Registro de Incidente 122-PT-Ψ

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O ambiente estéril, as fortes luzes e o cheiro adocicado-podre tornavam o Necrotério do Sítio PT33, por mais improvável que isso fosse, um dos locais mais populares das instalações. Desde que você não estivesse vivo.

Dentre suas várias mesas inoxidáveis, uma comportava um homem espadaúdo de cabelos negros, cerca de 1,80m de altura e vestido com uma farda militar. Seu semblante pétreo e porte conferiam-lhe a aparência e imobilidade de uma estátua, não fossem os hematomas, cortes e o distinto buraco em seu peito logo ao lado da identificação que lia "O- NASCIMENTO".


Luzes vermelhas. Alarmes sonoros. Dores de cabeça.

Ser um pesquisador na Fundação Lusófona não era uma tarefa fácil. Nascimento parou por um momento para olhar-se no espelho do banheiro de seu escritório. Pálido, a barba por fazer emoldurando sua mandíbula, penteado, sua farda alinhada impecavelmente, seu coldre e bainha assegurados na axila, carregando sua arma pessoal e faca, respectivamente.

Respirou fundo e tentou ignorar a sensação ruim que se acumulava em seu peito. O barulho do alarme de incêndio ainda lhe incomodava tremendamente. Depois de alguns segundos de reflexão, voltou ao seu escritório. O local era uma extensão de casa para Nascimento. Ao longo dos anos, escolhera e trocara alguns dos móveis, preenchera as prateleiras com dezenas de coisas. Observou o estofado de sua cadeira que já estava gasto, sua escrivaninha que mantinha-se limpa devido à recente informatização dos processos da Lusófona, mas se lembrava perfeitamente dos montes de papel que um dia teve que utilizar.

Pegou seu terminal de cima da mesa, um aparato no formato de um tablet, desenvolvido especificamente para atender as funções de um computador de serviço pessoal. Quando colocou o dedo na tela, lembrou-se de o porque mantinha o aparelho silenciado.

A situação havia sido confirmada como uma emergência real pelo Departamento de Segurança. Utilizou o canal geral do Departamento Médico para informar aos demais coordenadores das circunstâncias.

Dirigiu-se para seu paletó, encasacando sua cadeira, completamente reclinada para trás e vestiu-o. Utilizava o mesmo equipamento há anos, de modo que as camadas de proteção traziam uma sensação de familiaridade ao seu corpo, apesar do peso. Respirou fundo, girou nos calcanhares, ajeitou sua postura e caminhou pela porta de seu escritório para os corredores do Sítio PT33.

"Senhores." Nascimento assentiu ao grupo de três brigadistas que lhe aguardavam.


A iluminação de emergência e as luzes dos alarmes conferiam um aspecto de filme de ação clichê aos corredores do Sítio PT33. Os sistemas de proteção contra incêndio haviam sido ativados nos níveis técnicos e operacionais das instalações do Departamento Médico, forçando a ativação da brigada e a evacuação geral dos funcionários não essenciais.

Coordenadores ativos eram, obrigatoriamente, membros e líderes de brigada. Para alguns, cabia a função de auxiliar na evacuação, e para outros, a função de realizar a vistoria para identificar os focos de incêndio e danos no local.

O protocolo era relativamente simples. Verificavam seções, avaliavam a situação e integridade dos processos paralisados ou objetos ali contidos, comprovavam o funcionamento dos sistemas de proteção contra incêndio e prosseguiam.

Seu trabalho era, de forma simplificada, utilizar suas credenciais ou seu molho de chaves para liberar alguns acessos e realizar a análise técnica das situações que não envolviam a parte de incêndio, garantindo a conformidade de paralisação e segurança dos processos de seu Departamento.

Esta vistoria da brigada era redundante, de certa forma. Todas as câmaras possuíam proteção de primeira classe contra incêndios, enchentes, terremotos e demais catástrofes previstas. Durante uma catástrofe todos os sistemas de segurança não essenciais, como câmeras e demais alarmes locais de contenção eram desativados para isolar os sistemas elétricos, entretanto, pontos e terminais de acesso ainda eram monitorados pelos sistemas de segurança.


O terminal de Nascimento notificou-lhe sobre o acesso de um de seus assistentes ao interior da câmara que comportava um projeto extremamente específico. Franzindo o cenho, tentou contatar o terminal do indivíduo. Uma, duas, três, quatro vezes sem resposta. Instintivamente apalpou seu bolso em busca do celular, porém o havia deixado em seu escritório.

Nascimento não era supersticioso, mas o trabalho com anomalias lhe conferiu uma predisposição para confiar em seus instintos. O fator humano sempre abria margens para erros que não poderiam ser previstos apenas com lógica fria.

Os homens da brigada de incêndio pareciam ter notado a brusca redução da velocidade de seus passos. "Tudo bem, Tenente-Coronel?" perguntou um deles. O questionamento fez Nascimento respirar profundamente.

"Mudança de planos, senhores." explicou-lhes, gesticulando para seu terminal. "Alguém está preso numa das câmaras. Vamos."

Os brigadistas apenas assentiram com a cabeça e começaram a seguir Nascimento, que tomou a dianteira, movendo-se de maneira focal ao local de interesse. Havia um certo desconforto no ar, sabendo que teriam que voltar e vistoriar novamente os locais e ainda preencher um boletim de ocorrência com a inconformidade.


Não demorou muito para chegarem na câmara de contenção designada. Depararam-se com uma silhueta virando a esquina numa intersecção de controle e desparecendo. Os homens que antes estavam tratando isso como algo costumeiro ficaram sérios, ordenando quem quer que seja a parar e se apresentar.

Nascimento não foi capaz de verificar a existência de nenhum outro terminal naquela direção. A tensão tornou-se palpável e, nos poucos segundos que as ordens e comunicações demoraram para ser transmitidas, os três brigadistas haviam partido em perseguição, deixando Nascimento sozinho junto à câmara.

Do lado de fora, tudo parecia normal. Nascimento sentiu os pelos da nuca se eriçarem. O terminal de seu assistente ainda estava ativo, porém, sem qualquer resposta. Deveria esperar? Ansiedade era um problema que havia combatido desde que se entendia como um ser humano e, naquele momento, sentia como se um bloco de gelo estivesse sido depositado em seu estômago.

O treinamento militar atuou como se fosse uma segunda natureza. Começou a respirar lentamente e sentiu seu coração diminuir o ritmo. O primeiro passo para resolver qualquer problema é manter a calma.

Era um homem paciente, mas com limites. Não era a primeira vez que alguém fazia alguma besteira, propriamente dita, e acabava preso numa câmara de contenção, nem a primeira vez que alguém utilizava uma câmara para se esconder de problemas maiores. Talvez a situação fosse esta. Apenas um "talvez" já era justificativa o suficiente.

Liberou o acesso à câmara de contenção e guardou seu terminal no bolso. Sacou a pistola CZ 75 do coldre de sua cintura e, com a arma empunhada, adentrou a antessala do local. Ouviu a porta atrás de si fechando-se automaticamente após alguns segundos.

A câmara de contenção era similar a um cofre bancário de valises sensíveis, projetada em seções individuais separadas por portas eletrônicas, cada seção uma sala com dezenas de guarda volumes embutidos nas paredes e algumas mesas metálicas. Era um ambiente estéril, agora com baixa iluminação devido às circunstâncias.

Encontrou-se com três membros da brigada de incêndio dentro do local, cadáveres fardados e paramentados. Havia tempo que acostumara-se com o cheiro de sangue. Não sabia se era por conta do lugar, ou da situação, mas sentia um miasma metálico. A baixa iluminação não permitia identificar com precisão a provável causa mortis.

Respirou fundo, desejando que os sistemas de rádio estivessem funcionais neste momento. O protocolo ditava que deveria pedir reforços, mas talvez o pesquisador nesta câmara estivesse em perigo. Seguiu pelas salas até a última porta, um sinal sonoro agudo indicando sua liberação. Abriu-a rapidamente após notar uma figura distinta sentada no chão e recostada na parede esquerda, aparentemente desacordada.

"Rodolfo?" perguntou Nascimento, abaixando sua arma e adentrando a pequena sala em direção ao referido assistente. Atrás de si, a porta fechou-se automaticamente. Não fazia sentido o homem ter sido trancado ali. Esta porta não precisava de uma credencial específica para abrir por dentro.

Antes que Nascimento pudesse reagir, ouviu uma voz suave, — "Bem-vindo, Doutor Nascimento." —, acompanhada da distinta sensação de algo metálico encostando no lado direito de suas costelas.

"Retire a munição da arma e jogue ela no chão, bom Doutor," a voz instruiu. Nascimento respirou fundo e lentamente obedeceu as instruções, mostrando o processo de desarmamento logo acima de sua cabeça antes de deixar arma e pente caírem.

"Vai me usar como moeda de troca? Ou vai me matar que nem fez com o Rodolfo?" perguntou Nascimento, deixando suas mãos na cabeça. Sua resposta foi um silêncio estoico; neste interim, percebeu a tentativa de arrombamento da tranca de um armário de contenção em específico que deixou marcas em sua porta.

"Você tem um trabalho à fazer, Doutor," a voz instruiu. Uma mão enluvada apareceu na periferia dos olhos de Nascimento, indicando o armário danificado. Ambos sabiam exatamente o que deveria ser feito, agora reiterado pela pressão da arma em suas costas. Quanto seu algoz sabia?

"Mesmo que eu abra o armário, o objeto está contido numa caixa de aço com uma chave específica. Não tenho como abrir ela sem essa chave," Nascimento replicou calmamente, andando em direção ao referido armário.

"Não se preocupe, Doutor. Neste tabuleiro, você é apenas um peão. Abra o caminho para outras peças."

Nascimento respirou fundo e virou-se lentamente. Peão? Peças? As engrenagens começaram a girar em sua mente. O homem que o encurralava era alto. Apenas isto e arma em sua mão eram distinguíveis. Havia algum tipo de anomalia que embaçava sua visão especificamente no corpo do indivíduo. Como se o cérebro de alguém se negasse a reconhecer uma parte extremamente específica da realidade.

"E uma destas peças tem interesse num objeto que pertenceu ao Relicário?" Nascimento questionou, movendo-se de forma lenta e deliberada, sinalizando que retiraria seu molho de chaves do bolso, mostrando-o. Virou-se, então, para a fechadura do armário, uma Bowley Lock Grade 2 customizada pelo Major Lobo.

Não era a toa que o infiltrador não havia conseguido abrí-lo. A fechadura sofisticada presente quase que universalmente no Sítio PT33 era o que impedia um sistema de chave-mestra. Algo de que antes reclamara, agora funcionaria a seu favor. Teria mais tempo para pensar enquanto localizava a chave correta no molho de chaves. Lembrava-se exatamente das reuniões discutindo a segurança, agora arrependia-se de ter votado contra a mudança dos cadeados para versões de alta segurança.


"Isto é para as peças em questão decidirem, Doutor," o Rei de Paus respondeu conclusivamente.

Não recordava-se de burocratas agindo desta forma. Mas, sabia como solicitar agilidade nesses processos. Usualmente, a reação conjurada era pânico. Conjecturou que burocratas do exército talvez fossem um pouco diferentes, provou-se incorreto após ter visto alguns literalmente tendo crises histéricas. Era bom algum tipo de mudança.

Viu o "Doutor" abrir a primeira porta do armário lentamente. "E depois que você pegar a seringa você vai fazer o que? A instalação está completamente selada graças aos alarmes que você ativou," Nascimento o questionou.

Não pode deixar de sorrir, mesmo que brevemente. Infiltração era uma arte. E, em todo seu charme, sua parte mais cativante era deixar algumas perguntas sem resposta. Tinha talento para planejamento e execução, mesmo que fosse de improviso.

"Como eu já lhe disse, Doutor, seja um bom peão e mova-se." — respondeu. Após adquirir a Relíquia, incapacitaria Nascimento e o levaria. A narrativa era simples: Um funcionário que sabia demais decide abandonar tudo e levar embora o trabalho de uma vida. Eficaz.

Viu o "Doutor" abrir uma das gavetas, puxando-a vagarosamente. Tudo daquele local parecia ser extremamente pesado, limpo demais, protegido demais. Dentro da referida gaveta, Nascimento puxou um paralelepípedo de aço, indistinguível de um montante maciço, não fossem as alças e a fechadura na lateral do contêiner. O design forçava quem quer que seja a retirar completamente a caixa da gaveta para abrí-la. Aparentava ter problemas para carregá-lo. Claro. Caras que são muito grandes são sempre aparência demais e força de menos.

Não conseguiria pegar a Relíquia ali devido ao tamanho pequeno da sala. Seria necessário que Nascimento carregasse o contêiner para fora da sala para abrí-lo adequadamente.

Deu alguns passos para trás, mantendo seu foco claramente em Nascimento. "Venha, meu bom "Doutor," instruiu, desbloqueando a porta. Teria que ficar segurando a ativação mecânica da porta para que Nascimento passasse.


Nascimento não respondeu. As palmas das suas mãos suavam, tornando sua pegada escorregadia. Desde quando era tão difícil puxar as malditas alças desses contêineres? Respirou fundo e acalmou-se. O tempo era seu aliado.

Seu treinamento de contra inteligência calhava. O contêiner não era tão pesado quanto parecia, tampouco requeria muita destreza para carregar, mas o infiltrador não sabia disto.

Olhou para Rodolfo. Não sabia se o homem ainda respirava. Não havia nenhum sinal visível de violência em seu corpo. Talvez uma arma apontada para sua cabeça fosse o menor de seus problemas no momento, ou no futuro.

Andou lentamente em direção à porta, ainda na mira do infiltrador que segurava a alavanca de ativação da porta. Em sua mente, agradeceu profundamente aos engenheiros e arquitetos que haviam desenvolvido toda a estrutura convoluta das instalações.

Nascimento deu alguns passos antes de tropeçar e perder seu equilíbrio, arqueando-se enquanto segurava o contêiner meio derrubado ao chão. Viu o infiltrador alertando-se momentaneamente antes de começar a mover-se em sua direção.

Era agora ou nunca. Sentiu seu corpo esquentar com a tremenda força exercida na atividade, os músculos das costas se repuxando e os antebraços tremendo. Por um milésimo de segundo, temeu romper algum tendão, mas rapidamente lembrou-se que, caso tudo desse errado, não teria que se preocupar com isto. Segurou nas alças do contêiner e levantou-se abruptamente, girando seu corpo em direção ao infiltrador.

Ouviu-se um disparo e então um barulho metálico. Não sentiu nada. Soltou uma das alças, deixando o contêiner num movimento de meia-lua bater na cintura do sujeito, soltando-o completamente quando sentiu o impacto do contato.

Um homem menos treinado teria sido nocauteado. Viu o infiltrador cambalear, sua silhueta antes embaçada agora tornando-se nítida por poucos segundos. Havia quebrado algo, osso ou equipamento, o que quer que fosse, havia deixado o homem atordoado por alguns segundos.


O Rei de Paus sentia a dor do lado direito e o peso do contêiner que havia sido lançado em sua direção. Um momento de despreparo causando um lapso em sua mente e corpo, seu foco agora perdido. Amaldiçoou-se por permitir que seu equipamento fosse destruído. Apalpou seu cinto de utilidades, ativou um único botão e, rapidamente, desvencilhou-se deste, jogando-o ao lado. Viu as faíscas dos módulos de camuflagem no canto do olho.

Isto rapidamente saiu de seu foco, no entanto. Virando seus olhos para sua frente, viu Nascimento investindo em sua direção, abaixando-se como um touro raivoso. Antes que pudesse disparar, foi tomado pela familiar sensação da falta de gravidade ao ser levantado e sentiu a força do "Doutor" arremessando-o ao chão com um baque surdo, sua arma escapando-lhe das mãos, seu ar escapando-lhe dos pulmões.

Digladiaram-se em combate de solo por alguns segundos, que pareceram horas. Ele não era apenas um maldito burocrata. Havia formalidade, técnica, tanto marcial quanto advinda de experiência em cada golpe desferido, cada qual carregando uma vontade explícita de causar o maior dano possível — ele sabia o que doeria, aonde doeria, por que doeria e, claramente, sabia muito bem como aplicar todo este conhecimento de maneira quase insuportável.

Mas o título de Rei não era dado a qualquer um, e ele sabia como reverteria essa situação.


Nascimento tentou organizar seus pensamentos sobre o infiltrador em meio ao seu combate. Não havia mais o uso de técnicas de interrogatório ou inteligência, ele sabia muito bem o que estava fazendo e qual era o objetivo do que estava fazendo. Aquele homem estavam uma missão. Não era apenas um caso de alguém que recebeu treinamento marcial para quando as coisas dessem errado em uma situação limite.

Trocaram golpes, alguns com mais impacto, outros com menos. Nascimento claramente conseguiu uma vantagem ao arremessar seu assaltante ao chão e, após alguns segundos, conseguiu imobilizar um dos braços de seu oponente, enquanto alvejava seu rosto e tronco com socos poderosos, empapando o chão sobre qual ambos estavam de sangue e suor.

Quando percebeu que a consciência de seu oponente começou a falhar, Nascimento rapidamente abriu sua guarda para sacar sua faca da bainha, enfim cravando-a no serrátil anterior do infiltrador, deslizando a lâmina por entre suas costelas. Simultaneamente, seus ouvidos tiniram com o som de um disparo. Em sua frenética luta pela sobrevivência, quando Nascimento abriu sua guarda para sacar sua faca, o infiltrador conseguiu aproximar-se da arma que havia derrubado e a usou, como um último lembrete profano de sua existência.

Seu próprio peito inflamou-se com uma dor fulminante. Soltou o ar dos pulmões e sentiu seu corpo amolecer por um momento. Caiu ao lado do infiltrador e perdeu o foco de sua visão, percebendo que o tempo inteiro, o infiltrador estava lentamente movendo seu combate em direção a arma de fogo. Bem jogado.


Não havia tempo a perder. O Rei de Paus sentia algo quente escorrendo sobre e dentro de seu tórax. Sua face ardia, respirar e pensar doía profundamente, sangue cobria seus olhos e boca. Levantou-se, há muito custo. Considerou a arma em sua mão e o homem caído ao seu lado. Considerou a lâmina presa em seu tórax, uns bons quinze centímetros de aço que perfuravam seus órgãos. Não a removeria, talvez isso impedisse o sangramento por tempo o suficiente para que ele escapasse.

Olhou em direção ao seu cinto de utilidades e, por mais um momento, sorriu, ao colocar sua arma no coldre fixado a ele. Considerou o pesado contêiner que guardava a Relíquia e suspirou profundamente. Andou em direção a caixa, sentindo o aço raspando contra suas costelas a cada passo. Sentou-se no chão próximo ao contêiner. Considerou a fechadura do objeto, um fecho largo e grosso com um único cadeado.

Foi quase como uma segunda natureza. Não havia mais razão no que estava fazendo. Naturalmente, pegou seu kit de infiltração. Um clique. Dois cliques. Três cliques. A ferramenta de tensão girou, abrindo o cadeado muito antes do que antecipara. A tranca anterior era impossível de abrir com seu conhecimento, mas essa abriu-se quase rápido demais.

Ouviu o som de passos formando-se atrás de si. Antes que pudesse se controlar, seu corpo começou a convulsionar. Suas gargalhadas ecoaram no aposento claustrofóbico quando percebeu que havia deixado sua arma no cinto e, quem que fosse, esperou exatamente pelo momento em que estivesse sentado, impedindo que a alcançasse.

Sentiu uma sombra crescendo em sua visão, cobrindo todo o seu corpo. Seu foco completamente dispersado. Considerou os acontecimentos. Sua incapacidade em reverter a luta, os golpes no tórax que pareciam não surtir efeito.

"Seu filho de uma puta. O jogo estava armado desde o começo."

Sorriu.

A última coisa que viu foi a sola de um coturno.


Dentre as várias mesas inoxidáveis do Necrotério do Sítio PT33, uma comportava um homem espadaúdo de cabelos negros, cerca de 1,80m de altura e vestido com uma farda militar. Seu semblante pétreo e porte conferiam-lhe a aparência e imobilidade de uma estátua, não fossem os hematomas, cortes e o distinto buraco em seu peito logo ao lado da identificação que lia "O- NASCIMENTO".

Quase preferiria estar morto. Seu corpo doía incessantemente. Sabia que não havia saído dessa situação incólume. Costelas quebradas seriam o mínimo. Pensou como seria bom poder ser jovem de novo.

Abriu seus olhos sob uma forte luz incidindo-lhe, em um ambiente estéril. Não sabia exatamente aonde estava até ver a silhueta de uma mulher que lhe examinava.

"Dói só quando respira?" — a mulher questionou.

Sorriu. "Dói tudo, porra."

E fechou os olhos novamente.


Nascimento sentava-se de lado numa das cadeiras do Necrotério do Sítio PT33. Observava, estirado numa mesa de necropsia, com uma bolsa de soro conectada ao seu braço, o homem que havia invadido o sítio mais seguro do Fundação Lusófona. Mesmo medicado, Nascimento ainda sentia seus golpes.

Exclamou de dor mais uma vez enquanto A.B suturava um corte em suas costas.

"Para de reclamar e se mexer," ela inferiu, por de trás de sua máscara cirúrgica, "é por isto que só mexo com mortos, eu odeio gente que se mexe durante a sutura."

Após alguns minutos e mais algumas reclamações, A. terminou.

"Pronto. Viu? Nem foi tão ruim assim. Pode pegar um pirulito quando for sair," a diminuta legista do Sítio PT33 concluiu, colocando suas ferramentas numa mesinha ao lado.

Nascimento assentiu, não fazendo a menor questão de vestir-se.

"Você precisa é de um cirurgião qualificado. Ou um tanatopraxista, Nascimento."

Talvez não fosse uma má ideia. Um dos dois. Ou os dois.

Levantou-se e dirigiu-se ao banheiro, ignorando a doutora. Caminhou a passos lentos e deliberados, evitando repuxar seus cortes.

Ser um pesquisador na Fundação Lusófona não era uma tarefa fácil. Nascimento parou por um momento para olhar-se no espelho do banheiro do necrotério. Pálido, suturado e repleto de marcas visíveis em sua face com a barba por fazer. Via sangue em seu cabelo despenteado, partes de sua cabeça latejavam. Seu corpo não estava muito melhor, com a camisa da farda perdida, a parte superior do seu peitoral repleto de marcas e cortes ficava em evidência, mas todo seu tórax estava ferido. Até suas calças estavam rasgadas e sujas. Observou as faixas que seguravam as suas costelas quebradas no lugar. O hematoma do impacto foi tão grande que conseguia ver partes da mancha roxa na parte superior de seu abdômen.

Retornou ao necrotério após alguns minutos, sentando-se novamente em uma das cadeiras. Viu o pesado colete balístico que utilizava descartado ao lado da mesa em que acordou. Tanto tempo utilizando a veste diariamente havia-lhe acostumado com o peso. Sentia-se nu, de certa forma. Um projétil .45 ACP distorcido estava ao seu lado, como um lembrete macabro dos eventos do dia. Sentiu um calafrio.

Chacoalhou a cabeça e observou A. organizando um conjunto de ferramentas ao lado da mesa em que o infiltrador ocupava.

"Trouxe o V.01, A.?"

"Você vai testar os V.01 num alvo destes mesmo?"

"Pelo que eu percebi, esse cara tá no topo da cadeia alimentar da organização dele."

"Pensei que a Olhos Anônimos não utilizava anomalias. Nem fazia trabalhos de assassinato."

"E quem disse que ele é da Olhos? De qualquer forma, técnicas de interrogatório convencionais não vão funcionar nele no momento. É um pouco difícil conversar com alguém em coma."

"Você é quem sabe."

O soro V.01 era uma droga anômala criada por Nascimento em conjunto com uma equipe de doutores do departamento médico do sítio PT33, como parte de um dos projetos envolvendo SCP-122-PT.

Era um "soro da verdade" baseado em SCP-122-PT-2 que colocava aqueles injetados pela substância num estado similar a um transe, em que o afetado tinha sonhos e ficava altamente sugestionável, permitindo que, com as técnicas psicológicas adequadas, fosse possível extrair quaisquer informações pertinentes do alvo. Funcionava apenas em alvos inconscientes, de modo que essa era a situação perfeita para testar suas capacidades.

Questões éticas não possuíam relevância a priori neste caso, pelo menos não para Nascimento. Para o resto do mundo, o infiltrador estava morto.

A. pegou dois frascos que estavam na mesa ao lado. Enfiou uma seringa no primeiro frasco, que continha um líquido esverdeado, e injetou-o na bolsa de soro. Segundos depois, repetiu o processo com o outro frasco, que continha um líquido azulado viscoso. As duas substâncias interagiram como óleo e água antes de coalescerem numa única cor violeta.

Nascimento fitou o composto por alguns segundos. Olhou para o lado e encontrou A. escrutinizando-o.

"Trancaste a caixa do 122-PT antes de sair, né?"

Nascimento pressionou os lábios e revirou os olhos.

"Coloquei a caixa em cima de uma mesa e tranquei a câmara de contenção." Olhou para A. com um sorriso torto. "Quem caralhos fala 'trancaste'?"

A. ignorou o comentário irônico. "Trancou ou não?"

"Eu estava sangrando feito um porco indo pro abate e carregando esse pau no cu."

"Deveria ter me ligado antes de quase morrer no meio do caminho para cá, vadia."

"Vá se foder, vadia."

"Pedirei o laudo para a equipe de segurança para vermos isto depois."

Nascimento respirou funda. Sabia que o questionamento da A. era válido.

Levantou-se e foi em direção a mesa aonde estava o infiltrador. Apalpou seus bolsos e olhou para A. com o cenho franzido.

A legista puxou um gravador digital de seu bolso e colocou em cima da mesa de ferramentas, apertando o botão para iniciar a gravação.

Nascimento pigarreou.

"Entrevista de Pessoa de Interesse, de designação pendente, relacionada ao objeto anômalo categorizado como SCP-122-PT, conduzida por Doutor Vinicius Nascimento, Diretor do Departamento Médico do Sítio PT33 com a assistência da Doutora Arturia Baccarin, Coordenadora do Setor Médico Legal do Sítio PT33, utilizando a paratecnologia anômala Soro V.01 baseada em SCP-122-PT. A Pessoa de Interesse foi capturada ao infiltrar o Sítio PT33 e tentar subtrair o objeto anômalo SCP-122-PT…"



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