. E aí, nada? Bom, vocês que sabem. Vem César, me ajuda aqui."
O homem do meio foi sendo arrastado pelos dois soldados em direção aos fornos da usina. Chegando nos espaços, César abriu a primeira escotilha, derramou o óleo dentro e ajudou Santos a colocar o homem dentro daquele pequeno espaço. Depois fechou a escotilha, acessou o compartimento de baixo e jogou um fósforo aceso dentro.
Em um segundo o calor já fazia os dois soldados suarem, enquanto era possível ouvir os gritos de agonia do homem em chamas. Os dois se dirigiram de volta ao caminhão, levando o segundo homem para o mesmo destino.
Ao levar o terceiro para as fornalhas, o mesmo quebrou seu silêncio. "Por favor, por favor não! Calma, eu falo, eu falo onde tá."
"Ah. Já era hora." Disse Santos. "Vamos, fala."
"É um armazém, no meio da estrada, na 213 com a 153. Armazém C-08." Disse o homem. "Agora por favor me mata, não me faz queimar, me mata antes."
"GO?" Perguntou César, anotando na pasta arquivo em sua mão.
"Sim. Sim. Agora, por favor, vamos."
"Por quê você falou?"
"Você acha que eu devo tudo àqueles caras? Eu era empregado. De fora. Eu não quero saber das merdas que eles fazem, eu só levo o carregamento. Se eu sair daqui, eles me matam, de um jeito muito pior que uma fornalha. E aqui, se eu posso escolher, eu prefiro morrer rápido. Agora por favor. Acaba logo com isso."
Santos retirou novamente seu fuzil das costas, em seguida dando um tiro de misericórdia na cabeça do homem. Os dois soldados logo colocaram seu corpo na fornalha, repetindo o mesmo processo de antes.
César parou por um segundo, finalmente percebendo o cheiro que se espalhava pelo local.
"Vamos logo, Santos." Disse o cabo, sentindo o embrulho em seu estômago. "Vamos limpar essa merda e dar o fora de uma vez."
"Que horas são, César?" Perguntou Santos, acendendo um cigarro.
"Meio dia e quarenta."
"Porra. Vamos ter que se contentar com almoço frio. De novo."
"Nem sei se eu quero almoçar hoje."
*
*
*
Marcos suava muito, suas mãos quase escorregando do volante, enquanto ele constantemente apertava o acelerador e olhava para o velocímetro, tentando manter uma velocidade suficiente para sair daquela loucura e para não ser parado pela polícia.
Amanda checava o retrovisor, para saber se a caixa na traseira do caminhão de mudanças estava inteira.
"Anda mais devagar, a gente gastou quase todo nosso dinheiro nessa coisa. Eu não quero ver esse negócio quebrando por causa de um buraco qualquer na estrada." Disse Amanda.
"Porra!" Marcos respondeu em um grito. "Digo… Desculpa amor, mas pelo amor de Deus, você não viu o que aconteceu lá dentro?"
"Eu vi Marcos. Mas não estamos mais lá dentro. E essa estrada está vazia. Nós jogamos quase tudo fora por causa dessa coisa e eu não quero perder isso por uma bobagem na rua."
Marcos respirou fundo, encurvando suas costas e apertando o volante com toda sua força.
"Anda mais devagar, amor…" Amanda disse, antes de ser interrompida por Marcos.
"Olha. Quer saber? Estou até pensando agora. E se pararem a gente? E se perguntarem o que tem dentro dessa merda? Hein? O que você vai dizer?"
"Eu não sei, Marcos. Mas se você dirigir essa merda que nem gente ninguém vai nos parar, você consegue entender isso?" Amanda respondeu em um tom mais alto, começando a perder a calma.
"Calma aí!" Gritou Marcos, olhando para o lado. "Quem que me convenceu a comprar essa porra foi você! Que me convenceu a me mudar de estado! Que me convenceu a…"
"Olha pra rua caral…"
Um ônibus vindo no sentido oposto deu a Marcos o tempo de apenas virar o volante para a direita. Sua mão escorregadia não ajudava a manter o controle do veículo, que logo tombou ao lado da estrada, dando mais algumas voltas até acabar num rio.
Marcos lentamente abriu seus olhos, para perceber que estava de cabeça para baixo, preso pelo cinto de segurança de seu assento. Olhando para sua esquerda ele pode ver a água entrando rapidamente pelos buracos da janela. No outro lado, sua esposa, imóvel.
"Amanda…" Marcos disse, cuspindo um pouco de sangue em sua boca. "Você tá bem?"
Silêncio.
"Amanda?"
A água começava a encher aquela parte do veículo.
"Amanda." Marcos esticou o braço, tocando no ombro de sua esposa.
A água começava a tocar a ponta dos cabelos de Marcos.
"Mas… Mas que merda." Disse Marcos, por fim, antes da água cobrir seu rosto todo.
"Central?" Tobias perguntou no rádio da van.
"Fale, Delta-25." Respondeu um homem, pelo mesmo rádio.
"Estamos andando por mais de três horas e não há nenhum sinal de qualquer entidade envolvida com o leilão. Permissão para voltar para a base?"
"Negado, 25. Temos no mínimo sete objetos sendo transportados nesse momento, por membros de dois Grupos de…"
"Sim Central. Eu sei da missão. Vamos olhar mais um pouco."
"Ótimo."
Tobias olhou para trás, vendo seus três companheiros conversando na parte traseira do veículo. "E pensar que iria ter quase uma guerra inteira aqui…" Pensou ele, desapontado de não poder disparar seu fuzil contra ninguém.
"Ei!" Disse Tobias, olhando para o retrovisor. "Lorenzo. Tem mais uma maçã aí atrás?"
"Tem." Respondeu o companheiro.
"Passa aqui."
Tobias deu uma mordida na maçã, voltando a se concentrar na estrada à sua frente.
"Mas o que…" Marcas pesadas de pneu pelo asfalto, traçando um caminho para a direita da estrada, de onde vinha uma fina fumaça, fizeram Tobias parar a van. "Vamos pessoal, todo mundo pra fora. Acho que encontramos alguma coisa."
Os quatro saíram do veículo, com suas armas em mãos, lentamente andando em direção a fumaça. Alguns passos abaixo naquela elevação foram o bastante para que ele pudesse confirmar. "Um caminhão." Pensou Tobias. "Mas… Civil?" Talvez fosse apenas um acidente na beira da estrada, mas ele precisava confirmar. Nenhum dos homens aguentava mais um segundo naquele lugar.
"Lorenzo, vai pela direita. Nando, verifica a parte esquerda. Nicolas, comigo."
O veículo estava completamente destruído, de cabeça para baixo, com a cabine quase toda submergida no rio que passava mais à frente. Tobias e Nicolas se dirigiram para a parte traseira, enquanto o restante da equipe verificava se havia algum sobrevivente.
"Tobias!" Lorenzo exclamou, ao lado da cabine amassada. "Dois corpos, de baixo d'água."
"Relicário?" Tobias perguntou.
"Não. Parecem civis."
"Deixa eles aí então. Ajudem a gente aqui."
Por mais que a tranca da traseira do caminhão estivesse destruída, a condição geral do veículo dificultava a abertura da porta. Alguns minutos se passaram, até que os homens conseguiram abrir um espaço grande o bastante para que Tobias pudesse entrar. Se esgueirando pelo buraco, o líder da equipe se encontrou diante de mobílias destruídas, decorações arruinadas e alguns tapetes enrolados. Além, é claro, de uma grande e brilhante caixa de metal. "Bingo." Pensou Tobias, arrastando a caixa de volta para o buraco por onde ele havia entrado.
Tobias entrou na van novamente, pegando o rádio para informar seus superiores, antes de dar partida no veículo.
"Central?"
"Diga."
"Conseguimos."
"Quantas?"
"Uma."
"Confirmado?"
"Relatório de venda e termos de uso do Relicário recuperado junto do objeto."
"Ótimo."
"Permissão para retornar à base?"
"Concedida, Delta-25."
Tobias enganchou o comunicador de volta no rádio, suspirando aliviado. O homem deu partida na van, pegando o sentido contrário da estrada, de volta para o sítio de onde os quatro vieram.
"Ei, Tobias?" Perguntou Lorenzo, dos fundos do veículo.
"Fala."
"Por quê a gente não abre esse troço logo?"
"Caralho Lorenzo, como você pergunta isso toda vez?"
"Sei lá cara, provavelmente vai ser nossa única chance de ver o que tem aqui."
"Eu tenho que realmente te lembrar das dez razões para não abrir essa caixa?"
"Tá bom, calma. Tô só perguntando."
"Se contenta em ler o panfleto, cara."
"Vamos lá. 'Registro de venda 0273. Produto: Duas…"
"Lorenzo?"
"Sim."
"Lê dentro da porra da tua cabeça."
Os outros homens deram uma gargalhada.
"Vá à merda Tobias."