Cleon
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Roma, 1955
Giraldo Moretti corria enquanto as paredes dentadas do beco se fechavam atrás dele. O som monótono que o seguia se tornando um rugido. Papel amassado voava no ar, apesar da falta de qualquer brisa. Na frente dele, milhas à frente, ele podia ver um brilho fraco que prometia salvação.

Como ele chegara aqui? Ele tentava se lembrar.

Tava tendo um jantar no trem. Uma noite lá fora que nenhuma luz conseguiria penetrar. Uma festa. Um conhecimento de criaturas e escuridão do outro lado da parede. Um balançar de cabeça sub-reptício de um dos homens. Ele podia ver a sequência se desenrolando no lixo que enchia o ar. Moretti correu mais rápido.

Enquanto se aproximava da luz, toda azul e vermelho elétricos, ele podia sentir o beco estalando faminto a seus pés. Pessoas agora entravam na passagem estreita, emergindo das paredes de tijolo de cada lado. Seus rostos, quando os tinham, estavam todos errados. Enganados.

Moretti tentou passar por elas, mas um homem com cinco olhos e nenhuma boca o agarrou, espalhando suas roupas por todo o braço. Os outros homens começaram a agarrá-lo, espalhando o pano em seu corpo. Eles vinham sobre ele em ondas, sua pele úmida e quente.

Conforme os homens passavam por cima dele, ele podia se sentir ficando cada vez mais fraco. Cada vez mais lentamente ele se movia enquanto sua pele ficava cinza. Finalmente, seu peso era demais para suas pernas suportarem e ele desabou.

Os homens com os rostos enganados desceram, rasgando sua carne em pedaços. Olhando para cima, Moretti viu que as luzes de néon no início do beco estavam se apagando uma por uma. O beco rugia em triunfo conforme seus dentes o alcançavam. A escuridão dentro dele começando a penetrá-lo e -

Giraldo Moretti abriu os olhos. Ele estava de pé na galeria novamente. Diante dele estava a pintura com as gotas de tinta e Deus sabe o que mais o levou ao sonho.

Ele tentou parar o tremor de suas mãos, falhou e tentou se concentrar em outras coisas. A crítica que ele tinha que escrever amanhã para esta exposição. Roma, com seus edifícios antigos e infinitamente sólidos. As conversas áridas de materialismo e o impulso da história que ele e Maria compartilharam durante longas noites e muitos cigarros. Tudo parecia venenoso para ele.

O sonho tinha sido tão real. Esse Lawrence Greer - seu trabalho - era diferente de tudo que Moretti já experimentara. Ele havia sentido o gosto do medo. Ele sentiu sua pele se rasgar.

Ele começou a andar para a saída. Olhando ao redor da galeria, ele viu outros clientes olhando para uma dúzia ou mais de outras obras. Alguns pareciam estar em transe, talvez como aquele em que ele acabara de estar. Outros simplesmente pareciam pasmos. Ele ainda estava tremendo.

Parado na entrada de porão da galeria na noite escura, Moretti verificou se ninguém estava vindo. Então, pela primeira vez desde o fim da guerra, ele começou a chorar.


Rio de Janeiro, 1958
A luz trêmula da tela iluminava o rosto de Carla Carvalho. Ela quase podia sentir a luz conforme ela se movia sobre e ao seu redor no porão escuro. Ela parecia se misturar com o calor que enchia cada centímetro de ar no cinema.

Diante dela, um menino moreno e uma menina branca caminhavam de mãos dadas, alheios ao lixo que os cercava.

A sala estava em silêncio, exceto pelo zumbido do projetor e a tosse ocasional. Então, de repente, ela sentiu música. Ela pareceu brotar dentro dela, preenchendo cada centímetro dela. Grandes notas expansivas, algumas tão pequenas e sutis que ela mal conseguia notá-las, outras que ela nem conseguia imaginar ouvir. De fato, ela percebeu, ainda não havia nenhum som além do projetor.

Por um momento, ela foi levada de volta à época em que dançou pela primeira vez com um garoto, todos aqueles anos atrás em São Paulo durante o Carnaval. Depois de um momento se lembrando de como suas mãos pareciam em seus braços, ela voltou ao filme. O casal agora estava olhando nos olhos um do outro. A música dentro dela crescia com sequências de sacarina.

Então, ela pensou, isso é algum truque onde a trilha sonora é produzida internamente. Ho hum. Nada mais do que uma novidade barata. Tanto para o cinema anômalo americano. Rita havia prometido a ela que Greensboro Amarela valia a pena assistir, mas se "som-sem-som" fosse tudo em que o criador conseguisse pensar, Carla precisaria reavaliar a lista de pessoas a quem ela procurava para obter conselhos.

Alguém na plateia suspirou, tirando Carla de sua reflexão. Seus olhos percorreram a tela, procurando por algo que teria causado um suspiro. Nada. Apenas o casal dançando novamente, mas agora um cachorro havia entrado na cena, mancando ligeiramente.

Carla queria gemer. Ela poderia estar em casa, praticando seus sigilos, ou na universidade, ou no cemitério novamente, ou… em qualquer lugar, na verdade, que não fosse escuro e cheio de idiotas facilmente impressionáveis.

A cena mudou, agora para a rua estreita de uma favela. Estranho, mas não particularmente interessante. A mudança atraiu outro suspiro, desta vez de um observador diferente. Idiotas.

Ela estava juntando suas coisas para ir quando viu o casal dançando na tela novamente em preto e branco. Suas cores de pele agora estavam trocadas, com uma garota morena e um garoto branco. Assim como o menino do carnaval anos atrás.

Carla semicerrou os olhos. Calma, não, não era como o menino do Carnaval, ele era o menino do Carnaval. Ela suspirou, apesar de si mesma, vendo seu eu mais jovem imitar os movimentos que ela dançou com o garoto de pele clara meia vida atrás. Ela sentiu a música daquele dia, uma dúzia de melodias subindo e descendo umas contras as outras.

O casal dançava e o garoto sussurrou algo no ouvido da menina. Carla nunca tinha entendido o que o menino havia dito com seu áspero sotaque maranhense; apenas seus ã's e ch's se elevavam sobre o barulho do Carnaval. A música a dominava conforme o casal dançava e dançava e dançava e dançava.

Finalmente, a música acalmou, assim como o ritmo do casal diminuiu e então parou. O garoto deu um sorriso amigável, assim como fizera vinte anos atrás, e beijou a jovem Carla na bochecha. A Carla no cinema gritou, querendo fazer um milhão de perguntas ao garoto branco na tela. Os outros espectadores olharam para ela, assustados. Ela nunca mais o viu depois daquele dia. Para onde você foi? Como foi a sua vida? Você dançou com outra garota naquela noite?

O garoto branco na tela acenou para a jovem Carla, e então saiu de sua vida, para sempre. A música estava quase imperceptível. Carla cerrou os punhos com tanto força que podia sentir a dor nos pulsos. Ela queria gritar, bater os pés e xingar o diretor e o menino e os idiotas olhando boquiabertos para uma de suas memórias mais queridas.

A Carla na tela estava parada, confusa e sorridente, na calçada. Então, ela começou a saltear. Conforme fazia isso, a jovem começou a mudar. Ela ficou mais alta e seu cabelo mais reto. A música ao seu redor ficou mais avoada. Quando ela terminou de saltear, chegando a um prédio cinza simples com uma palmeira na frente, a garota não era mais Carla. Ela parecia quase idêntica a uma das mulheres na platéia, agora. Houve um suspiro. Carla se virou, bem a tempo de ver o queixo da mulher cair ao ver seu sósia na tela.

Carla ficou durante o resto do filme, observando as memórias meio digeridas do público costurando-se em uma narrativa. Ela se sentou enquanto casamentos e pulsos quebrados e arroz derramado passavam na tela, enquanto a música tocava dentro dela. Mas ela nunca mais viu o menino.


Cotonou, 1962
O ar da exposição parecia envolver Ewansiha Soglo, estrangulando-o. A pequena elite de Cotonou se reuniu aqui, neste pequeno edifício indistinto perto do coração da cidade, para ser vista. Meia dúzia de conversas, todas em francês, abriam caminho entre os clientes bem vestidos.

Ewansiha evitava as conversas. Não porque ele não pudesse participar, ele lembrou a si mesmo, mas porque ele era um pensador muito profundo para ser pego em suas fofocas. Desde o dia em que seu professor o apresentara ao livro de Marx na embalagem de papel pardo, ele viu o mundo como ele realmente era. Tudo, da religião à arte anômala, era superestrutura. Portanto, deixe os idiotas bem vestidos tagarelarem sobre suas rixas mesquinhas. Ewansiha podia ver para onde o mundo estava indo e sabia que estava no lado certo da história.

Ele ia de exposição em exposição, tendo decidido ficar apenas por tempo suficiente para ser visto. Uma série de fotografias que o faziam ouvir o gosto da cor azul. Uma guitarra que emitia o som de uma dúzia de canções tocadas simultaneamente. Ho hum.

Ewansiha chegou a uma estátua grotesca no canto da sala. Toda de metal retorcido que se estendia para cima em direção ao teto, ela era de longe o objeto mais feio da galeria. Ewansiha podia ver dezenas de rostos contorcidos em carrancas - se de dor ou diversão, ele não sabia dizer.

Típico lixo americano decadente, pensou Ewansiha. Enquanto ele se virava para sair, ele piscou.

E o mundo desmoronou.

As conversas elegantes em francês com sotaque estudado transformaram-se em latidos de cachorros. Ele olhou para os outros clientes e viu que eles não tinham mais boca ou olhos. Ele tentou se lembrar de onde estava. O Santíssimo Império de Daomé, lembrou ele, sob o governo iluminado do Imperador Maurício XIV. Essas criaturas vis não eram nada além de seres feitos pela metade, feitos a partir de porções desfeitas de humanos. Não havia nada a temer delas. Ele se voltou para a estátua grotesca, um monumento a um dos predecessores de Maurice. Ele piscou novamente.

O ar estava cheio de cordas de palavras. Ewansiha podia ver os contornos das conversas fluindo da boca dos clientes. As palavras deslizavam pela galeria, puxando as frases em uma pilha no centro da sala. Ele não conseguia mais se lembrar de onde estava, apenas os contornos do país, da cidade, do bairro em que estava. Apenas a estátua era sólida.

Ewansiha piscou novamente e o mundo foi refeito. E de novo, e de novo, e de novo. Finalmente, ele se afastou da estátua e o mundo era como antes. Ele era Ewansiha Soglo mais uma vez. Ele estava em Benim, Cotonou, especificamente. Esses clientes não passavam de idiotas estúpidos. A história tinha uma direção, que ele ajudava a guiar em seu jeito pequeno.

Ele se afastou da estátua que havia refeito o mundo de novo e de novo. Ele não estava com medo, ele lembrou a si mesmo, ele só queria experimentar o restante da chamada arte aqui. Mesmo enquanto olhava para as pinturas que se moviam e esculturas que cantavam, ele não conseguia parar de pensar na estátua feia.

Dois meses atrás, ele havia estado em uma exposição da União Soviética. As anomalias, como eram, apenas o enchiam de orgulho proletário e o faziam sentir como se estivesse dirigindo o primeiro trator em um orgulhoso kolkhoz. Por mais comunista que pudesse ser, Ewansiha tinha de admitir que não se lembraria das obras soviéticas dentro de um ano.

Mas isso? Esta decadente obra americana? Ele ficaria intrigado com ela por anos.







ULTRA SECRETO










ACESSO A ESTE DOCUMENTO ESTÁ LIMITADO ÀS PESSOAS AUTORIZADAS PARA ESTE PROJETO ESPECÍFICO:


BG. Marcus Lyle COL. Jasper A. Hunt COL. Thomas Callahan
LTC. Anthony Endrizzi MAJ. Aaron H. Sutton


















MEMORANDO AOS SUPERVISORES DO PROJETO 'CLEON,' 388ª COMPANHIA ESPECIAL INDEPENDENTE
Assunto: A Eficácia do Financiamento das Artes Paracientíficas
De: MAJ. Stephen M. Jacoby

Desde o seu início em 1953, o trabalho do Projeto 'Cleon' tem sido, primeiro, para identificar cidadãos americanos engajados no uso de materiais e métodos paracientíficos para produzir obras de arte e, segundo, para financiar e promover secretamente o trabalho desses indivíduos, particularmente no que diz respeito à exposição internacional. Ao promover essas obras de arte, o objetivo do projeto tem sido o de gerar um maior respeito pela cultura e sociedade americanas entre os membros da comunidade paracientífica, dando à 388ª Companhia Especial Independente uma seleção maior da qual extrair potenciais talentos na luta contra o comunismo internacional.

Dez anos depois, o Projeto 'Cleon' tem sido muito bem-sucedido nesse aspecto. Foram financiadas 157 exposições de arte paracientífica americana, viajando para quase todos os países que não estão sob controle comunista direto. Redações favoráveis dessas exposições foram escritas em uma variedade de periódicos paracientíficos amplamente lidos, como "Planasthai," e numerosas fontes de inteligência indicam que a arte americana é tida em alta conta por sua criatividade e "vitalidade." Somente no primeiro ano do projeto, a 388ª Companhia Especial Independente foi capaz de recrutar mais de oitenta novos ativos de inteligência da comunidade paracientífica em todo o mundo, mais do que nos últimos cinco anos combinados.

Além da percepção melhorada da América em áreas de potencial conflito futuro, o Projeto 'Cleon' rendeu benefícios mais tangíveis. O trabalho de muitos artistas paracientíficos ou utiliza técnicas que podem ser úteis para futuras pesquisas armamentistas, ou que podem ser usadas como uma arma. Mais notavelmente, a escultura "Sem Título 17" de Gerald Saito, quando devidamente manuseada, produzia repetidamente detonações superiores a 2,3 quilotons. Embora alguns experimentos tenham produzido resultados abaixo do ideal (consulte o Incidente 'Critias'), a pesquisa geral sobre a armamentização desses fenômenos permanece promissora.

O Projeto 'Cleon' provou ser extremamente eficaz em alcançar seus objetivos declarados e proporcionou à 388ª Companhia Especial Independente benefícios adicionais imprevistos. Portanto, recomendo fortemente a continuação indefinida do projeto.

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