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Está ficando escuro.
Ele precisa encontrar um lugar para dormir. Comida, também.
O céu acima do jipe é lilás, desbotando para amarelo-palha no oeste. O sol mergulhou abaixo das montanhas. A pradaria já está sombreada. Logo, o céu acima será envolto em índigo.
James Bradshaw pensa sobre a morte.
Isso esteve em sua mente durante a maior parte do dia. Os homens no estacionamento. Eles morreram tão rapidamente que não pareciam pessoas. É difícil lembrar que eles tinham suas próprias vidas, suas próprias mentes. Extintas agora.
James já viu corpos antes - ele pensa no rosto pálido de seu pai - mas isso foi diferente. Ele nunca viu um homem morrer.
Exceto uma vez, talvez.
Não foi a mesma coisa. Num momento o Classe-D estava lá, no outro não. Se os homens de hoje não pareciam humanos, eles eram pelo menos reais. Seus corpos tinham substância. Peso. James sente o gosto de bile no fundo da garganta.
Até mesmo o pensamento do Classe-D é insubstancial. James não consegue se lembrar de seu nome ou de sua aparência. Um prisioneiro em um macacão simples. Indescritível. Lá, e então não.
E agora ele deve recuperar essa mesma anomalia. James se pergunta em quantas pessoas a junta usou a anomalia. Em quantas a CIA usou antes disso?
Já está quase escuro.
James vê os contornos de uma aldeia à frente. Algumas pequenas casas, uma ou duas luzes. Ele diminui a velocidade do jipe. Nenhum sinal de um albergue.
Ele ouve uma voz acima do rosnado baixo do jipe. Uma saudação? Incerto, James desliga o motor. A voz chama novamente, em espanhol.
"Boa noite, amigo. Você está procurando alguma coisa?"
Os olhos de James se adaptam lentamente às sombras. Sob a varanda de um barraco rústico, um homem está sentado.
James abre a porta do motorista, caindo na poeira com as pernas rígidas. Ele caminha com cautela. "Boa noite. Por favor, onde fica a pousada mais próxima?"
O homem sorri, os dentes brancos captando a pouca luz que resta. É difícil dizer sua idade. Um vivaz oitenta ou um sessenta desgastado.
"Sinto muito, senhor. Não há pousada aqui. Somos uma pequena aldeia." Talvez ele tenha visto os ombros de James caindo; ele continua, "Você deve ficar em minha casa esta noite."
"Você é muito gentil, senhor," diz James, "mas não desejo impor nada a você." Ele tenta não olhar além do homem, para a cabana esfarrapada.
O homem se levanta.
"Não é nada," diz ele, ainda sorrindo. "Você não pode continuar dirigindo esta noite. Minha hospitalidade é humilde, mas é sua para compartilhá-la."
James sente vergonha, e gratidão e apreensão. Mas cansaço acima de tudo. Ele capitula.
"Eu não poderia fazer justiça à sua hospitalidade. Obrigado por sua gentileza, mas devo seguir em frente." O protesto é apenas uma formalidade. Ambos os homens sabem disso.
"Eu insisto." O velho estende a mão.
James a aceita. Ela é quente e desgastada, com ossos e tendões. Ainda há força no aperto.
"Estou muito grato," disse James, ouvindo sua própria sinceridade. "Meu nome é David Bradley."
"Miguel Lopez," responde o homem. "Você é americano?"
James hesita. Melhor admitir do que fazer o homem suspeitar.
"Sim, só estou aqui como turista," diz James, mas Miguel não está ouvindo.
"Tenho algo que você vai gostar." Os olhos de Miguel brilham na penumbra. Ele balança a mão para a lateral de sua cabana. "Leve seu jipe pros fundos."
James dirige cuidadosamente ao redor do edifício, os faróis apagados. Há outra cabana menor atrás da primeira. Miguel reaparece carregando uma lamparina de parafina. A luz pisca no quintal vazio enquanto ele chama James para as portas do galpão.
Lá dentro é escuro, mas a luz da lamparina pega em metal. Uma motocicleta.
"Harley-Davidson UL 1947. Fabricada em Milwaukee, EUA. Motor de cabeça chata de 74 polegadas. Melhor qualidade americana. Você dirige?" Miguel está orgulhoso, expectante.
"Sim, costumava. É uma ótima moto - ótimas condições também." Isso é genuíno; James está impressionado. A manutenção não pode ser fácil. "Como você conseguiu ela?"
"Ela pertence a - a um jovem que conhecia." Miguel para de falar. "Não, ao meu filho - meu filho mais novo." Distraidamente, ele lustra o para-lama vermelho-escuro. "Ele era - um estudante na capital. Ele deve ter deixado a moto comigo, por segurança. Eu a mantenho funcionando, para que ela esteja pronta."
O homem mergulha em um pensamento silencioso. James espera. Ele teme sua suspeita sobre a imprecisão de Miguel. Ele não pergunta o nome do filho.
Miguel se recupera. Suas próximas palavras carregam uma energia que soa falsa. "Eu acho que ele amava esta máquina. A América tem a melhor qualidade, tudo do melhor."
"E ainda assim americanos vêm para ver a beleza da Argentina." James indica a si mesmo.
Miguel ri. É uma boa maneira de virar a conversa. Enquanto ele fecha o galpão, ele pergunta por que James está aqui. James diz a ele mentiras meio ensaiadas sobre arquitetura.
Dentro da cabana está uma mulher, talvez com trinta e cinco anos, carrancuda à luz da lamparina. Ela começa a repreender Miguel em um espanhol rápido: quem é esse estranho? o que você estava pensando? você não tem consideração pela minha segurança? quem você acha que vai ter que lidar com tudo isso?
O discurso é de boa índole, sem ferrão. Miguel retorna argumentos falsamente ofendidos sobre o dever de hospitalidade e caridade bíblica. É assim que pai e filha falam de seu amor, James percebe; seu cuidado e sua gratidão. Ela trouxe para o pai uma panela de ensopado grande o suficiente para dois.
Desempenhando seu papel, James se desculpa tão profusamente quanto seu espanhol permite. Ele se oferece para ir embora, para compensá-los. Sendo dispensado, ele fica quieto, permitindo que a atuação seja concluída. A filha de Miguel vê que ele não é uma ameaça; ele fará companhia ao velho esta noite. Com um último suspiro afetado, ela caminha de volta para a casa maior adjacente.
Miguel sorri. Eles se sentam à mesa. O guisado é rico em borrego, abóbora e feijão branco. Eles conversam sobre história e religião. Miguel conta a James sobre outros belos edifícios que ele deveria visitar.
Depois do jantar, James verifica o jipe. Ele volta com uma garrafa de fernet do porta-malas e uma oração silenciosa de gratidão a Belén. O sorriso de Miguel se alarga. As lâmpadas piscam e escurecem.
"Então, meu amigo David," Miguel pronuncia em espanhol, com acento na segunda sílaba, "para onde você vai viajar amanhã?"
James toma um gole do digestivo. Quanto ele confia neste homem?
"Estou tentando chegar à cidade nova. A cidade sem nome?"
Chupando o lábio, Miguel balança a cabeça.
"Você vai lá para ver o que eles estão construindo no campo vazio?"
"Sim."
Miguel balança a cabeça lentamente novamente. "Ela é uma grande obra, uma das maiores da Argentina. Milhares de homens trabalhando."
Ele está falando devagar também. James espera.
"Trabalhei em Buenos Aires quando jovem. Me juntei aos sindicatos. Está difícil para eles agora." O velho o observa de perto.
James dá um aceno simpático com a cabeça.
"Na cidade," continua Miguel, "no canteiro, tem um homem. Varela. Um sindicalista."
"Agustin Varela?" James não consegue acreditar. "O que você sabe sobre ele?"
"Eu não o conheci, mas todo mundo fala dele. Varela foi professor, anos atrás. Agora, onde quer que ele trabalhe, os sindicatos o escutam. Eles o seguem - as pessoas percorrem milhas para ouvi-lo falar. Dizem que suas palavras são como um fogo no coração.
"Ele é muito bonito, eles dizem. Não tão jovem, talvez, mas ainda bonito e forte. Ele trabalha tão duro quanto qualquer homem em seu canteiro."
James, sem pensar, funga. O olhar de Miguel é afiado.
"Me desculpe," James deixa escapar, a vergonha borbulhando. "Eu não quis - por favor, continue."
O velho espera um pouco e depois continua.
"Uma vez, ouvi dizer, um jovem estava trabalhando na construção de um prédio de apartamentos, no nono andar, colocando rebites. Seu andaime desabou e a pistola de rebite disparou, prendendo a mão do garoto a uma viga de aço. Ele não conseguia se libertar e não havia como resgatá-lo. Todos os trabalhadores estavam reunidos abaixo, apenas vendo ele pendurado na lateral do prédio. Se a outra mão escorregasse, seu peso o soltaria e ele iria cair. Dizem Varela, ele ouve os gritos e vê o garoto, e só começa a escalar. Subindo a estrutura do prédio, sem andaime nem escada. Ele chega no garoto, o agarra com uma das mãos e puxa o rebite com a outra. Varela salvou a vida dele. Um milagre."
O cientista em James se recusa a ceder à civilidade. "Você acredita nisso tudo?" diz ele, incrédulo.
"Talvez sim, talvez não," responde Miguel. "Para um homem assim, o que é mais importante: seus feitos ou as histórias que contam sobre ele? O que é mais real?"
Como resposta, James fecha os olhos. Ele precisa de informações sólidas. "O que mais dizem sobre Varela?"
O rosto de Miguel escurece. "O governo não gosta do que ele diz. Eles o sequestram, o torturam. Mas ele nunca volta atrás. Ele continua falando a verdade. E eles não podem matá-lo - ele é muito amado."
Mas agora eles não precisam matá-lo, pensa James. Eles podem fazer algo pior.
Miguel está olhando para ele novamente. "Dizem - dizem que Varela pode ter sido um guerrilheiro."
James não fica chocado com isso. Reagir calmamente é mais suspeito?
O velho desvia o olhar. Ele segura a garrafa de fernet contra a lamparina. "Essa é boa," diz ele. "Obrigado."
"De nada." James não sabe o que dizer.
Miguel ainda não está olhando para ele. "Eu posso entender, são tempos difíceis. Um homem pode precisar mentir para um estranho. Mas compartilhar uma refeição e uma boa bebida torna alguém mais do que um estranho." Seus olhos se movem de volta, segurando o olhar de James. "Você poderia me responder uma pergunta?"
James está em silêncio.
"Você não é um arquiteto, não é?"
"Não."
O velho franze os lábios. James sabe que precisa dizer mais alguma coisa. Ele se sente como se já tivesse falhado, sem nem mesmo saber a tarefa. Por que ele está neste país, nesta casa? O que ele pode oferecer a este homem? Sua língua está grossa em sua boca.
"Eu não sou um arquiteto," diz James. "Mas eu sou alguém que - eu questiono coisas. Eu sou cético. Onde os outros têm crenças, eu tenho dúvidas. Alguém que duvida pode ajudar os crentes? Espero que sim. Eu os admiro - pessoas que acreditam fortemente o suficiente para sofrer, para se sacrificar. Pessoas como -"
"Como Varela?" O tom de Miguel é cínico.
"Como seu filho."
Isso cai com um choque. O silêncio está repleto de pensamentos não ditos.
Miguel fica parado, então balança a cabeça. Uma brisa noturna sopra dos pampas através das rachaduras nas paredes de madeira.
"Hoje, na aldeia," diz Miguel, "haviam policiais. Perguntaram se tínhamos visto um homem. Um americano, dirigindo um jipe. Não disseram porque procuravam esse homem."
James sente o peso desse fato cair sobre ele.
"Se eu tivesse um jipe, eu o manteria fora de vista," Miguel continua. "Pelo menos por algumas semanas, até que a polícia encontre outras pessoas para assediar."
"Mas eu tenho que - não há -"
"Infelizmente não tenho espaço para esconder um jipe em meu galpão. Meu galpão está cheio. A menos que… A polícia está caçando um homem em um jipe. Eles não vão procurar um homem dirigindo uma Harley-Davidson UL 1947."
Miguel sorri.