Desconectar

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Capítulo I.XIII

Eu não sei quem é você que lê isso. Listar aqueles que acho que podem eventualmente colocar os olhos nestas páginas seria estranhamente excludente para aqueles que realmente colocarem olhos e que inevitavelmente não estariam listados aqui e, como tal, abster-me-ei. No momento, e em geral, escrevo para mim mesma, portanto isso eu considerarei uma nota para mim mesma.

Às vezes, ao escrever, me vejo pecando decididamente a favor da dramatização. Dou às pessoas diálogos que nunca me foram transmitidos, descrevo personagens cuja descrição nem mesmo sei. Estou, portanto, ficcionalizando minha vida. Mas às vezes, exagerar, transmitir minhas conjecturadas mal informadas, é ser total e absolutamente desrespeitosa e, portanto embora eu saiba que existem maneiras mais dramáticas, e talvez mais divertidas, de começar um capítulo, sinto a necessidade de aqui ser direta e honesta:

Minha mãe morreu de câncer no meu 35º aniversário, 1º de janeiro de 2013.

Ela morreu em casa, eu estando na outra sala. Ainda me castigo por não ter estado explicitamente ao seu lado, mas me sentei ao lado de sua cama, que nos demos ao trabalho de colocar junto à porta de vidro que dava para seu jardim de modo que ela pudesse admirar as plantas em seus últimos dias, por horas a fio durante toda a semana anterior. Uma vez que ficou claro que ela não duraria até o final do mês, decidimos juntos ficar em casa em vez de no hospital, pois era mais importante ter alguns dias a menos com todas as suas amenidades caseiras do que ter mais alguns dias em uma sala branca e estéril, o tempo todo atormentados pelo bipe de máquinas e recebidos apenas com más notícias e comida insossa.

E uma manhã, estava muito claro para mim que, como Mamãe não conseguia mais falar, e seus olhos se recusavam a permanecer abertos, e sua respiração estava ficando cada vez mais lenta, ficou claro para mim que ela ia morrer; que o que foi dito foi dito; que não haveria mais conversas por vir; que ela já tinha efetivamente escapado de minhas mãos em algum momento durante a noite, embora sua lucidez tenha ficado indo e vindo pelas últimas três noites; que o melhor a fazer era ficar ao lado de sua cama, segurar sua mão e contar as horas, enquanto no jardim os insetos mexiam nas flores e, além da cerca, o churrasco do vizinho era tão desordeiro quanto era de direito seu.

Mas uma vez me levantei para pegar água, porque minha garganta estava seca e, quando voltei da cozinha, eu me esforcei para ouvir sua fina e vaporosa respiração, mas nenhum som saía daqueles lábios. Fiquei olhando, estupefata, para seu corpo desnutrido, devastado como estava pela doença, tão pequeno sob os cobertores. Eu respirei, eu pisquei. Minha mandíbula tão tensa que doía, minha cabeça latejando violentamente. E, sem a coragem necessária para pensar em um curso de ação mais adequado à situação, levei o copo d'água aos lábios e bebi.


* * * * *


O funeral da Mamãe foi um evento humilde. Assim como seu casamento, ele mal teve comparecidos, como era seu desejo, apenas os mais próximos de seus amigos e companheiros que ela tivera; ela muitas vezes tinha falado sobre querer um suéter de malha justa mais do que um guarda-roupa de coisas menos apropriadas.

Cada membro daquela festa triste e solene pertence a uma história própria, mas para homenageá-los e sua conexão com minha mãe, narrarei seus nomes em ordem: Tom Archer; Jai Gallup; Shika Ikeda; Ciara McCarthy; Austin McCloud; Barbara Offam; Amanda Tillerson; Faith Wallace; Tim Wilson; e eu mesma.

Depois de um discurso que escrevi sobre o falecimento de minha mãe e a influência positiva dela em minha vida, vários de nós lemos poemas, alguns originais, em homenagem à aptidão da Mamãe para a poesia. Eu mesma li alguns do que considero serem os melhores dela, de coleções que eu pretendia tentar publicar. Acredito firmemente que minha mãe podia ter sido uma poetisa de sucesso, e se ela não fosse poder sê-lo em vida, então talvez ela possa, como muitos artistas, florescer após a morte. Mas estou divagando. A questão é que foi uma experiência muito adorável e totalmente positiva (das poucas formas que poderia ser), e enquanto as cinzas da Mamãe estavam no meio da mesa, adornadas com flores e bichinhos de pelúcia, conversamos como se ela fosse alguém que ainda podíamos ir ver. Falávamos apenas bem dela, embora às vezes nos permitíamos alfinetá-la, assim como bons amigos alfinetam as peculiaridades e hábitos uns dos outros. Qualquer que fosse a piada, ela não era maldosa, mas uma celebração de todas as pequenas coisas que tornam a Mamãe Mamãe.

Por exemplo, a maneira como ela cruzava as pernas, apoiava o cotovelo no joelho, descansava a cabeça na mão e se inclinava para a frente sempre que realmente se empenhava em ouvir ou assistir algo; ou como ela não conseguia permanecer brava, mesmo quando ele estava furiosa momentos atrás; ou como, informaram-me os veterinários presentes, todo animal que ela operasse sairia da clínica com um novo apelido. E a lista não para.

Mas como nenhuma conversa, por mais querida que seja, pode durar para sempre, nós todos começamos a partir, como amigos. Mãos foram apertadas, embora abraços acontecessem com mais frequência, e todos os participantes lentamente se foram, um após o outro, para ir para casa jantar e descansar. Isso até restar apenas eu naquele espaço de escritório apertado com o Tim, que, por seu tempo aqui, parecia talvez desproporcionalmente afetado. Não estava ele de cabeça baixa desde o momento em que chegou? Não tinha ele agarrado o peito, a mão sobre o coração, em intervalos irregulares, respirando profundamente para se acalmar? Acho que nunca vi o Tim menos parecido consigo mesmo. Ele estava totalmente sem seu sorriso o qual ele usava, fosse real ou falso, e embora isso fosse esperado, ele não se juntou à conversa mais leve, uma vez que as mentes deixaram de lamentar o que foi perdido para celebrar o que era, uma atmosfera social da qual a mente teimosa do Tim extraia sua substância mais forte. Por três horas, nem mesmo uma mudança foi vista nele.

E agora, sozinho nesta sala, ele também não se levantava de sua cadeira, o pescoço ainda dobrado, a mão ainda levantada ao peito, respirando como se respirar fosse a única coisa a fazer. Eu me perguntei por um momento se ele sabia que eu ainda estava lá, mas não tive que me perguntar por muito tempo.

"Ei," disse ele, a cabeça ainda voltada para a mesa. "Eu queria dizer que sinto muito mesmo."

Um arrepio frio e úmido percorreu meu corpo dos pés à cabeça.

"Não nos vemos há anos. Quanto tempo se passou? Meia década? Nos vimos por videochamadas, claro, mas não temos nos visto. Apenas uma fronteira de estado de distância, e não temos nos visto."

Um poço, de profundidade incalculável, produziu seu primeiro balde de emoções, e sua água viscosa foi derramada sobre mim de modo que ali fiquei sólida e rígida.

"Estive tão ocupado que acho que pensei que sempre haveria tempo para visitar de novo," disse ele. Sua voz estava rouca, seu cabelo estava despenteado. Sua pele pálida me dizia que seu hábito de caminhar certamente tinha sido interrompido, ou então ele estava sofrendo algum tipo de dor física traumática naquele momento. "Achei que sempre haveria amanhãs, e nunca me enganei sobre isso antes, então… eu só achei que poderia visitar. Alguma outra hora."

Um silêncio se seguiu. Dei a volta ao redor da mesa e sentei-me ao lado dele, para que pudesse pelo menos ver os sinais de seus olhos.

"Só pensei em vir aqui, quando tivesse tempo, sabe."

Coloquei uma mão minha sobre a sua, uma forma de conforto tão simples que senti que me abster seria um desrespeito flagrante, e esfreguei aquelas ranhuras ásperas e calosas entre os tendões de seus dedos. Com isso, embora não sem demora, ele ergueu os olhos e olhou para meu rosto. Quando nossos olhos se encontraram, a mão sobre seu coração apertou com mais força, e vi sua mandíbula puxar para trás com a tensão. Ele precisava de uma resposta, então eu dei uma a ele.

"Você não sabe o que tem até acabar," eu disse. Uma banalidade tão óbvia que era mais fácil eu não ter dito isso. às vezes, as verdades simples são poderosas. Mas essa, neste momento, não era. E eu só torcia para que ele não percebesse.

Ele balançou a cabeça e esfregou os olhos secos.

"Você estará aqui?"

Ele piscou duas vezes. "Como?"

"Para ajudar a ver as coisas da Mamãe. Saparar o que é importante do que não é."

Ele engoliu em seco e voltou a olhar para a mesa. "Não," disse ele.

"Tudo bem," eu respondi.

E sem um adeus adequado, Tim se levantou, se virou e saiu. Tim, que não era Tim, mas algum fantasma habitando o corpo de Tim, um lado completamente diferente da moeda. Em alguns aspectos, eu sentia pena dele. Em alguns aspectos, aceitei seu pedido de desculpas. Mas uma grande parte do meu cérebro se dedicou à necessidade desse pedido de desculpas, e o quão breve ele realmente foi. E ainda outras partes debatiam a validade de transformar o dia do funeral de Audrey Fuch em um dia sobre seu valor próprio. E, acima de tudo, eu duvidava — o tempo todo sabendo muito bem que tais dúvidas conflitavam diretamente tão obviamente quanto o efeito no Tim era — da sinceridade de tal pedido de desculpas, pois, na verdade, ele poderia estar tão arrependido agora, o mesmo homem que sabia que Audrey estava em seu leito de morte, com apenas sua filha para companhia consistente, uma mulher para quem cada semana nova era um ganho incerto, um milagre, uma vitória pírrica, pois cada novo dia vinha com uma nova dor, a única libertação prometida sendo o desistir da alma, a perda de tudo que você amava, em um instante desaparecendo de vista, você da deles, deixando o campo de batalha marcado para trás, mas as células de seu cérebro, como tribos indígenas, eliminadas e descartadas, de modo a nunca mais compartilhar suas culturas, suas práticas, suas sabedorias, seus amores, suas paixões, suas percepções? Tudo isso, o mundo disso, na ponta dos seus dedos — você, que poderia ser outra voz calmante, você, que uma vez se apaixonara pela falecida, você, que a amou e a deixou, não pôde voltar, nem mesmo pelos seus momentos finais, nem mesmo por sua sua morte?

E você sente muito?

Antes que eu percebesse, eu tinha pego uma cadeira do encosto e colocado todo o seu peso no chão, o som tão barulhento que me despertei desses pensamentos e voltei a mim. Eu estava sozinha, na sala, com a Mamãe, ou o que restou dela. E agora não era hora de ficar com raiva ou ressentimento. Então, tendo me levantado em algum ponto sem perceber, sentei-me novamente e me recompus.

Exceto que nada disso acontecera. As cadeiras ainda estavam como antes, o canto da sala não molestado por metal virado e ligeiramente entortado. Acontece que a imagem ocorreu em minha cabeça como algo que eu poderia fazer, e agora puxei minha mão de seu alcance ruminante, estendida como estava em direção à cadeira à minha direita, e coloquei-a firmemente no meu colo, coberta por minha outra mão: como se não pudesse confiar em minha mão direita, mas pudesse confiar em minha mão esquerda para dissuadi-la.


* * * * *


Era primavera e eu tinha pedido uma pizza só para mim, numa espécie de mimetismo de festa de trabalho. Eu tinha plena consciência de que havia pessoas para quem eu poderia ligar para me ajudar a desbravar a casa da minha mãe, mas eu não queria. Ia ser uma experiência pessoal e eu queria ter minha experiência pessoal sozinha.

A casa havia permanecido intocada por vários meses, talvez quatro, durante os quais eu ainda trabalhava online e ocupava o quarto de hóspedes, todos os dias acordando e momentaneamente esquecendo que tinha que fazer o café da manhã para mim, já que não havia mais ninguém na casa para fazê-lo. Bem, esta manhã, eu finalmente consegui me fazer entrar no quarto da Mamãe, e descobri que dentro havia um recipiente de comida chinesa aberto tão cheio de mofo que mais parecia uma colina gramada do que qualquer coisa. Ele era tão repulsivo e tão central na sala que, por um momento, não conseguia me concentrar em mais nada, e meu atordoamento emocional foi substituído por um desejo intenso de limpar e organizar.

Dar uma espanada superficial e passar o aspirador na casa foi bom. Muito parecido com meu banho que eu tomei quando cheguei aqui em San Diego, foi um ato que eu sabia, no fundo da minha cabeça, era um sinal de recuperação. Pessoas deprimidas nem sempre se levantam para fazer a limpeza. Eu estava melhorando? Eu não me sentia assim, não. Mas da mesma forma que você pode se sentir mais feliz usando um sorriso falso que gradualmente se torna real, pensei que talvez executar funcionalidade me deixasse com um humor melhor, em vez de um humor melhor me tornando finalmente funcional.

Com esse poder atrás de mim, comecei um trabalho que vinha adiando desde o início do ano novo: vasculhar os pertences da Mamãe. Eu tinha que, eventualmente, deixar a casa de qualquer maneira — embora ela legalmente pertencesse a mim, eu não sentia nenhuma conexão especial com ela — quando voltasse para Nova York, e para realmente deixá-la para trás, eu tinha que vendê-la, e para vendê-la ela tinha que estar vazia. Então eu arrumei uma montanha de caixas de papelão vazias; fita adesiva; marcadores de várias cores para ajudar na organização; tesouras; cortadores de caixas; e, por um capricho, um alto-falante bluetooth robusto. Assim que cheguei em casa, eu comecei a tocar A Farewell to Kings de Rush, uma das minhas favoritas que saiu um ano antes de eu nascer. O violão elegantemente tocado cumprimentou meus ouvidos pelo alto-falante quando o coloquei na mesa da sala de estar, onde estimei que ele alcançaria a maior parte da casa.

A fluidez do dedilhar me acalmava e, com ele, fechei os olhos e me concentrei. Pelo minuto inteiro de sua existência, logo acompanhado por algum instrumento que eu nunca descobri o nome, mas sempre imaginei ser algo parecido com um xilofone, eu só me sentei e ouvi, e me preparei mentalmente para a tarefa em mãos.

Dai, a guitarra elétrica, bateria e baixo começaram e eu abri meus olhos. Tudo bem, eu pensei, hora de começar. Coloquei o alto-falante em um volume ensurdecedor e peguei uma fatia de pizza. Geddy Lee começou a cantar, e logo sua voz provavelmente podia ser ouvida por duas casas em todas as direções, mas eu não me importava pra valer.

Primeiro, a cozinha.

Para alguém que morava sozinha, havia o suficiente para uma família inteira se abster de lavar a louça por três dias inteiros. Potes de tantos tamanhos diferentes, panelas de várias larguras, dois abridores de latas, quebra-nozes, picadores de alho, um liquidificador e um mixer de comida (nunca entendi completamente a diferença)… pelo menos vinte garfos, vinte colheres e vinte facas de manteiga e, por falar em facas, umas boas dez — dentadas ou não, finas e grossas, longas e curtas — estavam presas em um suporte magnético acima do fogão. Havia um milhão de trapos e panos de prato, guardanapos de seda, quatro toalhas de mesa diferentes (uma para cada estação)… havia detergente e limpador de ralos que decidi ser o tipo de coisa que seria melhor guardar para mim e, assim, joguei na caixa "para Nova York".

Depois, fui para a sala de jantar, onde encontrei um estoque escondido de porcelana que fez eu me perguntar se ela pretendia realizar uma festa de Ação de Graças. A sala de estar tinha um piano que fez eu me perguntar se eu gostaria de ter um no meu apartamento em Nova York (era um piano bem pequeno). Decidi que seria muito problemático e, se eu quisesse um piano, eu podia comprar um eu mesma.

Dividi os livros em sua biblioteca entre aqueles que eu queria manter e aqueles com os quais eu não me importava muito, jogando cerca de cinco dos cem ou mais livros na minha caixa "para Nova York". Refletindo, percebi que estava muito interessada em saber o tipo de coisa que ela lia, então fiz uma lista dos livros que ela tinha, para o caso de eu querer comprar algum posteriormente. Então, eles foram para uma caixa rotulada "livros".

Olhei para o jardim, mas decidi que matar ervas daninhas seria uma tarefa para outro dia. Eu dei uma passada rápida pelo banheiro para pegar os produtos de higiene pessoal e jogá-los na minha caixa pessoal, tanto meus quanto os que era higiênico pegar da Mamãe. E então, subi as escadas.

Entrei no quarto da Mamãe, que eu não vira desde que tirei a comida mofada de lá. Já havíamos passado por dois álbuns do Rush e estávamos começando a música Subdivisions, para o qual eu balancei com a cabeça, rindo que eu estava realmente vivendo no subúrbio devastado detalhado na música.

O quarto da minha mãe era vermelho escuro, às vezes desviando para o roxo, com sua própria estante, que eu tratei como a do andar de baixo. Encontrei sua cesta de pelúcias, que organizei, guardando duas para mim e encaixotando o resto. Mantive seus cadernos e diários, que até hoje só vasculhei em busca de poemas que ela nunca compartilhara, optando por pular seus pensamentos e sentimentos pessoais, já que eram privados para ela e deveriam permanecer assim. Em algum momento, cheguei ao guarda-roupa dela e me deparei com a questão de decidir se deveria ou não ficar com algo dele. Suas roupas caberiam em mim, mas estaria isso honrando os mortos ou seria isso uma vergonha? Seria eu capaz de usá-las sem me lembrar? Seria ruim ter roupas que eu usasse especificamente para me lembrar? Decidi manter dois vestidos que achei serem uma assinatura da Mamãe, mas apenas para tê-los, e não para usá-los. Foi enquanto eu os puxava para fora do armário dela que encontrei algo de particular interesse para mim.

Atrás das roupas, havia alguns discos, e eu não poderia me importar menos com o que eles eram, porque um em particular me chamou a atenção. Estendi a mão para o quarto da frente e o puxei para fora. Mother Earth's Plantasia, de Mort Garson.

Imediatamente esqueci o que estava fazendo e desci correndo para a mísera área de armazenamento ao lado do banheiro embaixo da escada, onde eu tinha visto o toca-discos com o qual cresci.

Corri para o meu telefone, desliguei a música do Rush — desculpe, Geddy — e quase tropecei no caminho de volta para o toca-discos, que eu então coloquei na tomada, coloquei o disco e botei para trabalhar. A agulha começou a traçar o vinil e dele saíram aquelas doces notas sintetizadas. Assim que o apito soou, eu me arrepiei.

Mamãe botava isso para tocar quando eu era pequena, especialmente quando estávamos limpando a casa, mas muitas vezes quando ela estava estudando também. A música saiu dois anos antes de eu nascer: um álbum totalmente sintetizado sobre plantas ainda por cima. O timbre, tão abrasivo aos ouvidos do Tim, foi o que aprendi a amar. E na época, sem nenhum significado especial, eu tinha me esquecido completamente disso até agora. Quase 20 anos que vivi desde a última vez que pensei nesse álbum, mas era exatamente isso que tornava seu efeito em mim tão poderoso.

O tempo parou. Eu era meu eu jovem novamente. Mamãe era alta; meus amigos e eu brincávamos de fingir e brigávamos com armas de água; a cidade era infinita; a baía ainda mais; e toda vez que eu voltava para casa, Mamãe se sentava e lia seu livro, acompanhando seus estudos. E a trilha sonora de tudo isso era esse álbum. Meu dia de trabalho parou por aí.


* * * * *


"Seu aniversário está chegando!"

"Aham," disse eu, mexendo uma panela de macarrão fervente.

"Sem falar no Natal. Então, já que não poderei te desejar feliz aniversário ou feliz Natal em pessoa, feliz aniversário! E feliz Natal! Ah, e um feliz Ano Novo de Nova York!"

"Obrigada, e para você também!"

"Então, como está o tempo aí?"

"Só há uma estação de fato."

"Haha, foi o que eu ouvi. Você gosta dela?"

"Gostar?"

"Uh, sim, você gosta?"

Olhei pela janela por um segundo, para o jardim que eu continuava deixando crescer, que certamente deveria estar congelado nesta época do ano, sendo dezembro o que é no hemisfério norte.

"Não sei. Gosto de climas quentes. Cresci com isso e tudo. Estações na verdade existem em Nova York, mas ela só dividem o ano em quando posso e não posso ir à praia. Embora eu ache que não vou à praia tanto assim."

"Aham. Bem, vou te dizer, esta é uma ligação amigável, mas é mais do que apenas uma ligação amigável amigável, é também uma ligação amigável preocupada." Ele fez uma pausa para me permitir falar, mas eu não o fiz. "Eu realmente não queria tocar no assunto, mas você está ausente há um ano."

"Estive fora faz mais de um ano."

"Não, eu sei, quero dizer, faz um ano que você não volta desde…"

"Ah."

"Sinto muito. Eu só — Felix, eu realmente achei que estávamos nos dando bem, e agora eu tenho que me perguntar, você vai voltar algum dia?"

Quase engasguei com minha própria saliva. "Nos dando bem?"

"Desculpe ser tão direto."

Eu contemplei por um segundo. "Duncan, eu nunca quis flertar com você."

O lado dele ficou em silêncio por um momento ou dois. "Certo."

"Desculpe ter falado assim? Nada contra você, você é um cara bacana, sinceramente, mas —"

"Você não curte meu estilo?"

"Não, eu…" Fiquei tão surpresa que três a quatro linhas de pensamento vieram e se foram, "Eu… não." Eu menti pelo mesmo motivo que não corrigi o fato dele ter me chamado de "Felix". Inclinando minha cabeça para trás, forcei meu ombro para manter o telefone no meu ouvido enquanto sacudia a água do macarrão.

"Uau."

"É."

"Esse não foi o clima que eu senti."

"Como?"

Eu derramei o espaguete de volta na panela.

"Acho que eu teria descoberto."

"Se tivéssemos começado a interagir fora do trabalho, sim."

"O que não fizemos."

"Não, que é outra razão pela qual estou surpresa que você tenha achado que estávamos 'nos dando bem'."

"Eu ia perguntar sobre isso, mas dai você foi embora do nada. Precisei perguntar pra muita gente para descobrir o que tinha acontecido — eu não queria te ligar porque eu não queria parecer… ahn…"

"Pegajoso? Obsessivo?"

"En— sim. Isso. Eu gostaria que ainda fossemos amigos! Olha, sério, sexo não era meu objetivo principal. Só achei que você é, sabe, um cara legal, e… sim. Então, você vai voltar?"

"Se vou voltar?"

"Sim."

Misturei o molho de tomate que comprei no supermercado. "Humm, o plano sempre foi voltar."

"Mas é esse o plano agora? Digo, o que você está fazendo em San Diego?"

Peguei uma tigela do armário e comecei a colocar o espaguete nela. "O que estou fazendo aqui?"

"Uhh, sim, o que você está fazendo aí.

Me sentei à mesa com o garfo na mão e comecei a enrolar um bocado no meu utensílio. Respirei fundo e olhei em volta. A casa estava bem vazia agora. Ou, bem, estava cheia de algo diferente de antes — caixas. Caixas de livros, caixas de porcelana, caixas de jardinagem, caixas de ferramentas e todo outro tipo de caixas diversas. As paredes estavam vazias, o chão estava vazio, mas o lugar todo estava coberto de caixas largadas por aí. Algumas ainda estavam lacradas com fita, mas muitas foram arrombadas. O prato do qual eu estava comendo, por exemplo, tive que tirar de uma das caixas da cozinha. O garfo também estava em uma caixa separada que também teve de ser aberta — sem falar na panela onde cozinhei e no garfo para macarrão com que mexi e servi.

"Você está aí, Felix?"

"Eu não sei."

"Hã?"

"Acho que ainda estou descobrindo o que estou fazendo em San Diego."

Duncan começou a falar novamente, mas eu não estava ouvindo. Meus olhos vagavam e se estabeleceram na jarra. A única coisa que eu nunca coloquei em uma caixa. As cinzas da Mamãe estavam do outro lado da mesa, como se ela ocupasse seu próprio lugar — sua própria cadeira, seu próprio prato, sua própria refeição. Como se ela estivesse esperando que eu a servisse — mas talvez fosse uma questão diferente. Um pedido diferente. Ela estava se perguntando por que ainda estava aqui. Por que suas cinzas ainda não tinham sido espalhadas na baía. Comecei a me fazer exatamente a mesma pergunta.


* * * * *


Paguei, saí do táxi e vesti uma jaqueta. Finalmente era um daqueles dias que estava até um pouco frio e pedia uma camada extra. Certamente não era um dia para ir à praia, mas tudo bem. Eu não planejava ir de qualquer maneira, e eu gostava de poder usar algo aconchegante, o que não era um pensamento que eu esperava ter, já que sempre me imaginei como o tipo de mulher do verão. Mas aqui, em frente à Clínica Veterinária Cotton Soft, me peguei curtindo um pouco o frio. Respirei fundo e estava pronta para entrar.

A porta se fechou atrás de mim e olhei para o saguão. Ele era espaçoso; aromático com o cheiro de animais (mais cães, mas era uma mistura forte de tudo); cheio de pessoas, com todas as imagens e sons associados a proprietários que tentavam manter seus animais de estimação bagunceiros sob controle; suavemente colorido; agraciado por uma parede coberta de fotos de companheiros queridos que já partiram; e surpreendentemente limpo. Vendo que uma das recepcionistas estava livre, me aproximei.

"Oi, sou Fae Wilson, filha de Audrey Fuchs, que trabalhava aqui."

"Ahh, oi, eu conhecia sua mãe, ela era uma pessoa amável."

"Sim, sim ela era. Uh, estou aqui para perguntar por Edna."

"Edna?"

"Sim, ela era uma colega de trabalho da minha mãe, então achei que ela fosse estar aqui."

"Ninguém chamado Edna trabalha aqui."

Eu dei uma olhada para ela. "Ninguém? Edna, Edna Wilson. Mulher mais velha."

"Ahh, Edna Wilson, desculpe, eu esqueci. Ela deve ter sido sua avó!"

"Deve ter sido?"

"Sim, ela faleceu há quase dez anos."

Pisquei algumas vezes. "Ela faleceu?"

"Sim, embora não me lembre do quê. Comecei a trabalhar aqui depois disso, sabe. Tudo o que ouvi foram as histórias. Ela era muito querida aqui."

Tentei fazer uma matemática mental rápida para saber quantos anos ela devia ter. Ela teve Tim um pouco atrasada para seu primeiro filho — pelo menos para sua geração — aos trinta. Tim me teve quando tinha vinte e um anos, pelo que me lembre. Eu tinha trinta e seis anos, mais vinte e um, cinquenta e sete, mais trinta, oitenta e sete. Ela deve ter morrido na casa dos setenta.

"Ela estava… envelhecendo, eu acho, não estava?"

"Mas ela tinha uma alma jovem! Bem, foi o que ouvi dizer."

Eu me levantei por um segundo e então recuperei meus sentidos. "Certo, obrigada."

A recepcionista acenava enquanto eu saía do edifício para a rua. Acho que Mamãe nunca mencionou Edna, embora eu não tenha ideia de por que isso não brotaria em conversa. Nem do Tim nem da Audrey? Para uma, sua colega de trabalho, pro outro, sua mãe? Isso não fazia sentido para mim. Eles não queriam me aborrecer? Eu não era particularmente apegada aos meus avós, eu não os conhecia muito, mesmo tendo eu os encontrado algumas vezes. Isso não os aborreceu? Ela foi uma mentora para Mamãe e literalmente uma mãe para o Tim. Fiquei um pouco chocada na rua.

A única relação familiar que eu ainda podia ter em San Diego era Elliot, meu avô. Pesquisando Wilson Taxidermy não deu em nada, então concluí que ele deve ter se aposentado. Eu só fui para a casa dos meus avós algumas vezes quando eu era jovem, e essas memórias não eram suficientes para me guiar de modo a encontrá-la. Minha outra opção mais óbvia era mandar uma mensagem pro Tim.

Tim. Eu estremeci com a imagem da minha caixa de entrada. Pelos títulos de seus e-mails, parecia que Tim presumiu que eu não estava respondendo a ele por causa de um período de luto prolongado. Isso pode ter sido parte disso. Mas não era só isso. Enviar um e-mail seria ou mentir ou explicar. E, me conhecendo, me sentiria obrigada a ler cada e-mail semanal antes de me dirigir a ele. Eu não queria fazer isso. Por muitas razões. Havia outra maneira.

Entrei novamente na clínica, caminhei até a mesma recepcionista e perguntei: "Você ainda tem o endereço dela?"


* * * * *


"Ah, Edna morreu da gripe."

"Mesmo?"

Eu segurava o chá de menta que Elliot me fizera perto da boca para me proteger contra o frio inatural que permeava sua casa.

"Sim. Velhos como nós podem morrer da gripe. Eu sei que deve parecer ridículo, quando você pega ela uma ou duas vezes quando criança e não faz muito além de causar algumas visitas infelizes ao banheiro, mas quando você é velho… bem, as coisas são diferentes."

"Já ouvi dizer de pessoas que morreram da gripe, mas sempre achei que fossem pessoas sem acesso a medicamentos."

"São pessoas de todos os tipos."

"Hã."

"E você nunca ouviu falar?"

"Não, nunca."

Elliot, em sua ampla cadeira almofadada à minha frente, tomou um longo gole de seu chá cinza: "Acho isso muito estranho."

"Você não tem explicação?"

"Não. O Tim foi o primeiro a saber, é claro. Ele visitou e compareceu ao funeral. Tivemos que colocar a conversa em dia. Acho que, se ele te contou ou não, nunca foi perguntado explicitamente, mas falamos de você, como parte de pôr a conversa em dia com o filho é pôr a conversa em dia com os netos, e acho que foi implicado que te contaram. Mas minha memória é confusa. Não é o tipo de conversa da qual você se lembra de cada detalhe, sabe."

"Você… você sabe como isso afetou minha mãe?"

"Ah, sim. Ela estava no funeral também."

"Ah."

"Um monte de gente da Cotton Soft estava. Ela era muito querida na clínica. Uma daquelas trabalhadoras esforçadas e silenciosas — admito que a Edna não conquistava as pessoas com seu charme natural. Ela as conquistava porque ela aceitava todo e qualquer trabalho possível que podia, ela trabalhava no lugar de pessoas sem pedir favores e estava em cada turno agindo cento e dez por cento. Ela também não era abrasiva, não… eu amava ela, não? Mas ela era um tipo de alma quieta. E ela silenciosamente se meteu nos negócios de todo mundo, e todo mundo silenciosamente descobriu que não era uma coisa tão ruim."

Bebi meu chá e esperei que ele continuasse, mas ele não continuou. "Eu gostaria de ter conhecido ela melhor."

"Você a conhece do seu próprio jeito. Uma parte dela foi do Tim pra você. Você tem sangue da Vovó."

Eu respirei fundo. "Acho que sim."

"Não precisa achar." Ele sorriu calorosamente para mim e bebeu.

"Você falou com a minha mãe?"

"Ah, sim. Ela fez um discurso muito apaixonado. Associou seu sucesso em sua carreira veterinária com a orientação fervorosa da Edna. Foi muito comovente. Acho que a Edna pensava em sua mãe como uma filha; exatamente o mesmo tipo de amor e atenção. Audrey parecia família. Ela era muito querida para mim, mas acho que pra Edna ela era mais."

"Aham," eu respondi, e tomei um gole.

"Então porque você está aqui?"

"Hã?" Eu engoli. "Eu não deveria estar interessada em meus avós?"

"Não, não. Isso é perfeitamente normal. É só que você está vindo agora, e não antes. Nós coabitamos San Diego há anos. Por que o interesse repentino?"

Eu baixei os olhos para o chá e o mexi distraidamente com uma colher pequena. "Bem, essa é uma pergunta difícil."

"Sou um homem paciente, sem nada a fazer a não ser esperar. Leve o tempo que for necessário."

Usei meu momento na sala de estar de sua pequena casa de um andar para contemplar minhas próprias motivações. Enquanto bebia meu chá de menta, senti seu fluido quente e meloso descer pela minha garganta, passar pelo meu coração e então desaparecer pelo esterno para aquele lugar que eu nunca pude sentir: o funcionamento mais íntimo do meu ser. Pulmões, estômago, intestinos, músculos. Eu sou uma máquina e só controlo as extremidades. Existem forças em ação que me guiam, e às vezes não lhes dou atenção o suficiente para moderá-las corretamente.

"Acho que…" Eu comecei. "Eu vim aqui como uma em uma série de decisões que não sinto… terem vindo de mim. Elas vieram de mim, desculpe, mas elas são…" Elliot permaneceu em silêncio e atento. "Elas não são… posso começar de novo?"

"Claro."

"Desde que a Mamãe morreu, tenho feito apenas o meu essencial. Tenho acompanhado meu trabalho, tenho feito compras, às vezes eu limpo a casa… Como três refeições por dia, bebo muita água, me alivio quando eu preciso, mas isso é tudo. Eu preencho minhas necessidades básicas: como, bebo, durmo, mantenho o abrigo sobre minha cabeça e ganho dinheiro para garantir os requisitos anteriormente mencionados e… isso me deixa com muito tempo livre. E eu não sei o que fazer com ele."

"Hmm."

"Mas isso não significa que eu não faça nada. Eu faço um monte de coisas. Mas elas são… não planejadas. Eu me sinto à deriva. Como se eu fosse uma escrava de meus impulsos. Um dia eu me encontrarei em uma loja olhando para joias que eu não pretendo comprar; ou outro, estou dirigindo pela estrada em uma direção aleatória por horas e depois voltando. Às vezes, passo o dia todo em casa, mas às vezes não vou pra casa e acabo em um hotel em algum lugar. E eu não… entendo por completo meu próprio comportamento. Estou me autodestruindo? Não, Estou financeiramente estável — posso pagar por todos esses caprichos estranhos, mas não gosto deles. E não consigo encontrar sua fonte, na maioria das vezes. Eles vêm de dentro de mim, é disso que eu estava falando. Mas eles não se parecem comigo."

"E visitar a Cotton Soft foi…?"

"Outro dos meus… impulsos. Hoje, eu simplesmente sabia que era para onde eu estava indo."

"Aham." Houve uma longa pausa enquanto nós dois bebíamos nosso chá. "Posso fazer uma pergunta?"

"Por favor."

"Você tem algum amigo em San Diego?"

Coloquei minha caneca vazia na mesa de centro da minha frente. "Não, não tenho."

"Hmm. Não consigo explicar sua rotina habitual, mas, posso te dizer, acho que sei por que você veio á clínica."

"Hã?"

"Você está procurando uma conexão com sua mãe."

"Ah, bem," olhei para baixo novamente. "Sim. Sim, eu estava."

"Você deve ter se lembrado que a Edna era amiga da sua mãe e quis… cumprir a conexão por associação. Se você não pudesse estar com a Audrey, você poderia estar com a mentora da Audrey. Sem falar que ela é sua avó. Você… fala muito com o Tim?"

Eu sacudo minha cabeça. "Não. Não falo."

"Achei que não. Ele me disse que você tem estado fora de alcance recentemente."

Eu olho ele nos olhos. "Acho que sim."

"Hmm. Você está se sentindo sem pais."

"Estou?"

Elliot balançou a cabeça de forma sábia. "Tim não está preenchendo o papel de que você precisa porque está longe, mas você não pode deixar San Diego para visitá-lo porque não largou sua mãe." Não era isso, mas era perto o suficiente da verdade que eu apenas balancei a cabeça. "Você procurou a Edna, uma figura materna, mas ela também não está disponível agora. A segunda melhor coisa é uma figura paternal. E você localizou uma, eu acho."

Ele me deu um sorriso triste, me dizendo que havia terminado com uma pergunta. Eu pensei nisso. Seria isso tudo verdade? Por que mais eu teria lutado tanto para estar aqui? Eu tinha velhos amigos em San Diego com quem poderia trabalhar para me reconectar, mas eu vim para cá. A única diferença perceptível é a relação familiar, não é? Eu suspirei.

"Eu também acho."

Seu sorriso se tornou genuíno. "Tudo bem. Então estou aqui para fazer o que você precisa. Você se importaria se eu fizesse uma comparação que pode ser considerada rude?"

"Acho que não."

"Certo. Fantasmas permanecem na terra dos vivos devido a negócios inacabados. Eles não têm rumo, mas em suas andanças eles estão infalivelmente presos a um ponto. Audrey morreu naquela casa, mas Audrey não a assombra. Você sim."

Meu rosto se torceu em uma carranca. "Entendo o que você quer dizer."

"Me deixe ser o padre então e exorcizá-la. O que não foi feito?"

Esfreguei o cabo cilíndrico da colher de chá entre o dedo médio e o polegar, girando a pá no ar como uma furadeira, e olhei pela janela. Da casa do Elliot, o oceano estava bem à vista. Não estava tão perto, não, mas o horizonte era de um azul brilhante, assim como o céu simplesmente continuava no mar, e então vinha saudar a costa. Vi um bando de gaivotas lá, antes dele desaparecer atrás de um prédio, provavelmente para a praia.

"Ainda não espalhei as cinzas da Mamãe na baía."

Elliot balançou a cabeça. "Nosso curso parece claro, então."


* * * * *


Mamãe se espalhou pelas ondas sob o píer no dia dois de fevereiro de 2014. Era um dia ameno, como a maioria dos dias em San Diego. Havia gente na praia, saltitando como era seu direito, e brincando na água. Barcos salpicavam o oceano, cães latiam de vez em quando. A vida seguia. E era entre essas formas de vida que a morte podia ser aceita.

As cinzas não tinham nenhuma semelhança com a Mamãe. Eu me pergunto por que eu as havia mantido para começo de conversa. No que eu estava me prendendo? O carbono que minha mãe já teve, uma contagem de todo aquele elemento dentro dela? Seria isso tudo que ela era para mim? Não. E em nenhuma jarra ela poderia, ou deveria, ser contida. Então eu esvaziei aquelas cinzas no mar, como era seu desejo — não porque eu pensei que sua alma pudesse finalmente estar em paz, ela estava em paz muito antes de ela morrer, mas porque através da ação outra poderia ser colocada para descansar, um coração colocado de volta em seu peito, regulado, acalmado pela ação.

O alívio foi tão rápido que me senti sonolenta. Eu me virei e caminhei até o Elliot, que estava a uma pequena distância, para abraçá-lo. Sua pele áspera e enrugada ainda estava quente com vida, sua fragilidade não o tornava menos um ser humano, então para ele eu me pendurei, e silenciosamente compartilhei essa experiência de desapego. Estava claro que nenhuma palavra precisava ser dita. Agradeci com um beijo na cabeça e parti.

No banco do passageiro estava minha caixa "para Nova York", que tinha dois irmãos no banco de trás. O resto dos pertences dela eu começaria a leiloar no eBay, ou então faria uma venda de garagem para quando eu voltasse para casa em algum lugar. E essa, realmente, era a questão.

Voltar para Nova York seria normalidade. Eu, uma vez lá, voltaria a Felix, desempenharia masculinidade, possivelmente recuperaria meu título de controladora (se eles não suspeitassem que eu fosse o tipo que partiria tão demoradamente novamente) e teria estabilidade financeira, se não prosperidade. Mas o primeiro me preocupava mais do que o último me seduzia. Apesar de toda a sua aura depressiva, vivi quase seis anos com a liberdade de ser eu mesma, e a ideia de voltar atrás era repulsiva. Seria o dinheiro tão importante que eu sacrificaria minha identidade para tê-lo?"

Mas eu não podia ficar em San Diego, porque o Vovô tinha razão. Audrey há muito seguiu adiante. Eu precisava fazer o mesmo; nessas praias eu podia sentir o sol quente, mas sempre sob a brisa fresca da minha memória. Para onde, então?

"Você devia visitá-lo algum dia."

Minhas mãos agarraram o volante com mais força. Tim. Eu precisava falar com ele, não?

Coloquei o carro em movimento e voltei minha atenção para Oregon.




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