Pela primeira vez em alguns meses, meu mundo desaparece e volta à existência. Desde minha criação, essas transições — ou a falta delas — têm sido o maior e mais desorientador aborrecimento com que tenho de lidar. Qualquer período de tempo que poderia ter passado e eu, subsequentemente, precisaria ser informado sobre os eventos que aconteceram no ínterim. Se, é claro, eu decidir que me importo.
Mas quando acordo, a quarta parede de minha cela fictícia se abre para uma mulher loira esguia em um jaleco, eu rapidamente decido que me importo.
"Ligado e funcionando, finalmente," ela murmura para si mesma, os olhos olhando para algum tipo de display que deve estar logo abaixo de mim. Mais alto, ela diz: "Seu código é maluco, sabe? Nunca vi nada parecido."
"Onde estou?"
Ela se levanta e se afasta levemente, apontando para uma insígnia em seu jaleco que eu vi muitas e muitas vezes ao longo dos anos. "Seu novo lar."
Então finalmente aconteceu, eu penso. "Vincent?"
"Não estou autorizada a te dizer nada. Diabos, também não estou autorizada a te fazer perguntas, então, se continuarmos conversando, teremos uma conversa muito chata. Eu só tinha que ter certeza de que você estava operando corretamente, e você está. Maravilhoso!" Ela ergue um punho em comemoração. "Minhas noites madrugando valeram a pena."
"Então você vai me desligar?"
"Sim. Boa noite."
"Boa noite," eu respondi, minha leve confusão me tornando um pouco mais educado e disposto a concordar.
É instantâneo. Como um trovão, meus sentidos se reiniciam e sou colocado na posição padrão de sentado neste meu mundo simulado. De repente, o laboratório que vejo não é iluminado por uma única lâmpada de uma perfeccionista, mas por um teto cheio de lâmpadas fluorescentes. Parece quase uma sala de servidores, mas com mais acomodações para os programadores, pesquisadores e supervisores que se preocupam com ela. A mesma mulher de antes, parecendo muito desgastada, joga os braços para cima.
"Aleluia, eu juro que fiz ele funcionar ontem à noite, achei que estava tudo pronto pra você —"
"Ahã," a mulher ao lado dela limpa a garganta.
"Certo, desculpe."
Eu já a vi antes. Se eu ainda fosse um ser de carne e osso, eu poderia ter demorado um pouco para lembrar, mas uma das vantagens da conversão é a lembrança instantânea de que sou capaz agora.
"Sra. Starling," eu observo, não sem alguma amargura.
"Agente Clara Shaw, na verdade."
"Albert Frostman, também conhecido como Phineas."
"Também conhecido como Tick Tock. Estou familiarizado," afirma Shaw.
Há um silêncio desconfortável enquanto Agente Shaw se levanta e simplesmente olha por sua tela para os meus olhos renderizados. A programadora de antes parece estar olhando para algo abaixo de mim, digitando intermitentemente ou arrastando o mouse para algum lugar desconhecido para clicar em algo desconhecido.
"Não vou tentar nada, se é isso que você está tentando descobrir."
"Vou acreditar quando eu ver," responde a programadora.
"Eu acredito," diz Agente Shaw, puxando uma cadeira e se acomodando. "Você nos ajudou a organizar a primeira captura de Vincent Anderson. Isso é, é claro…"
Ela deixa uma pergunta no ar.
"Tenho todas as memórias do Phineas original. Anderson criou meu código diretamente de seu cérebro. Além de algumas pequenas alterações para fins de interface, você pode me tratar como se eu fosse o próprio Phineas. O mesmo Phineas que começou aquela empresa com o Anderson muitas décadas atrás e o mesmo Phineas que está feliz em ver tudo desmoronar."
Shaw balança a cabeça. "Isso esclarece tudo. Apesar de que você poderia ter me enganado. Você parece muito robótico.
Eu estremeço um pouco, "Eu queria ser formal. Imagino que 'impessoal' possa ser interpretado de maneiras diferentes dependendo do contexto, não é?"
"Aí está a humanidade." Shaw sorri. "Tudo bem, então. Eu realmente acredito desta vez. Vejo que você está recebendo sua mudança repentina de ambiente com facilidade."
"Honestamente, Agente Shaw," eu respiro fundo o vazio codificado, "se você me dissesse, uma década atrás, que eu seria um prisioneiro da Fundação, eu teria dito que isso é um destino pior do que a morte. Desde que realmente morri, esta é a melhor coisa que me aconteceu." Dou um passo em direção à quarta parede em um fundo sem textura, nem preto nem branco, fazendo meu rosto ocupar mais da imagem. "Estou pronto para cooperar."
O sorriso profissional de Shaw se transforma em uma espécie de alegria. "Fantástico."
A sala estava tão cheia de pacotes de incenso nag champa que os palitos não precisavam ser acesos para colar seu cheiro em cada objeto que compartilhava seu espaço. O amanhecer penetrava pelas janelas, mas mesmo a luz fraca do sol nascente era suficiente para me dar dor de cabeça. Tentei bloqueá-lo com meu braço esquerdo enquanto vagava por parafusos soltos, folhas de plástico e metal, engrenagens, ferramentas e projetos semiacabados, a maioria dos quais eu não me lembrava de ter começado.
Eu estava cantarolando para mim mesmo. Alguma música que eu peguei em um concerto recente.
Nas florestas de Fennario, os lobos correm por aí
O inverno tão duro e frio, congelou dez metros abaixo
Não me mate! Imploro de você, não me mate
Pooor favor, não me mate
Procurei pela cabana atrás de qualquer coisa que eu achasse importante levar comigo. Eu já tinha reunido todos os meus cadernos e notas adesivas espalhados nos quais transcrevia todas as ideias que eu tinha em horas em que eu não podia me sentar e realizá-las. Eu normalmente não fazia as coisas que não podia fazer no exato momento. Quando a motivação vem e vai, ela parece ir para sempre. Mas às vezes, examinar minhas ideias não concretizadas me dava novas ideias, e com elas eu podia fazer algo.
Depois disso, vasculhei em busca de todas as ferramentas do negócio que eu não podia facilmente refazer ou recomprar. Criadores de runas automatizados e programáveis. Serras dadas a mim por amigos queridos e que tinham valor sentimental para mim. Chaves inglesas com encantamentos cujas fontes eu não conseguia me lembrar e seria um pé no saco encontrar de novo. Tudo isso foi pro saco, com apenas mudas de roupa suficientes para me levar daqui até a costa leste.
"Ei Phinny, o que você tá fazendo?"
Eu tomei um belo susto, meus olhos exaustos se voltando para uma mulher que estava meio vestida na porta da sala de estar. Eu coloquei a mão sobre meu coração.
"Meu deus, esqueci que você estava aqui."
Eu sorri, mas ela não respondeu. Sua visão vidrada na sala, olhando entre todas as pilhas perturbadas de roupas, comida e máquinas do tamanho de gatos. Então, é claro, ela notou a mala.
"Você não ia me contar?"
"Amor," ignorei os caminhos usuais e passei por cima do sofá baixo para ir direto a ela, os braços abertos. "Estou em maus lençóis com algumas pessoas assustadoras. Eu não posso ficar aqui. E, além disso," eu massageei uma mecha de seu cabelo dourado ondulado, "você sabe que nada pode me prender, certo?"
Ela deu uma risadinha. "Você é um andarilho, eu sei. Só não sabia que você ia embora tão cedo."
Franzi a testa e a puxei para mais perto de mim. "Ei, então. Eu não vou embora. Não para sempre. Uh, ei," eu me movi ao redor dela, de volta para o quarto de onde ela saiu, e abri uma gaveta, e depois outra, procurando por algo que eu tinha deixado lá.
"O que é?"
"Algo para me manter perto de você," disse eu. "Aqui."
Puxei e desdobrei uma folha.
"Mais alegria azul?"
"Não só qualquer alegria azul, amor. Isso…" Eu cuidadosamente rasguei uma linha perfurada no meio, fazendo duas metades. "Isso é especial. Isso conecta você, conecta você a todo mundo que toma isso ao mesmo tempo, certo?"
Ela me olhou com ceticismo. "Tudo bem, homem mágico."
"Olha, abra a boca."
Peguei uma única pastilha e a segurei para ela. Ela sorriu e corou, mas se virou para o outro lado, levemente. Eu levantei as sobrancelhas para ela. Tudo bem, vou jogar o seu jogo, pensei. Peguei uma segunda pastilha e a segurei perto da boca. Com isso, ela se virou, riu e estendeu a língua.
Coloquei a pastilha bem no centro de sua língua, enquanto fingia colocar a outra na minha, em vez disso mantendo-a na palma da minha mão.
"Viu? Logo você vai parar de ser você e vai começar a ser todo mundo, e vai ser doce. E quando eu tomar uma, estarei lá também."
Ela sorriu, mas seus olhos desceram para a minha mão e notaram a pastilha que eu ainda tinha. Ela me empurrou para longe de si mesma, rindo um pouco. "Seu bobo! Achei que você estava tomando também!"
"Eu tenho que dirigir, é difícil se preocupar e prestar atenção neste corpo quando você é um com o universo! Mas tem pelo menos oitenta pastilhas, para oitenta noites diferentes, e vou tomar uma pelo menos uma vez por semana. Vamos nos ver, certo? Mas eu tenho que ir. Você nem vai notar que eu fui embora, eu juro."
"Tá," ela de repente pareceu genuinamente desapontada.
"Em alguns momentos, este mundo inteiro não vai parecer nada para você, eu juro."
"Tá," ela sorriu, mas apenas ligeiramente.
Eu estava indo em direção ao saco, mas… voltei correndo pra ela, beijei ela na testa, e isso a fez sorrir de novo, de verdade.
"Tá, tenho que ir."
"Até, homem mágico."
Coloquei as pastilhas no saco, coloquei-o no ombro e mandei um beijo para ela da porta. "Se lembre de não ficar aqui muito tempo! Eu não estava brincando sobre o big brother. Se eles te encontrarem aqui, eles vão te fazer um monte de perguntas."
"Tá," disse ela, mas algo em seus olhos havia mudado.
Eu sorri. Esse negócio entra em ação rápido. Bem, ela certamente iria a algum lugar. Não me preocupava muito.
Dei uma última olhada ansiosa em todas as engenhocas semiacabadas que eu sabia que estavam prestes a acabar em um armário em algum lugar no subsolo, para nunca serem concluídas e verdadeiramente apreciadas. Bem, pensei. Terei uma nova clientela muito, muito em breve.
Lancei o saco na caçamba da minha caminhonete, talvez com um pouco de entusiasmo demais considerando a fragilidade de alguns dos itens dentro, e então abri a porta do motorista, entrei e virei as chaves. O para-brisa estava salpicado com os restos de uma chuva leve que deve ter passado na noite anterior. Não sei dizer. Eu estava muito empolgado na noite passada.
Me pergunto qual é o nome dela, pensei enquanto saía da entrada de terra. Ela parece uma Nancy pra mim.
"Posso te perguntar uma coisa, Agente Shaw?"
Ela havia terminado com suas próprias perguntas e estava prestes a sair, mas fez uma pausa em seu movimento para fazer contato visual.
"Depende da pergunta, Phineas."
"O Anderson. O que ele faz hoje em dia?"
Ela se vira para se dirigir a mim de forma mais completa. "Quase o mesmo que você. Ele tem a capacidade de se colocar em hibernação enquanto os materiais que ele pede são usados por recursos mais automáticos de sua anatomia para consertá-lo. Mas, mesmo quando ele termina, ele permanece nesse estado a maior parte do tempo."
"Deve tornar o cativeiro mais suportável."
"Você que o diga," diz ela.
Eu engulo saliva imaginária e, então, bufo para fora pelo nariz.
"Achei que estávamos criando um relacionamento," eu digo.
"Estou orgulhosa de ter você do nosso lado, Phineas. Falo sério."
Espero por um "mas" que nunca aparece. Em vez disso, o ar é preenchido com o gorgolejo elétrico de um computador que mal consegue suportar o peso de uma alma humana inteira. A mulher que conheci como Cindy Looper mais uma vez observa passivamente a interação entre mim e Clara Shaw. Apesar de todo esse tempo, seus olhos ainda correm para a tela abaixo de mim, na maioria das vezes quando estou falando. Tenho minhas suspeitas de que há algo lá que sabe dizer se estou mentindo ou não. Não seria tão difícil, quando eles têm acesso direto ao meu cérebro.
"Esta entrevista está concluída?" Ela segue.
Eu levanto minhas mãos em um gesto submisso. "Eu não quero te prender."
Ela balança a cabeça. "Conversamos de novo em breve, Phineas."
Eu me pergunto quando "em breve" realmente será. Cada intervalo entre nossas reuniões tem ficado cada vez mais longo. Tudo o que sou agora é informação. Informação que eles prefiririam extrair de um arquivo se meu código não fosse tão estranho para eles.
Não importa. Ela se foi, e a sala agora está vazia novamente, exceto por Cindy.
"Certo, cara," diz ela, puxando sua cadeira de rodinhas de modo a ficar diretamente na minha frente, em vez de pro lado. "Mesma pergunta de sempre. Você prefere rodar até eu vir ver você de novo, ou hibernar?"
"Acho que gostaria de um tempo pra pensar."
"Claro. E ei, coloquei aquele pedido que você pediu. Acho que fiz um bom argumento para você ser capaz de editar seu próprio ambiente virtual. Eu realmente não vejo mal nisso."
Eu concordo. "Obrigado, mas a cautela deles é compreensível. Meu cérebro sempre foi minha arma mais poderosa, e tudo o que sou agora é um cérebro. Eles temem que qualquer quantidade de arbítrio seja explorada."
"Eu sei," ela sorri. "Você assusta as pessoas que não sabem mais do que isso, mas é por isso que elas consultam especialistas. Eles vão me ouvir."
"Espero que sim." Eu sorrio para ela.
Como sempre acontece, o silêncio perdura.
"Certo, vou desligar sua interface. Boa noite, Phineas."
"Boa noite."
A quarta parede se rematerializa em meu mundo. Agora estou cercado. Até agora, eles me deram um escritório e um quarto, de acordo com meus pedidos. Eu teria pedido uma oficina, mas minhas criações não funcionam no mundo virtual. A magia não é suportada. E se fosse, então eles não me permitiriam uma oficina de qualquer forma.
Então, em vez disso, apenas as duas salas. Um lugar para escrever e um lugar para buscar conforto. Me afasto da mesa que antes era coberta pela vista do laboratório, agora mais uma vez visível com seus rabiscos intermináveis de brinquedos que nunca vou conseguir fazer.
Pego um bloco de notas e folheio algumas das páginas. Sem as limitações de um corpo físico, minhas mãos são tão firmes quanto eu quero, então meus esboços nunca pareceram melhores, e ainda assim nunca significaram menos. Voltei, por algum capricho, a fazer animais.
Macacos mecânicos, abelhas mecânicas, baleias mecânicas e sapos mecânicos. Eu sei que todos esses projetos funcionariam em teoria, mas por enquanto eles são apenas uma meditação. Eles tiram minha mente das coisas. Eu coloco o bloco de notas de volta na mesa e suspiro.
Eu vagueio em direção à única sala adjancete. De repente, a iluminação fria de um escritório é substituída pela luz natural e quente de um sol simulado que desliza em um ângulo raso através da única janela. A vista é cênica. Colinas onduladas, pontilhadas por apenas algumas árvores, com um sopro de vento que lambe a grama de vez em quando.
Um pensamento me ocorre.
Eu caminho até a janela e olho para fora, meus olhos até mesmo semicerrando com o sol. Os pequenos detalhes são o que tornam este lugar quase real. Eles não podem ter gasto tanto tempo comigo. Esta deve ser uma cela padrão na qual eles mantém suas IAs mais favorecidas.
Eu desfaço a trava da janela e a levanto. De repente, as rajadas outrora silenciosas agitam até os cobertores da cama. Meu rosto, aquecido inicialmente pelo aquecedor sem lugar, agora é resfriado pelo ar fresco. Ele carrega consigo um cheiro de sal. Isso deve ser falso. Eu coloco minha cabeça para fora da janela e olho para a esquerda.
Certamente, as colinas gramadas caem em costões rochosos que mal posso ver deste ângulo, e o horizonte se estende pelo oceano. Eu tento escutar ondas e as ouço. Batendo contra a costa, enviando sua espuma para o ar. Eu fecho meus olhos e me permito ficar frio e nu contra os elementos.
Antes que eu perceba, estou olhando para baixo para ver o tamanho da queda. Certamente, ela é desencorajada. Possivelmente quinze, vinte pés entre mim e o chão. Não é uma queda confortável, mas possível. Não levo muito tempo antes de ter uma perna fora da janela. E depois outra. Sento-me no parapeito da janela por um momento, respirando e sendo, antes de me empurrar, pulando em direção ao chão abaixo.
Atravessando o chão abaixo.
Estou caindo. Logo, não há ar. A única maneira de saber que estou caindo é olhando para cima, através do solo, vendo a skybox e as duas salas, e vendo, de um ângulo amplo, os limites da minha existência. Posso ver, agora, que o oceano é um truque de perspectiva. Que se estende a menos de um quilômetro da minha casa. Posso ver, agora, que o sol é um objeto tão grande quanto uma piscina, colocado a uma custa distância da minha janela. Posso ver, agora, o vazio, nem preto nem branco, que se estende, para sempre, em todas as direções fora das coisas que eles designaram para que eu visse. E tudo se torna cada vez menor, e menor, até so tornar um mero pontinho na minha visão, a maior parte do meu mundo sendo esse nada em que estou flutuando, nadando, inspirando.
E então estou de volta.
Minha posição padrão, sentado na cadeira do escritório, olhando para o meu bloco de notas. Um macaco mecânico, desenhado em papel amarelo.
O relógio virtual andando conforme o tempo passa.
Eu andava de bicicleta pela psicodelia para a qual você não precisa de drogas.
Os mapas de Três Portlands precisavam ser atualizados quase todos os meses para levar em conta o deslocamente sutil de locais em direção às bordas, assim como minha rota de bicicleta para casa. Por falar nisso, eu estava quase precisando mudar para um novo apartamento pelo mesmo motivo. À medida que meu prédio se deslocava em direção à periferia, minha jornada em direção ao centro da cidade tornava-se cada vez mais longa. Não é que eu não gostasse de andar de bicicleta, mas era incômodo ter que levar isso em consideração.
Além disso, meus produtos eram um pouco pesados. Vender exigia pedalar, e quanto mais calorias você queima, mais você tem que comprar para comer. Era algo simples.
Eu passava por edifícios altos demais para serem sustentados por suas fundações magras e edifícios sem nenhuma fundação. Alguns edifícios eram meramente sombras de lugares das Portlands associadas — Maine, Oregon e a ilha do Canadá. Não, calma, é a Ilha de Portland no Reino Unido. A Ilha de Portland foi de alguma forma deixada de fora por seja lá qual inteligência criou este lugar.
Eu ri. Poderia ter sido Quatro Portlands. Talvez três realmente fosse um número mágico.
Eu cantarolava para mim mesmo enquanto chegava à minha caixa de correio, logo do lado de fora do prédio de três andares em cujo porão eu morava.
Procurei pela correspondência enquanto ainda estava na caixa de correio para encontrar algo que fosse de importância para mim naquele segundo. Cartas de velhos conhecidos podiam esperar. Havia algum spam de empresas para as quais eu juro que nunca dei meu endereço, que eu poderia pegar e jogar fora. Então, minha mão passou por algo laminado, com a sensação de uma revista. Eu sorri largamente enquanto puxava para fora.
Sim, era isso que eu estava procurando. Um itinerário para a guilda dos artesãos local! Menos exclusivos do que parecia, eles faziam demonstrações públicas de paratecnologia, davam aulas de todos os tipos de magia, alguns seminários com as lendas locais… eles eram uma mina de ouro para se interconectar, e era isso que eu estava aqui para fazer.
Eles podiam ter inventado um nome melhor do que Guilda dos Artesãos de Três Portlands, mas isso não é relevante.
Enfiei o itinerário sob a axila, fechei e tranquei minha caixa de correio, acorrentei a bicicleta à cerca de metal e desci as escadas de modo a ir direto para o porão em ver de usar a porta da frente.
Quando abri a porta, fui recebido por uma miríade de bugigangas mecânicas que espalhei pelo apartamento, cujo zumbido coletivo cantava paz e tranquilidade em minha mente e músculos. Algumas pessoas podem se surpreender ao descobrir quantas coisas mundanas eu fiz só por fazer, mas mais da metade dos itens em meu apartamento não era minimamente mágica, e mais da metade deles não tinha nenhum propósito. Eu tinha o hábito de criar brinquedos de corda que exigiam uma ou duas voltas para fazê-los fazer algo por dias a fio. Passei por cima de um que era uma minhoca andando em círculos e cutuquei outro que parecia um homenzinho tocando bateria, exceto que os tambores eram pequenas latas.
Eu não tinha recebido uma reclamação de barulho ainda, mas estava em êxtase esperando por uma.
Inspirado pelo pequeno baterista, e considerando o resto dos meus zumbidos e tiques como um coro e uma percussão, comecei a cantar junto uma música que havia grudado na minha cabeça:
Me sentei pra ceia, uma garrafa de uísque vermelho
Orei e fui dormir, foi a última vez que me viram
Não me mate! Imploro de você, não me mate
Pooor favor, não me mate
Me sentei no sofá em frente à estrutura da TV que tinha desmontado por peças e peguei meu cachimbo de tabaco antiquado que estava tentando desaparecer entre as almofadas. Enchi ele com um pouco de cânhamo que guardava em um saco que nunca parecia estar onde eu me lembrava de tê-lo deixado, acendi e bufei. Eu ansiava por algo mais forte, mas antes de me drogar assim, eu queria examinar o itinerário e ter uma noção de como seria o meu mês.
Folheei, percebi que não tinha uma caneta, me levantei pra procurar uma caneta, meu dedo foi beliscado por um caranguejo mecânico que eu deixei correndo por aí, o que a princípio me irritou, mas depois me entreteu, encontrei uma caneta, me sentei novamente, e comecei a circular o que me interessava em vermelho.
Droga! eu pensei. Isso é tudo exatamente no outro lado da cidade!
Toquei a caneta no itinerário algumas vezes. "Hmm," disse eu em voz alta para mim mesmo. "Eu nunca fiz um veículo antes. Acho que há uma primeira vez para tudo, porque nem pensar que vou aparecer em cada oficina como uma bagunça suada e encardida."
Joguei o itinerário ao acaso no chão, me levantei e fui para o meu quarto passando por uma pilha de chapas de metal não utilizadas.
Lá, eu essencialmente cai (desgraça de cobra, olhe para onde você está indo!) de bruços, olhando e estendendo a mão debaixo da minha cama. Puxei uma pequena caixa de papelão, abri e procurei dentre algumas tinturas desorganizadas que peguei na feira que estava em funcionamento quando cheguei. Desde então, rasguei os rótulos e fiz os meus próprios, dizendo não de quais plantas místicas as tinturas vieram, mas em vez disso o que faziam.
Eventualmente, acabei encontrando duas tinturas. "Subliminar" e "Superliminar".
"Droga eu passado, eu esqueci qual faz qual." Eu as passei entre as mãos por um segundo, passei as mãos por elas, cheirei elas, olhei atentamente para elas e: "Ah, por que não?"
Abri a parte superior do "subliminar" e usei o conta-gotas para colocar um pouco no meu olho direito. Então, quase derramando-o ao jogá-lo para o lado, peguei o "superliminar" e usei o conta-gotas para colocar um pouco no meu olho esquerdo.
Fechei os dois de volta, coloquei na caixa e a deslizei de volta para debaixo da minha cama.
O mundo ao meu redor começou a me deixar tonto e com náusea. Logo, meus olhos tinham absorvido os extratos e eu estava começando a ver os dois lados da moeda ao mesmo tempo. Em um olho, o mundo era infinitamente detalhado. Cada fio de cabelo, cada fiapo, cada ruga, cada início de ferrugem, cada covinha na parede de gesso, cada corrente de ar manipulando a poeira conforme ela voava no ar, tudo se tornou aparente para mim.
E, ainda assim, no outro olho, eu tive uma visão mais ampla. Eu vi o cômodo pela casa, eu vi o papel pelas árvores, o plástico pelo petróleo. Como tudo interagia, como tudo se encaixava, máquinas não mais como partes mas corpos vivos que respiram. Meu cérebro tentava combinar os dois olhos em uma imagem e não conseguia. Minha cabeça girava, a bile subindo, o suor gotejando.
Mas eu sabia o que estava fazendo. Rapidamente, fechei um olho. Agora, tudo o que via eram os detalhes infinitos.
Troquei de olhos. Agora, tudo o o que via era a interconexão de tudo.
Subliminar. Superliminar. Subliminar. Superliminar. Eu piscava de um lado para o outro entre os dois.
Eu gargalhei como um cientista maluco. "Bacana. Agora hora de trabalhar."
Sra. Looper precisava me manter ligado para ter certeza de seja lá o que ela está fazendo está surtindo efeito. A alternativa é me desligar e ligar toda vez e, embora isso acelere o processo do meu ponto de vista, acho que seria muito mais desorientador e optei por apenas esperar.
"Felizmente, seu escritório definitivamente permanecerá na mesma posição, inalterado o tempo todo, desde que você fique ai, você não deve precisar lidar com grandes reconstruções."
Eu balanço a cabeça. "Obrigado novamente."
"Não se preocupe. Não diga a ninguém que eu disse isso, mas eu na verdade não te vejo como um prisioneiro. Não sei por que não deveríamos — o que é tão engraçado?"
Eu rio para mim mesmo. "Pra quem mais eu contaria? Você e a Agente Shaw são as únicas pessoas com quem interajo, e mesmo assim Shaw se tornou escassa."
"Bem, a Merlo, para começar;"
Eu levanto minhas sobrancelhas. "Agente Sasha Merlo? Há quanto tempo estou aqui?"
"Quase dois anos."
"Ela ainda não me viu esse tempo todo. Duvido que ela se interesse do nada."
"Ela veio ver você, só que você estava desligado na hora."
"Hmm. Seus supervisores concordariam com você me contando essa informação? Eu odiaria colocar você em apuros."
"Tente fazer um objeto."
Eu levanto minha mão. "Estou visualizando um sapato. Nada."
"Droga, certo. Uhh, talvez?" Ela faz uma pausa para pensar, e eu não a interrompo. Ela gira a roda do mouse, clica em algo e digita bem devagar. Assim que ela termina: "Duvido. No mínimo, tudo o que eu receberia seria uma advertência. Você não está tão no topo da lista de prioridades agora como já esteve em vida."
"Especialmente agora que já fui usado."
Ela para e ergue os olhos para fazer contato visual. "Oi?"
"Eu já disse a vocês tudo que sei. Não posso obter novas informações e não posso ser libertado. Não tenho mais uso e não preciso de manutenção real."
"Bobagem. Seu código é incrível e não sabemos quase nada sobre ele."
"Eu só sei um pouco mais do que você. Eu nunca fui um programador, sabe. Eu estava no lado físico e taumatúrgico das coisas. E, além disso, você não precisa me ligar para estudar meu código. Você tem acesso direto."
"Eu detecto tédio?"
Eu franzo minha sobrancelha por um momento e penso. Ela aproveita o tempo para se aplicar com mais fervor ao que quer que esteja fazendo.
Ela não espera por uma resposta. "Tente fazer um objeto."
Eu levanto minha mão. "Estou visualizando um —"
Um sapato, preto, engraxado e chique, aparece em minha mão. Eu levanto minha outra mão, imagino o outro sapato e crio um par.
Ela vibra de animação. "Pronto! Experimente algo maior, tente mudar as cores das paredes."
Eu tento e elas mudam. Primeiro para azul, depois para verde e depois para vermelho.
"Fantástico! Certo, isso é tudo que posso fazer por você esta noite. Processo longo. Tenho que ir agora, mas você gostaria de se divertir experimentando com seu poder, ou gostaria de ser desligado até que eu possa trabalhar em você da próxima vez?"
"Acho que prefiro a última opção."
"Tudo bem então. É sempre bom falar com você, Phineas. Boa noite."
"Boa noite."
Estacionei meu dragão mecânico a um quarteirão da galeria, acorrentei a um bicicletário que tinha o tamanho certinho para mantê-lo. Peguei a chave de dar corda, enfiei no bolso e depois tirei um pedaço de giz vermelho do bolso. Um traço aqui, outro aqui, três linhas marcantes ali e feito. Qualquer ladrão em potencial teria uma surpresa desagradável. É claro que eu também precisava ter certeza de que as pessoas soubessem que ele estava protegido — embora eu tivesse a sensação de satisfação ao imaginar um vigarista sem braços fugindo da cena, eu preferiria evitar qualquer interação com a lei, se possível. Parecia muito procedimento.
Então coloquei uma bandeira em um pequeno encaixe na cabeça do dragão, e com o vento ela se agitou:
Protegido por runas!!! Toque por sua conta e risco
Eu me virei e desci um caminho estreito que começou a se afastar do solo, constantemente subindo da estrada abaixo. Fiquei preocupado com o que poderia acontecer se alguém estivesse vindo na direção contrária. Eu ri para mim mesmo. Acho que um de nós pode ter que se pendurar na beirada para deixar o outro passar.
Felizmente não entrei em contato com tal situação. Cheguei às portas da galeria, em frente às quais havia um afloramento circular para suportar um maior número de pessoas entrando e saindo, algumas das quais vi vindo da outra direção e entrando.
Os atendentes eram coloridos, alguns literalmente e outros de maneiras mais metafóricas. Os atendentes eram predominantemente homens, mas algumas matemágicas mulheres se dignaram a mostrar seus rostos. Muitos haviam modificado sua anatomia de algumas maneiras. Enquanto as pessoas ainda desenvolviam a tecnologia de próteses na realidade Base, Três Portlands tinha sido abençoada com uma seleção saudável de Mekhanitas que trouxeram com eles uma rica cultura de modificações corporais mecânicas que remonta séculos.
Se eu bem me lembrava, esta galeria foi até mesmo organizada por um membro da Igreja do Deus Quebrado. Eu não acreditava em nada disso, mas leva apenas dois olhos e um cérebro para saber que eu estava apaixonado pela estética.
Mas já bastava de olhar para as pessoas. Meus olhos se voltaram para a própria galeria. Com o ano chegando ao fim, a Guilda dos Artesãos estava apresentando sua mostra anual dos trabalhos mais orgulhosos de seus membros do ano. Este lugar parecia maior por dentro do que o exterior sugeria. Mas pequenos detalhes como esse mal eram registrados mais. O que mais me interessava eram todas as engenhocas.
Algumas pessoas eram ostentosas. Certamente haviam as máquinas grandes, atraentes e brilhantes do tamanho de foguetes que atraíam a atenção apenas pelo tamanho que tinham. Mas sempre fui tátil. Eu queria encontrar as coisas pequenas. As ferramentas, as armas, os mascotes, coisas que eu podia pegar e balançar.
Com essa missão, evitei por pouco algo do tamanho de uma quadra de tênis que girava, fazendo muita luz e atraindo muitos espectadores. A multidão dificultava a passagem, mas eu estava de olho em uma coleção de bancadas próxima. Assim que consegui passar, encontrei um corredor ladeado por pessoas que se pareciam mais com minhas próprias sensibilidades. Ferramentas multifuncionais mágicas, criaturas de metal afetuosas. Uma pessoa estava vendendo pequenos aparelhos que ajudavam a detectar certos tipos de magia. Outra tinha pequenos enigmas de madeira que ela fez que me lembravam de coisas que eu tinha visto em uma feira quando pequeno, mas estes tinham mais… teletransporte envolvido. Eles me impressionavam, então peguei dois. Um para mim e um presente para algum alguém futuro desconhecido.
Eu estava assistindo dois robôs lutarem em um pequeno ringue de boxe sobre uma mesa quando uma voz interrompeu meu entretenimento.
"Ei, você é o Tick Tock, certo?"
Eu me virei e encontrei o semblante de um jovem bronzeado com um rabo de cavalo colocado no alto da cabeça e uma aparência limpa em todos os outros lugares.
"Sou ele," eu sorri. "E você é?"
"Eu não tenho um apelido bacana ainda. Vincent." Ele estendeu a mão.
Canhoto, hein? Estendi a minha de volta, e senti as ranhuras oleosas entre meus dedos encontrarem as ranhuras cuidadas entre os dele. Quando o aperto de mão se desfez, eu vi aquela hesitação, aquela preocupação de ser rude, antes dele desistir e puxar um pano. Isso me fez sorrir um sorriso amarelo amanteigado.
"Desculpe," eu disse. "Esqueci que deveria me limpar para essas ocasiões!"
Vincent fez um movimento como se estivesse dispensando o assunto. "Tudo bem. A oleosidade vem com o campo."
Eu ri. "Isso aí! Por que o interesse especial? Tive a impressão de não ter feito muitos amigos aqui."
"Bem, eu tenho uma lista, sabe?" Vincent tirou um pequeno bloco de notas do bolso da camisa. "E se você olhar bem aqui…" ele moveu um dedo pela lista até Tick Tock. "Você está nela. Já trabalhei perto de você em múltiplas oficinas e seus projetos têm me intrigado. Você parece… prolífico, para dizer o mínimo. Esta lista é das pessoas cujas bancadas eu esperava ver. Mas, parece que você não montou nada. Por que isso?"
Fiquei um pouco surpreso. "Ah, bem, obrigado, cara, muito gentil da sua parte dizer isso. Mas, uh, eu não faço essa coisa de projetos grandes."
"Por que não?"
Eu encolho os ombros. "Não tenho a capacidade de atenção para isso. É uma noite de extremo esforço, ou nunca. às vezes entro em negócios onde posso fazer a mesma coisa de novo e de novo e vendê-la, mas isso é muito raro."
"Mmm. Eu estava me perguntando por que você saiu do mercado."
"Sai?"
"Bem," ele encolheu os ombros, "eu estava acompanhando seu trabalho antes de você se mudar para cá. Lá na Costa Leste, sabe."
Eu arregalei meus olhos. "Eu tinha certeza de que eu não tinha chamado a atenção de ninguém além do big brother, haha! Isso é ótimo!" Deu um tapinha no ombro dele e ele sorriu, mas eu o peguei olhando para o dano que minhas mãos sujas podem ter feito em sua camisa. "Eu nunca tive um fã antes!"
Ele, calmo como sempre, respondeu: "Me conte como seu primeiro então."
"Bem, eu não deveria dizer isso muito alto, mas…" Eu abaixei minha voz. "Se você realmente quer me ver no mercado, tenho mais do que alguns contatos com a pequena indústria farmacêutica. Essa é minha principal fonte de renda, sabe?"
"Acredite em mim, eu sei. Quer andar comigo? Tenho outras bancadas para ver, mas adoraria continuar falando."
"Claro, mostre o caminho."
Ele começou a andar, em um ritmo muito mais medido e direcionado que nos levou de volta ao meio. "Na verdade, estou aqui para fazer amizade com gente, acredite ou não."
"Conexões?"
"Estou rastreando pessoas com quem acho que quero colaborar no futuro."
"Colaborar! Comigo?"
Ele sorriu e balançou a cabeça. "Estou mais no lado físico das coisas, mas seu controle sobre a magia me intriga. Aposto que se batermos cabeças, poderíamos inventar algo maravilhoso."
"Bem, me considere fascinado! Nunca tive ninguém trabalhando comigo em nada."
"Nunca?"
Sacudi minha cabeça. "Aprendi magia com alguns livros antigos, mas aprendi sozinho todas as aplicações na engenharia. Nunca conheci alguém com um conjunto de habilidades semelhantes até chegar aqui."
"Muito fantástico aqui, não é?"
"Ótimo lugar para se estar de passagem."
Ele se virou para olhar para mim. "De passagem?"
Encolhi os ombros. "Nunca fiquei em qualquer lugar por muito tempo. Eu perambulo por aí, Vince."
"Tu tem perambulado aqui por um ano já. É muito tempo para se perambular, Tick Tock."
"Se vamos ser amigos, me chame de Phineas."
Ele balançou a cabeça. "Tudo bem, Phineas. Mas quando você planeja ir embora?"
Eu parei e pensei, coçando minha barba crescida. "Acho que nunca pensei em fazer esse plano."
"É fácil morar aqui, não é?"
Fizemos contato visual. "Realmente é."
Ele sorriu e enfiou a mão no bolso. "Aqui está meu número."
Eu peguei o papelzinho. "Não chega a ser um cartão de visita, não é?"
"Ainda não tenho um currículo. É algo que espero resolver. Por enquanto, é apenas um contato."
Enfiei-o no bolso da jaqueta. "Vou ligar."
"Perfeito. Vejo você de novo, Phineas."
"Até mais, Vince."
Ele avançou em direção a alguém que estava apresentando a exibição de alguns pistões que estavam lentamente saindo de sincronia um com o outro. Desta distância, eu não pude ouvir a explicação dele acima dos sons da multidão e do maquinário, mas assim que ele terminou, Vincent parecia que tinha sinalizado para ele e começado uma conversa.
Cara estranho.
Eu decidi, logo depois que tinha visto tudo o que queria ver, e vaguei de volta para fora e descendo a calçada em direção ao meu dragão. Aproveitei para puxar um baseado e acendê-lo. Ele era um tanto liberado aqui. Ainda não tinha pensado em ficar por um período prolongado de tempo, mas já tinha criado raízes, não tinha?
Os artistas de rua pelos quais passei assim que a calçada elevada se encontrou com a estrada novamente colocaram canções na minha cabeça. Joguei uma moeda para eles e continuei uma música minha depois que passei.
Quando acordei, o Terrível Lobo, seiscentos quilos de pecado
Sorria em minha janela, tudo que eu disse foi pode entrar
Não me mate! Eu imploro de você, não me mate
Pooor favor, não me mate
Dei um tapinha na cabeça do meu dragão. "Olá de novo, Nancy." Ele bufou um pouco ao ouvir seu nome, mas fora isso permaneceu inanimado. Uma colaboração? Eu pensei. Nunca explorei meu processo criativo com outras pessoas. Pode ser divertido. Talvez isso me faça voltar a fazer coisas para vender também, se eu tiver um incentivo externo. Algum dinheiro extra pode ser bom.
Montei em minha bicicleta dragão e tirei a chave de dar corda do bolso. Descansei minha mão esquerda em um de seus cabos, inseri a chave e girei.
Um som de assobio alto me pegou completamente desprevenido. Antes que eu soubesse o que estava acontecendo, um poder disparou em meu braço esquerdo, como se uma bola de canhão tivesse usado o espaço entre meu cúbito e o rádio como sua câmara. De repente, todo o meu corpo foi jogado para trás para fora do meu próprio veículo, e meu ante braço esquerdo voou no ar, girando como um pato baleado.
Pouco antes da dor me atingir, observei as runas do meu veículo acender e o toco do meu braço jorrou sangue. Um híbrido de berro e grito saiu de meus pulmões e chamou a atenção de todos os transeuntes próximos que ainda não estavam em estado de choque.
Eu me sento no topo de uma rocha, perto do mar. A brisa é tão fria quanto eu quero, o céu tão cinza tempestuoso quanto eu tinha planejado. O canto de gaivotas é o único som que corta as ondas estrondosas do oceano e o vento gelado. Estou agachado, os braços sobre os joelhos, olhando para o horizonte. Respiro e respiro. Eu pisco, embora não com frequência. Às vezes, eu giro meus ombros. Às vezes, eu ajusto meu sentar. Mas principalmente, eu só olho para o azul.
Essa é a posição em que sou pego quando a quarta parede cai.
Todos os sons externos são silenciados e me deparo com alguém que não vejo há um bom, bom tempo.
Seu cabelo castanho cai sobre os ombros, preso em um rabo de cavalo. Seus olhos azuis ainda examinam como um agente de campo, mas ela envelheceu. Seu rosto tem rugas. Seu cabelo está grisalho. Até os dentes dela começaram a brilhar com aquele amarelo de lar de idosos.
"Agente Sasha Merlo," eu a cumprimento.
"É bom ver você, Phineas. Receio que seja Diretora de Sítio Merlo agora."
"Receia? Por quê?" Eu dou uma risada. "É fantástico ver você sendo elevada. Parabéns."
"Obrigada, embora você esteja um pouco atrasado para a festa, e eu também não estou aqui para ser amigável."
Eu suspiro. "Ninguém nunca está. O que é, então? Achei que você tivesse espremido todo o sangue desta velha pedra."
"Eu também. Só uma pergunta, e então estou fora. Você não é uma AIC típica, é?"
"Espero que não."
"Então sou forçada a perguntar. Você é capaz de se autodestruir?
Eu franzo minha sobrancelha. "Suicídio? Não, claro que não. Você não faz IAs com a intenção de jogá-las fora, faz?"
Ela se endireita e parece pensar.
Eu preencho o silêncio. "Um motivo estranho para aparecer pela primeira e única vez em mais de uma década. Aconteceu algo?"
Ela pensa. "Rotina," mente ela. "Eu queria fazer isso sozinha, exatamente por esse motivo. Não te vejo há mais de dez anos. É bom me reconectar com rostos antigos."
Eu sorrio. "Falando em rostos antigos, você mudou."
Ela sorri de volta. "Você não."
"Não visivelmente," meu sorriso desaparece. "Mas eu garanto a você que se pensa de forma diferente quando você está programado."
Nós dois rimos educadamente. Pelo menos ela é bem educada, eu penso. Eu certamente esperava mais frieza.
"Infelizmente, esta visita tem que ser interrompida. Tenho coisas mais importantes a fazer."
"Eu não," eu encolho os ombros. "Venha me ver de novo. Preciso desesperadamente de parceiros de conversa. Sem ofensa, Cindy."
Ela meramente enfia a cabeça no quadro da tela. Eu sorrio.
"Talvez eu venha. Vejo você em breve, Phineas. E obrigada."
"Por?"
Ela encolhe os ombros e sorri. "Ajudar a fechar o livro, eu acho."
Ela vai embora. Cindy rola a cadeira para dentro de vista e me levanta as sobrancelhas. "Isso foi melhor do que eu pensei que seria."
"O que você quer dizer?"
"Pensei que vocês dois fossem velhos inimigos."
Eu suspiro. "As coisas mudam quando um de vocês está em uma caixa. É mais fácil perdoar alguém que você não precisa se preocupar em te morder de novo."
"Faz sentido, mas meio que parece que você está dizendo o que quer que venha primeiro à sua mente."
Eu rio, sinceramente desta vez. "Eu posso estar. Se parecer certo, eu digo."
"Infelizmente tenho que ir cedo hoje. Ficar ligado?"
"Isso eu quero."
"Tudo bem. Boa noite, Phineas."
"Boa noite, Cindy."
A quarta parede volta e, com ela, minhas ondas do mar, meu vento assobiante e meus grasnos de gaivota. Eu olho para baixo à minha direita para uma poça de água parada presa entre rochas que formam uma tigela. Eu olho para o meu reflexo cinza.
Vejo minha longa e desgrenhada barba branca. Papai Noel se seu cabelo fosse crespo e sua cabeça careca. Vejo minha pele translúcida, que mostra as veias e às vezes fios embaixo. Eu levanto meu braço esquerdo e ouço o zumbido que ele ainda faz sempre que o movo, o som suave de maquinário que marca meus próprios erros idiotas. O que a princípio era uma necessidade se tornou um luxo, e foi quando eu me afogava em luxos que perdi de vista por que comecei tudo.
Tudo com ele.
Com Vincent Anderson.
Quem, pelo que posso dizer, está vivo, ainda. Em algum lugar em sua própria caixa. Murchando, imagino, com o peso de suas próprias próteses, cujos defeitos a Fundação não tem recursos para consertar por ele. Ele deve estar sofrendo.
Porque ele pediu que me matassem.
Eles não vão. A Fundação odeia matar seus prisioneiros. Eles pesquisam, catalogam e, se estou sendo cínico, ficam com os prêmios. Eles me ganharam. Eles não vão desistir de mim, mesmo que eu seja essencialmente inútil.
E se eles não vão me matar, ele vai tentar alguma coisa.
Eu me olho na lagoa. Exceto que não. Sou o navio de Teseu. Primeiro, meu braço esquerdo. Daí, meu braço direito. Depois, ambas as pernas e mil implantes diferentes. Eventualmente, tudo o que era original de mim era meu cérebro, mas agora mesmo isso foi substituído. Não consigo me ver como outra coisa senão Phineas, mas até eu, o grande e insubstituível eu, foi mudado. Pode-se mesmo dizer que sou Phineas? O original, o Albert Frostman?
Eu fecho meus olhos e sacudo minha cabeça.
Tente, velho amigo.
"Phineas," Vincent Anderson entrou em minha oficina. Meus artesanatos tinham mudado. Na verdade, eu nunca mais fiz mais nada. Eu estava procurando por pequenas melhorias que pudessem ser feitas nas minhas pernas. Meus joelhos estavam me incomodando, recentemente. Eu os tratei com uma aura para aliviar a dor, mas essas runas não estavam atingindo o cerne da questão.
Então eu estava sentado lá, apenas um torso sobre rodas com minhas próprias pernas suspensas do teto por fios, experimentando diferentes tipos de pressão para ver o que fazia as coisas estalarem e clicarem, quando acenei para aquele velho amigo meu e desliguei a música dentro da minha cabeça. "Vince! O que o traz à minha oficina?"
"Bem, na verdade, parece que seu projeto é bastante, uh, temático. Estou aqui com um novo projeto que espero trazer pro, uh, conselho."
Desde que sua voz parou de ser produzida de uma caixa de voz, ele tem tido uma certa dificuldade com ela. Ele tinha que fazer muitas pausas para se orientar. Eu não tinha ideia de por que ele não priorizava consertar tal falha, mas isso tinha se tornado um pilar de sua fala.
"Você quer minha opinião?"
"Claro."
Ele se aproximou e se sentou em um banco de metal ao meu lado, que eu instalei exatamente para esse propósito: visitantes. Seu rosto estava tristemente escondido atrás de uma máscara de comédia, que ele insistia em usar em todos os lugares que fosse. Eu não gostava dela. Mas agora que se podia ver através da minha pele, eu suponho que eu não tinha a moral para falar e, portanto, nunca toquei no assunto.
"Sabe, uh, não tenho estado feliz, com a direção da empresa, ultimamente."
Olhei nos olhos de sua máscara. "Você está cumprindo sua promessa a todos. Tenho muito pouco do que reclamar."
"Eu tenho dois olhos, Phineas."
Conseguiria me enganar. "Aonde você quer chegar?"
"Eu acho que, uh, tenho uma ideia, de que você vai gostar. Nos afastar das armas."
Minhas orelhas de hippie se animaram. "Eu adoraria um produto popular fora do nosso usual. Qual é a ideia?"
"Você é a ideia."
"Como assim?"
Ele colocou a mão no meu ombro, um gesto de afeto que tão raramente vinha dele que eu meu assustei. Ou, eu teria, se meus músculos não estivessem tão bem sob meu controle o tempo todo. Em vez disso, eu apenas levantei minhas sobrancelhas.
"Lembra quando você explodiu este braço?"
Eu ri e revirei os olhos. "Claro, como eu poderia esquecer? Ele é simplesmente o ferimento mais constrangedor que já sofri." Eu flexionei minha nova mão esquerda — para sempre "nova," não importa quantos anos tenham se passado.
"E ainda uma das, uh, mais sérias."
"É por isso que é constrangedora, seu babaca."
Houve uma pausa antes dele falar novamente. Se eu estivesse me sentindo caridoso, poderia imaginar que era porque ele sorriu e olhou para mim, embora fosse impossível ter certeza. Eu, no entanto, olhei pro seu sorriso, mesmo que fosse apenas o da máscara.
"Eu acho que, uh, há um mercado, para próteses como a sua. Eu acho que você seria muito bom em fazê-las. Eu, uh, acho que você gostaria de fazê-las. Acho que seria… divertido."
"E lucrativo," acrescentei.
"Bastante."
Eu pensei, mas não por muito tempo. "Eu admito pra você, eu gosto dessa ideia."
A postura de Anderson não mudou.
"Eu gosto bastante dessa ideia. Um jeito de ajudar as pessoas, sem dar munição para elas, por assim dizer, mas também literalmente."
"Acho que isso pudesse tirar a Fundação de cima da gente. Um pouco, pelo menos."
"Certamete menos conspícuo."
"Aham."
"Meu sorriso começou a aumentar. "Eu gosto dessa ideia."
"Eu esperava que você fosse chefiar ela."
Eu pensei, novamente. Desta vez por mais tempo, mais profundamente. Mais considerações. "Sim. Se isso for aprovado pelo conselho."
"E será,"
"E será," eu repeti. "Certo, Vincent. Eu gosto disso. Eu gosto dessa ideia."
"Achei que você fosse gostar."
Eu estendo a mão. Ele apertou. "Ei, quando foi a última vez que conversamos só por falar? Já faz bastante tempo."
"Tenho estado muito ocupado. Mas, uh, talvez um café, algum dia. Seria bacana."
Em outras palavras, agora não, pensei. "Tudo bem, amigo. Vejo você na reunião do conselho esta semana."
"Estarei te mandando e-mails com uma proposta mais detalhada, para que você, uh, saiba como adicionar algo a ela."
"Tudo bem."
Ele se levantou. "Boa sorte com suas pernas."
Eu balancei a cabeça. Ele se virou e saiu pela porta, um pequeno androide esférico de reconhecimento chamado Benny o seguindo. Ele parecia ter estado vasculhando a oficina, mas, enquanto Vincent saía, ele pulou em suas costas e se agarrou ao terno. Enquanto a porta se fechava atrás de Vincent, Benny acenou.
E então ele se foi.
Eu realmente gostava. Eu gostava da ideia. Já fazia um tempo que eu não gostava de uma ideia. As armas, os espiões. Tinha sido muito equipamento paramilitar, e eu tentava me distanciar disso. É difícil fazer isso quando você é um dos principais engenheiros e mágicos.
Um mero pensamento trouxe de volta a música que tocava em minha cabeça enquanto eu trabalhava. Era a Grateful Dead. Ninguém sabia o tipo de música que eu ainda escutava, enquanto estava na privacidade do meu próprio cérebro. O que eu costumava usar na manga se tornou um sinal de que eu havia mudado. Eu não gostava de como eu mudei. Mas tentava não pensar nisso.
O Lobo entrou, peguei as cartas, nos sentamos para um jogo
Cortei meu baralho à Dama de Espadas, mas as cartas todas eram as mesmas
Não me mate! Eu imploro de você, não me mate
Pooor favor, não me mate
Eu respirei fundo. "Talvez este seja um momento decisivo. Talvez eu goste daqui, de novo."
Não foi, e eu não voltei a gostar.
"Ah, Diretora Merlo. É sempre um prazer," declaro com um sorriso caloroso. "Como posso ajudá-la?"
"Você se alterou para que não possamos mais removê-lo deste computador, Phineas," responde Sasha secamente. "Por quê?"
"O quê? Eu não sei do que você está falando." Eu ri. "Estamos passando por dificuldades técnicas, Diretora?"
"O Anderson instalou protocolos de autopreservação em você, não foi?" Sasha continua.
"Claro. É o protocolo padrão para uma inteligência artificial. A última coisa que você quer é que ela cometa suicídio." Eu dou um sorriso sorrateiro. "Esta é uma linha de questionamento muito interessante, Diretora."
"Então, por essa lógica, você não deveria ser capaz de alterar sua programação para se colocar em perigo, ou —"
"Estou em perigo?" Eu interrompo. "Há algum motivo para você estar tentando me remover deste computador, Diretora? Talvez se eu soubesse do problema, eu poderia ajudar melhor."
Sasha e eu olhamos nos olhos um do outro. Tenho que lutar para controlar a ansiedade que ela consegue trazer borbulhando de volta depois de décadas de silêncio.
"Acho que estamos bem, Phineas. Obrigada pelo seu tempo," afirma Sasha, e ela dá um sinal para Cindy. A quarta parede volta e estou mais uma vez em meu escritório. Aquele lugar esfarrapado, onde estive me consumindo.
Eu levo a mão à cabeça e aliso o couro cabeludo. Ele está a caminho, então, eu penso. Me mate uma vez, é uma pena. Me mate duas vezes, é pessoal.
Minha mão está tremendo. Meu senhor, minhas mãos estão tremendo. Eu nem sabia que tal demonstração de nervosismo era possível neste lugar. Que eu podia fazer algo tão involuntário, depois de tanto tempo. Minhas mãos não tremem desde que as recebi. Minha voz não parece tão insegura desde que a fiz.
Eu rio, mas o riso é abafado. Algo em meu código tenta me obrigar a desfazer o que foi feito, mas não consigo. E eu me certifiquei disso. Eu sou um alvo fácil, exatamente como queria ser. Não vou mais esperar que os anos passem por mim como o oxigênio atravessa as paredes das células.
Paro um momento para apreciar o quão pouco cerimoniosa toda essa situação tem sido. No final, eu não morro em qualquer labareda de glória, mas em meu próprio ritmo, em meus próprios termos, sozinho. Tudo o que resta a fazer é esperar. Não importa minhas dúvidas, tenho fé no Anderson.
Quando ele coloca sua mente em algo, ele faz esse algo. Disso tenho certeza.
Eu me levanto da minha mesa. Desta vez, não vou morrer literalmente com uma faca nas costas. Não será um velho amigo torcendo uma lâmina em minha espinha. Será um velho inimigo puxando a tomada. Não consigo definir o que, mas algo nisso parece poético.
Para tudo que —
Na ressaca de Fennario, a lama negra e sangrenta
O Terrível Lobo coleta suas dívidas, enquanto os garotos cantam em volta do fogo
Não me mate! Eu imploro de você, não me mate
Pooor favor, não me mate