A VÍBORA PERDIDA
Ao passo de que minha vida se encurta e sinto que a morte logo me abraçará, meus únicos amigos neste lugar úmido e fétido são minha caneta de bolso e blocos de rascunho que sempre levo no meu bolso. Quem estiver a ler isto, vai deduzir que já estou morto. Provavelmente estarei mesmo…
DIA 01
Acordei com terríveis dores de cabeça, tão ruins que precisei de algumas horas pra tentar me levantar do chão. Coloquei a mão no cabelo e alisei boa parte do couro cabeludo, avaliando o estrago. Alguns detritos da parede que me choquei ainda estavam presentes, enroscados nos fios mal penteados me fazendo os confundir com alguns ferimentos que estavam já preenchidos com o sangue coagulado. Conforme meus sentidos e lembranças voltavam, a esperança de melhora da situação se afastava. Surgia repentinamente um cheiro horrível de queijo podre, talvez leite.
Certa parte do lugar estava úmido e embora estivesse morrendo de sede, certamente não era uma boa ideia se satisfazer nas grandes poças presentes, já que só com olhar eu já temo o toque, quanto mais ingerir. As paredes são feitas de tijolos cheios de musgo, aparentando serem tão firmes quanto os pés de um aleijado.
O estado deplorável do quarto me instigava a procurar pontos comprometidos nas paredes para que eu pudesse investir com o corpo e fugir, mas o cansaço me domina no momento, se não morrer fraco, morrerei sedento.
DIA 02
Talvez este esforço em registrar minha situação atual acabe em breve. A sala gelada onde me encontro começou a esquentar aos poucos, logo dores de cabeça e falta de concentração me acompanharão na marcha fúnebre. O prelúdio de uma morte por desidratação. Poderia passar o tempo descrevendo cientificamente o que acontece com o corpo nesta situação, mas o medo da morte não permite. Separar estes registros por dias é algo gozado, já que não tenho nada para tentar discernir o tempo além da intuição. Quanto tempo fiquei desacordado? Quanto tempo me sobra?
DIA 03
Ontem aconteceu algo estranho. Duas figuras brutamontes apareceram atrás das barras de aço que me prendem. Não conseguia ver direito e uma terceira sombra entrou em meus aposentos. Consegui ver quando chegou perto, era uma mulher de uniforme branco.
Quando ela veio, já estava no chão entrando em choque devido a desidratação, então ela colocou minha cabeça em seu colo, e aos poucos me serviu água, enquanto enfaixava minha cabeça prestando primeiros socorros. Com o melhor de minhas habilidades atuais, tentei focar a visão e ver seu rosto, esforço deveras inútil após perceber que sua face estava coberta por um estranho tipo de capacete. Tenho que dizer aqui que nunca bebi água tão boa quanto aquela. Um pano velho com palha foi estendido no chão em uma área seca e fui deixado lá para repousar após os cuidados. Palavras não saiam da minha boca, estava fraco demais para mover até mesmo os lábios. Quando retiraram minhas roupas a procura de ferimentos, temi que encontrassem essas anotações, mas pouca atenção foi dada as vestimentas. Uma bandeja com um virado composto de arroz e ovo com direito a farofa foi deixado do meu lado. Meus cumprimentos ao cozinheiro.
DIA 06
Um bom tempo se passou e já tenho uma ideia de minha rotina aqui. Alguém me traz comida e água, sempre acompanhada dos dois brutamontes uniformizados. Mas agora, menos debilitado, consigo descrever meus carcereiros. A pessoa que me traz alimento é diferente dos homens armados. Seu uniforme é branco, com uma cruz azul no capacete que oculta seu rosto, mas é possível perceber que no lugar onde estaria os olhos, existe uma coloração diferente, possivelmente algum tipo de recurso utilizado na confecção de suas vestimentas para permitir enxergar.
Apesar de descrever este uniforme peculiar, nada supera os bizarros armados. Um deles usa apenas uma boina, e o outro não, mas eles não possuem rostos! Sem nariz, sem olhos… nada mesmo! Ficavam apenas parados, me dava calafrios olhar para eles. Não dava pra dizer se me observavam ou se estavam com raiva ou alegres. Seu uniforme era verde, com um símbolo da bandeira do Brasil estampado no peito, porém, sem a faixa escrita ordem e progresso.
Nenhum deles dizia uma só palavra. Nem ao menos entravam na minha cela, apenas deixavam comida por baixo e algumas vezes retiravam um objeto estranho que emitia um feixe vermelho na minha direção durante alguns segundos e iam embora.
DIA 08
Estive procurando uma saída daqui, e a sorte me deu um vislumbre apenas de seu sorriso. Um dos tijolos na parede estava meio solto e esconde um grande espaço atrás, o suficiente pra ocultar minhas anotações. Não tenho certeza do que fariam comigo se as descobrissem.
Passei tempo suficiente aqui sem informações. Enquanto estiver vivo, viverei. Analisarei tudo que puder.
DIA 12
Alguns dos homens sem-rosto deixou cair um papel próximo a minha cela com um interessante conteúdo… após usar o pano embaixo da minha cama para puxá-lo, comecei a apreciar seu conteúdo. Parecia uma espécie de mapa, com instruções confusas. Por via das duvidas, deixarei anexado este papel em pobre estado nos meus registros secretos, oculto pelo tijolo na parede.

DIA 13
Acordei ouvindo alguns gritos, eram aterrorizantes mesmo para mim que trabalhei na Fundação. Um sem-rosto uniformizado andava pelo corredor, puxando alguém algemado pelos cabelos. Os gritos começaram a aumentar somados a pedido de socorro. Então o uniformizado parou e tive a impressão que seu rosto estava olhando para mim. O que aconteceu a seguir me gelou totalmente por dentro… Mesmo sem boca, ELE FALOU COMIGO! Era uma voz provavelmente filtrada, pois não conseguia definir se era homem ou mulher…
- Olá príncipe, nos encontramos de novo! Acordou com o barulho? Por favor, não conte ao rei, eu o farei calar para sempre não se preocupe.
Então o sem-rosto ainda segurando o homem pelos cabelos, tirou uma pequena faca de dentro de sua bota e golpeou as costas do homem aterrorizado. Puxou a faca para o lado com precisão cirúrgica como de alguém que sabia exatamente o que fazia ou já tinha prática. Frio e cruelmente o homem sem-rosto enfiou a mão dentro das entranhas expostas e tirou algo de lá. Dava pra ouvir suas risadas, então ele disse:
- Sabe, acho que os nórdicos faziam algo do gênero… Cortavam as costas de suas vitimas e tiravam o pulmão e a coluna pra fora… eu sempre quis fazer isso mas nunca tive oportunidade - disse o homem sem rosto apontando a faca para mim, agora repleta de sangue - qual desses é o pulmão? Preciso ir até a cozinha buscar sal… Isso tem que passar sal nas feridas…
O estranho homem sem-rosto se afastou e não voltou mais. Deixou o homem agonizando até morrer no corredor sujo e fétido. Com o passar do tempo, os ratos vieram e fizeram um banquete. Passei a noite tentando não olhar para fora, mas já havia começado a sentir minha sanidade deixando de se importar com a realidade.
DIA 15
Hoje foi um dia feliz. Conheci Harry, meu companheiro novo de cela. Sempre que me servem comida, guardo sempre um pouco para ele. Cuidar de Harry tem mantido um pouco de mim vivo o bastante para fazer estas anotações. Harry veio até minha cela um tempo depois do homem agonizando no corredor morrer, estava no meio dos outros se alimentando. Ele se lembrou de mim…
Tomar conta de Harry me faz lembrar dos hamsters que minha irmã cuidava. Gostaria de saber como ela está.
DIA 16
Hoje escutei dois dos homens sem-rosto discutindo no final do corredor. Eles argumentavam sobre o homem que enfrentou a víbora, ou algo assim, e reclamavam sobre o corpo que estava no corredor alguns dias atrás. Depois disseram que queriam dar uma olhada em algo que não deu pra ouvir e vieram até minha cela. Passaram alguns minutos com o rosto direcionado a meus aposentos e o silêncio foi quebrado com uma pergunta.
- Não parece muito corajoso - disse um dos homens sem-rosto.
Fiquei vários dias sem praticar a comunicação, não poderia deixar escapar este momento para obter alguma resposta.
- Coragem é algo que nos permite uma fuga temporária do medo. Ninguém é realmente corajoso, todos sentimos medo. - respondi tentando forçar naturalidade.
- Bom… a ignorância permite certos tipos de atos. Mas você viu ontem um show bem aqui em frente. Quando se trata da…
Bruscamente o homem sem-rosto interrompeu seu diálogo e colocou um dos dedos onde seria a orelha. Engraçado fazerem tantos gestos como se tivessem realmente os membros de uma pessoa normal. Então começou a ir embora mesmo com minhas insistências fúteis de se continuar o diálogo.
DIA 20
Briguei com Harry hoje. Ele me pediu para dormir no meu lugar e eu disse que não. Não queria deixa-lo triste já que faz um bom tempo que não tomo banho. Ele falou que não se importa, mas eu me importo! Não estamos nos dando bem…

Disseram que vão me buscar a tarde, pois alguém importante estava fora a serviço e irá chegar após o almoço. Pelo menos a morte vai me libertar. Harry perguntou se podia degustar meu interior quando morrer. Sempre faminto. Sentirei falta dele.
DIA 20 DIA ??????
Hoje é o dia. Depois daquele remédio estranho, eu me sinto mais lúcido e firme. Tomei todo cuidado para deixar as anotações aqui dentro da parede, juntamente com o… Quem achar isto vai entender. .
Me lembrei claramente da pessoa que me atacou lá na Fundação, e usei minhas habilidades no desenho para fazer um esboço rápido com o pouco de tinta que me faltava. Desejo que isto ajude a quem achar esse registro, a identificar meu agressor.

FIM DO LOG.