Imagine o seguinte: uma ponte cinzenta de concreto que prioriza sua função acima de sua forma. A ponte está sob um céu branco cinzento, cercada de uma névoa branca cinzenta – mal se dá para ver mais do que algumas dezenas de metros adiante. Um sol branco cinzento observa esta ponte com ampla atenção, as nuvens, um branco cinzento levemente mais branco que o resto do céu, raramente interferindo.
Pense em uma ponte fora do espaço e do tempo, onde uma ponta se estende ao infinito, muito além do horizonte, e onde a outra ponta também se estende além do que a aparente curvatura de um oceano branco cinzento permite visualizar. Nesse mundo de brancos e cinzas e pretos somente o abandono é certo e somente o passado se manifesta no presente com o intuito de fazer-lhe pagar pelos seus pecados contra a criação.
Considere que somente uma coisa quebra a monotonia dos brancos e dos cinzas e dos pretos nesse mundo: vocês. Um comboio de veículos de verdes e marrons atravessa a ponte com velocidade constante e perpétua, um ritmo frio e calculado de horas atravessando e observando os mesmos brancos e cinzas e pretos. Cada gota de combustível vale, pois vocês estão quilômetros dentro de território desconhecido e inimigo, e cada segundo vale, pois vocês estão sendo observados.
Contemple a ânsia e o medo nos olhos de seus companheiros em meio ao comboio, e considere a perdição no rosto do homem que os trouxe para um ponto cego nos olhos onipresentes de Deus. Exceto que você não vê o rosto do condenado além de um saco cobrindo sua cabeça em sua totalidade, impedindo-o de ver senão o interior do mesmo e ouvir os soldados murmurando entre si.
Pondere. O mundo concede-lhes o privilégio da vida, e a qualquer segundo o revocará sem pensar duas vezes.
Questione: o comboio está parado. Buzinas e mais buzinas ecoam adiante apesar da completa ausência de quaisquer veículos senão os de seus homens. No sentido contrário não há nada. Em seu sentido não há nada. Somente a tempestade de buzinas que ecoam ao seu redor, com pressa para a eternidade.
Investigue os sons que vêm do além – a neblina clama por seu nome em sua quietude barulhenta. Nada está em vista e somente a ponte aparece quando você late suas ordens para que o nada se revele. Você está suando em frio, e eles observam esse detalhe com olhos atentos.
Prepare-se para dar o primeiro tiro, pois somente assim você terá controle sobre o incontrolável, vantagem contra um inimigo que já sabe o dia em que os vermelhos de seu sangue mancharão o asfalto preto de um mundo monótono.
Mire seu tanque para o nada; isso lhe faz sentir mais seguro de si. Uma sombra passa à frente de um Sol atento e observador, um olho se formando da combinação de uma dança cósmica entre Sol e Lua.
Dispare tudo que você tem. A neblina se corta com munições e faróis, mas seria isso um alarme falso? Certamente, mas vocês se reafirmam com o conto de prevenir contra as dores de remediar.
Grite, pois sua formação se quebrou. A neblina respondeu aos seus fuzis.
Imagine o seguinte: estátuas perfeitamente anatômicas cinzas de concreto. Suas ferramentas substituíram suas mãos e seus capacetes de obra cinzentos ricocheteiam a tudo que vocês jogam com o intuito de destruir sua criação. Um homem em agonia retratado em concreto com mãos de picadeira manchadas em vermelho avança contra 3 fileiras de soldados fortemente armados.
Pense no que você fez para merecer encontrar tal monstro, pois ele somente tem olhos para vocês. Um tanque blindado dispara contra estátuas, mas da fumaça e do fogo saem ainda mais monstros cinzentos com a devida intenção de eliminar um único alvo que vocês trazem consigo para este mundo.
Considere, pois somente assim seu sangue não será mais uma camada de vísceras sobre o asfalto preto.
Contemple a morte de seus companheiros de combate.
Pondere, pois vocês estão recuando no sentido contrário. Fugindo como ovelhas perante a chegada do lobo, os restos de seus companheiros revestem uma seção da ponte pela qual vocês avançavam. Mate aquele que os trouxe a este mundo amaldiçoado, mas risque ser aquele que os traz de volta para esta ponte de concreto e seus brancos e cinzas e pretos. Fique e aposte na boa vontade do mundo que lhes deu o privilégio da vida – o destino não é piedoso.
Questione, mas já é tarde para isso. O sangue já foi derramado e os olhos que lhes observavam sentiram – eles querem o sacrifício. Nuvens branco cinzentas começam a se formar nas alturas com vontade, os primeiros pingos já caindo sobre uma ponte que exige seu sacrifício.
Investigue, mas a execução já está em andamento. Borrões cinzas de concreto são visíveis além da neblina, deles emergindo vultos grandes como carros no sentido contrário ao comboio. Blocos sólidos de concreto em formato de carro emergem da neblina, a grande maioria desviando com precisão desumana do comboio.
Prepare-se, pois a falta de encontro entre concreto e metal não foi suficiente para impedir a quebra de formação. Seu comboio está em completo caos, três veículos se jogam da ponte tentando desviar de vultos cinzas como concreto. No minuto que os veículos quebram o parapeito, correntes escuras como o asfalto emergem das águas e capturam os veículos em meio ao ar.
Mire suas armas contra o metal rochoso, mas já é tarde. As correntes, tão rápido quando emergiram da água, já desapareceram, puxando consigo os verdes e os marrons de três veículos capturados. Há gritos e ranger de dentes, mas isso não ajuda. Os sons do atrito de pedra contra pedra podem ser ouvidos da neblina, mas o caos impede sua retirada dos lobos.
Dispare suas armas contra as águas cinzentas, mas as correntes não voltam com seus companheiros. Nada é visível através do cinza, somente mais cinza. Algumas bolhas emergem das ondas, mas nada as segue para a superfície. Os sons de tiros apenas deixam os monstros mais sedentos por sangue, sabendo que suas presas estão cada vez mais próximas.
Grite, mas sua história acaba aqui.
Imagine o seguinte: estátuas perfeitamente anatômicas cinzas de concreto, o vermelho fresco ainda pingando de suas mãos de picareta. Elas não estão felizes por terem de perseguir suas presas.
Pense em como intestinos e sangue jorram da barriga de seus colegas à medida que cada um é metodicamente dilacerado por estátuas sedentas.
Considere que seu momento final se aproxima.
Contemple as correntes que, se disparando da água, tiram corpos um a um da ponte em direção a um oceano sem fim. Um corpo cai diante de você, e correntes imediatamente lhe atravessam para pegar o corpo.
Pondere, pois você está sendo puxado contra sua vontade para fora da ponte, para fora da terra seca, e em direção ao oceano cinza de concreto.
Questione: é assim que acaba?
Investigue as águas que aceitam seu corpo de braços abertos, pequenos peixes cinzas de concreto o cercam.
Prepare-se, pois você ouve o chamado dos finados, a luz no fim do oceano clamando por seu nome.
Feche os olhos, e seu privilégio foi revogado.