Explicações Perdidas

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Acordei hoje ao som maravilhoso de Wolfgang Amadeus Mozart. Tenho certeza de que esqueci de desligar o aparelho de som ontem…

Escovei os dentes com uma escova nova, arrumei a gravata e me preparei para mais um dia de luxo. Mandei novamente a solicitação de sempre por baixo da porta, segundo as orientações pelas quais me foram dadas, mas por ora nem sinal de serem respondidas positivamente. Apenas dizem que o tal Harry não pode ser localizado. Como é possível não localizarem meu companheiro de cela? Espero que Harry não pense que o abandonei, adoraria sua companhia aqui.

Faz um bom tempo desde que saí daquele lugar imundo no qual estive preso. Disseram-me que eu teria um encontro importante e que eu deveria ser preparado com boas condições físicas e psicológicas. Retiraram-me da pocilga em que estava e fizeram testes de sangue, recebo visitas de um sujeito que se intitula psiquiatra, três vezes por semana calculo eu. Aqui a luz do sol aparece nas janelas, o que torna fácil deduzir o tempo, embora o exterior revele grandes muros e não consiga ter a mínima dica de onde estou.

Fui transportado depois de ser drogado com algo que me deixou sem consciência. Acordei em uma cama limpa. Eu deveria ser mais organizado com essas minhas anotações, mas o problema é que tudo é muito confuso ainda e quando tiver tempo, farei um ou outro sumário de tudo organizadamente. O importante agora… é registrar.
Escutei algumas pancadas na porta por onde julgo ser a entrada do meu pequeno e aconchegante lugar. Meu grande conforto aqui me faz esquecer as vezes que ainda estou prisioneiro de desconhecidos.

Um homem gordo de terno branco, portando óculos no bolso da roupa e careca apareceu assim que a porta abriu. Pareceu-me que ele realizou um gesto pedindo permissão para entrar, mas logo foi impedido por uma mão com luvas e foi empurrado para trás.

No mesmo momento, pude ver dois dos homens-sem-rostos a postos ao lado de onde a minha estranha visita veio, e então após um barulho de arma sendo engatilhada, entrou em meus aposentos alguém que já conheço muito bem…. a guerrilheira que encontrei na Fundação.

Ela entrou no local me ignorando completamente. Fez algumas poses como se estivesse em um filme de ação, procurando alvos. Ergueu o nariz como se estivesse procurando algum cheiro, ficou parada por alguns segundos e virou lentamente para minha direção. Então girou o olhar rapidamente para a porta e fez um sinal estranho com os dedos. O homem gordo entrou, a porta se fechou e a guerrilheira estranha fez alguns movimentos precisos girando o revólver e o colocou dentro de um compartimento no cinto. Então ajoelhou com apenas um dos joelhos na minha direção com certo sorriso sarcástico nos lábios e disse.

- Bom dia príncipe. Sei que os aposentos não refletem sua grandiosa presença pela qual sou acariciado neste exato momento. Apenas seres celestiais desfrutaram do momento que estou a aproveitar;

O estranho homem gordo acenou para a guerrilheira, pedindo para ela se calar. Então sentou em um sofá em silêncio, seguido pela guerrilheira e abriu uma caixa me oferecendo um charuto.

- Eu não fumo – disse a ele enquanto encarava a mulher.

- Nunca é tarde para começar – ele disse – geralmente só é tarde para se parar. Mas o que venho lhe oferecer é muito mais profundo do que charutos, embora estime muito esses e sejam bem caros.

O estranho gordo se perdeu em pensamentos enquanto alisava seu charuto, enquanto a guerrilheira cruzou as pernas, acentuando o sorriso de deboche em seu rosto. Passou uma de suas mãos bem devagar em uma de suas pernas enquanto percorria com a língua os arredores dos lábios.

- Você gosta? – disse ela tocando os seios por cima do uniforme

- Víbora –interrompe o gordo – eu não quero que você faça nada que provoque recusa. Lembre-se que isso faz parte do seu objetivo.

O sorriso de deboche da Víbora dá lugar a um olhar sério. Não conseguia definir se o sarcasmo ainda estava presente, ou se realmente estava séria.

- Meu caro doutor – disse o gordo – gostaria de lhe mostrar algo que é de interesse de nossa organização. Se me permite…

Então o gordo retira de seu paletó um envelope e me entrega com muito cuidado. O envelope estava lacrado e havia um “C” estampado na ponta do meio do lacre.

- Oh, vejo que está intrigado com a letra no envelope. –disse o gordo – Onde estão meus modos? Perdoe-me, ando muito ocupado, então tenho cortado todo tipo de assunto e indo direto ao ponto. Sou conhecido como senhor Calamidade e a jovem que acredito já conhecer, a Víbora. Codinomes são necessários em uma organização, certo? Afinal, como vão referenciar o autor de nossos feitos sem um. Nomes reais só existem para pessoas reais. Por favor, abra o envelope sem demora.

O envelope continha uma foto de SCP-043-PT, uma que ainda não tinha visto em nenhum relatório. Junto a ele, uma notícia de algum jornal que não identifiquei devido ao desgaste com uma matéria destacada por uma caneta vermelha “Jovem imita feitos do jogo [DADOS EXPURGADOS] e mata pais e família na última quinta-feira”. A foto ilustrando a manchete era apenas de uma casa velha com muitos policiais patrulhando o local. Junto ao jornal, anexado com um clip, havia uma foto de duas crianças, uma menina chorando no chão e um menino, ambos pareciam ter uns sete anos. O menino estava sorrindo na foto, dando uma medonha contracena com a menina triste. Uma de suas mãos parecia acariciar a menina e a outra segurava algo pontudo.

A foto pareceu incomodar a Víbora. Seu olhar parecia me dizer que aquilo era como uma bomba relógio e que explodiria se não fosse devolvido ao interior do envelope rapidamente. Sugestão acatada.

- Agora que você viu este material – disse Calamidade – Podemos avançar o tópico. Por favor, chame a Infernalis. Diga que o doutor já está pronto para cumprimentá-la.
O leque de surpresas não acaba. Entrou na sala aquele longo vestido roxo que iniciou todos meus pesadelos. Irônico e estranho dizer isso, já que o início dos pesadelos de todo membro da Fundação é o dia em que se põem o pé dentro…

Elegantemente a mulher me acenou delicadamente como uma rosa desabrochando para o sol na manhã, dando aquela sensação de que estava falando com uma deusa para o qual deveria servir para o resto da vida. Sem dizer nada, ela se sentou ao lado do Calamidade, ficando assim o trio com o gordinho no meio, que agora parecia ter terminado seu “ritual de adoração ao charuto”.

- Como pode ver, a Víbora o trouxe pra cá após seu pequeno… Confronto com ela na Fundação. E a princípio o jogamos na prisão da nossa modesta base com a intenção de te eliminar. Não se sinta ofendido – escondeu um breve sorriso na sua cara elástica – São os protocolos, nada duraria se eles não fossem seguidos a risca. Então… descobrimos que você trabalhou em alguns objetos interessantes na Fundação…

Calamidade pega alguns papéis de dentro do seu terno e começa a folear, dando breves olhares como se estivesse me analisando ou algo do tipo.

- SCP-███-PT. Estava envolvido nele?

- Não. – Respondi brevemente. Acreditei que o quanto mais breve eu fosse, menos chance de dar brechas para que duvidassem de mim. Era só responder não para tudo e dizer que havia entrado a pouco tempo… na hora eu penso em algo…

- SCP-███-PT?

- Não.

- E o 043?

- Ouvi boatos de que era perigoso e pedi transferência alegando falta de experiência.

O tal de Calamidade respirou fundo. Então ele virou para a mulher do vestido roxo e subitamente a Víbora levantou.

- Não precisa fazer nada irmã, meu método é bem mais rápido, deveria ser aplicado desde o princípio – disse a Víbora, levantando do seu lugar enquanto coloca a mão na sua bota.

- Víbora! – gritou Calamidade – Não buscamos a dor e sim a compreensão aqui. Seus serviços serão solicitados quando necessários.

- Eu já aguente o suficiente seu porco gordo – diz a Víbora retirando uma espécie de adaga de suas botas – Que se dane o jogo, eu acharei outro caminho…

Espantei-me com a cara tranquila que o Calamidade demonstrou, como se ele previa o que estava por vir. No mesmo segundo, Infernalis, a mulher de vestido roxo, se postou a sua frente entre os dois com as mãos abertas.

- Chega Víbora, me deixe cuidar disso. – disse Infernalis – Sempre precisamos cooperar lembra? Quando você faz tudo, não conseguimos o que queremos.

Víbora consentiu com a cabeça e sentou-se novamente. Embora Infernalis estivesse longe de mim, senti um perfume muito suave vindo dela. O aroma me lembrava da infância, de crianças correndo felizes pelo campo… me sentia mais líbido e isso era um perigo pra minha situação que me exigia certo controle. Tenho certeza de que algo anômalo vinha daquele cheiro…

- Doutor… – disse ela com a graciosidade de uma pétala de rosa – eu sei que você está mentindo para ocultar informações. E isso é muito feio, pois este senhor aqui te fez uma pergunta utilizando o melhor de sua educação. Poderia usar sinceridade em suas respostas?

“Sequestro não faz parte de uma boa educação.” Foi o que eu disse, mas senti como se não tivesse dito. Uma pontada de dor forte na minha cabeça surgiu e tudo girou bem rápido, como se o tempo tivesse voltado até a pergunta dela. Novamente, protestei contra a situação em que me encontrava e uma dor ainda mais forte tomou minha cabeça de assalto. Tudo girou e rebobinou e mais uma vez estava ouvindo a pergunta dela. Era como se estivesse dentro daqueles jogos, onde quando você dá a resposta errada, você precisa recarregar até o ponto que salvou e responder certo.
Fiz inúmeras tentativas sem sucesso até ceder a dor de cabeça e tentar responder que estava mentindo e que responderia com sinceridade.

- Nunca falha –disse Calamidade – essa é minha menina. Pela sua dor de cabeça doutor, eu diria que você deu uma boa resistida… – finalizou o gordo, rindo e acendendo mais um charuto…

Após tomar um copo de água, respondi com a verdade uma série de perguntas feitas por Infernalis. Basicamente queriam saber especificamente com o que trabalhei na Fundação. Após essa bateria de perguntas, iniciou-se um questionário sobre SCP-043-PT em específico, embora tenha percebido certa tristeza no rosto arredondado de Calamidade quando disse que não tinha envolvimento com SCP-███-PT.

- Parece ser realmente o tipo de homem que você procura Víbora. –disse Calamidade – Mas para mim, não serve.

Calamidade se levantou com um semblante de decepcionado e se dirigiu a porta. Ao colocar a mão na maçaneta, virou o rosto em direção a Infernalis e disse:

- Como combinado, tem carta branca para fazerem o que quiserem. Menos mostrar aquela parte da instalação. Se ele não serve para mim, não tem motivos de saber tão a fundo nossa organização. Todo homem tem seus segredos, certo doutor?

Parecia ser uma daquelas perguntas retóricas, então Calamidade me deixou aos cuidados das duas na sala. Infernalis quebrou o silêncio no local, tomando de mim o envelope entregue anteriormente, parecendo uma criança recebendo um doce, sorriu e começou a falar graciosamente:

- Estou tão feliz doutor! Vai nos ajudar né?

- Eu não sei do que está falando – disse desviando o olhar. Se havia algum risco cognitivo agindo aqui, talvez fosse através do contato visual… pelo menos é o procedimento padrão pelo qual treinamos muito…

Infernalis então abriu o envelope e tirou a foto do menino e da menina e disse:

- Gosto tanto desta foto minha com meu irmão… é a última lembrança que tenho antes do incidente que envolveu nossa família.

- Fala do jornal anexado junto a foto? O que aconteceu? – perguntei com curiosidade.
De repente, mal dava pra ver o rosto alegre de Infernalis, que teve a face coberta por uma sombra inexplicável.

- Sim. Eu sou uma das vítimas de SCP-043-PT. Eu sou um personagem de algum tipo de jogo cooperativo. Eu e meu irmão… – após uma breve pausa ela continuou. – Estava com ele na noite em que nossos pais foram mortos…

Infernalis então mostra para mim, uma velha foto antiga e sem cor de seus pais. O homem na foto parecia pertencer a algum exército. Estava com a boina na cabeça. E a mulher na foto seguia o mesmo padrão de roupa, porém a cruz no ombro de suas roupas sugere que fosse alguma profissional da saúde…

- Na noite em que eles morreram, eu acordei e fui para a cozinha. Então eu abri uma gaveta e peguei o ralador de queijo de madeira da mamãe, uma faca e um triturador de alho e comecei a bater na faca com o triturador em cima do ralador.

Não estava entendendo nada, mas ela prosseguiu…

- Então meu irmão surgiu. Perguntou-me se sua adaga estava pronta… Perguntei a ele do que ele estava falando e uma dor forte na minha cabeça surgiu e ele me fez a mesma pergunta de novo… E de novo e de novo… Eu era uma criança… Eu sou uma criança… Ainda sou… Mas eu não sabia o que fazer pra sair daquela situação… Acredito que muito tempo se passou, mas o dia não chegava e a dor na minha cabeça só aumentava… Até que eu disse sim para ele… Talvez ele quisesse brincar… Mas eu queria dormir… Depois ele jogou em mim algumas moedas e eu dei a ele a faca de cozinha em que estava batendo… Ele se levantou e foi até o quarto do papai e da mamãe… Não ouvi muita coisa, fiquei apática em pé… Quando vi o sangue jorrando da porta do quarto eu quis gritar assustada, mas não consegui… Reprimir de modo involuntário esse sentimento me fez sentir uma lágrima escorrer no rosto. Apenas isso…

Pedi a foto mais uma vez para Infernalis e segurando a foto na mão, a luz destes novos detalhes, percebi algumas coisas que passaram despercebidos. A mão da menina na foto estava cheia de sangue, e o rosto do menino também. Infernalis abriu novamente os lábios e eu não ousei interromper.

- Eu estava curiosa para saber o que havia acontecido, mas algo me impedia de ir até o quarto. Então eu continuei a bater com o triturador de alho em outra faca que retirei da gaveta. Em um esforço supremo, eu consegui de alguma forma, marretar meu próprio dedo, vária e várias vezes até esmigalhar a unha do meu dedinho. A dor me libertou de alguma forma, e corri para o quarto. Meu irmão estava la. Parado com a faca da cozinha na mão com sangue e tecidos humanos ainda quentes e frescos por todo quarto… Eu gritei e a polícia foi acionada pelos vizinhos. Quando chegaram ao local, eu estava no chão chorando, pois havia desistido de colocar “as coisas da minha mãe” de volta dentro dela e gritava desesperadamente ao meu irmão questionando por que ele tinha feito isso… A polícia estava parada tentando assimilar aquela cena, mas o momento foi quebrado pelo meu irmão que começou a falar: “O Rei e a Rainha demônio foram derrotados. Os anos irão se passar e novas ameaças vão surgir no mundo.” Como em um conto de fadas, nos tornamos adultos em questão de minutos. Minha roupa de criança se rasgou inteira e fiquei totalmente nua. Então os pol…

– Acho que o príncipe já esta a par do mais importante – interrompeu a Víbora – Você não precisa continuar isso. Irmã…

- Espere… você é o irmão dela? – perguntei espantado

- Isso mesmo. Eu sou homem seu vacilão. – disse a Víbora arremessando sua faca na parede – pelo menos era… até por algum motivo “o jogo” me transmutar em uma mulher adulta.

- Deduzimos que talvez… – disse Infernalis – façamos parte de alguma espécie de jogo cooperativo de duas protagonistas femininas. Não sabemos quem está a jogá-lo, não sabemos nem ao menos se está sendo jogado. Nossas ações parecem serem feitas por livre arbítrio, mas Calamitas jamais descartou a possibilidade de estarmos sendo manipulados para que as pessoas pensem assim. Comunicação, ações e diversas outras habilidades são compartilhadas entre eu e meu irmão. Quando certos requisitos são atendidos e aproximamos as tatuagens de cobra que possuímos, efeitos mais intensos ainda podem ser ativados…

- Queremos sair desta situação cara… – disse Víbora – E precisamos de alguém que tenha conhecimentos sobre o funcionamento de SCP-043-PT. Somos como instâncias fora de controle e super-humanas. Talvez cobaias de algo maior. Talvez a Fundação esteja envolvida…

- Impossível – interrompi levantando do sofá que estava. – Vocês põem em risco qualquer princípio de ordem e regulamento que regem a existência da Fundação. São uma espécie de quebra de contenção, sem falar na quebra de sigilo. A Fundação jamais faria um teste arriscado assim. Além do mais, a única estância de SPC-043-PT conhecida está contida e desligada. Testes foram realizados, e nenhum jogo estava ativo no momento.

- E o que acontece com as pessoas controladas por SCP-043-PT? – Perguntou Infernalis.
Voltei a sentar. Uni minhas mãos e disse:

- Nada bom… não me lembro da Fundação ter conseguido finalizar algum jogo de SCP-043-PT com a vítima sobrevivendo ou voltando ao normal. Na teoria, o que acontece com o personagem de um jogo no final? O jogo fica preso no “Fim de jogo” após os créditos, ou simplesmente ele recomeça tudo de novo. No melhor cenário, eu diria que vocês entrariam em coma permanente durante a mensagem de fim de jogo, ou poderiam distorcer a realidade voltando o jogo ao começo, regredindo todo o tempo do universo… isso é mal… deveriam reclassif….

- Não me interessa todos estes protocolos de vocês –disse Víbora erguendo a voz – Eu só quero voltar ao normal.

- Então regressem comigo. Vamos sair daqui… Classificarei ambos como estâncias do 043 e pesquisaremos até encontr….

- Nem a pau – exclamou Víbora – Conhecemos o suficiente a Fundação para saber seus interesses. Vão apenas nos trancafiar para garantir a contenção e o sigilo do paranormal. Provavelmente por causa de nossas propriedades, vão me separar de minha irmã. Faria o inferno na terra se isso acontecesse, sei bem onde cutucar se for preciso pra irritar vocês…

- Então é estaca zero para nós todos. – Continuei – Ainda não entendo com precisão o que querem de mim.

- Queremos sua ajuda –disse Infernalis – Somente isso. Quando nossos pais foram assassinados… Éramos crianças. Mas pagamos pelo crime como adultos. Quem acreditaria que apenas nossos corpos eram de adultos? Tem ideia de como foi crescer dentro de uma prisão?

- Deve ter sido difícil – eu disse pensativo.

- Menos para mim – Completou Víbora.

Ele se levantou como alguém esperando sua vez de falar, retirou sua faca de sua bota novamente e apontou para minha garganta.

- O que irei te falar, você levará ao túmulo entendeu principezinho? Se algo vazar, sua morte não vai compensar um terço do estrago que você terá que pagar. Eu sabia que não deveria ouvir e me comprometer mais no assunto, mas a curiosidade ainda vai me matar.

- Eu sou mais adequada para contar a ele, irmão! – interrompeu Infernalis – lembre-se do meu papel aqui.

- Tsc, prossiga – Disse Víbora se afastando com os olhos ainda em mim.

- O que meu irmão quer dizer… É que… Ele entrou em um estado inerte após assassinar nossos pais. Lembra-se dos dois policiais que citei anteriormente? Então… Corri para eles, gritando com medo e o abracei. Um deles olhou para o lado e deteve meu irmão e o algemou. Era adulta e estava nua… Então um deles começou… a abusar de mim. O outro parecia não gostar da situação, mas não fez nada para intervir. Meu irmão saiu do seu transe e viu tudo. Ele gritava, mas estava imobilizado no chão. Então foi a primeira vez que a tatuagem de cobra começou a arder. Trocamos de lugar um com o outro, e logo ele estava nos braços do meu agressor. Ele o chutou na virilha e esfaqueou o pescoço dele com tanta raiva que o cabo da lâmina da faca quebrou. O policial caiu no chão agonizando e o outro que agora me segurava, levantou apontando a arma para o meu irmão. Meu irmão investiu, mas o policial atirou e acertou sua cabeça em cheio. Eu gritei e mesmo algemada segurei seu pé. Ele chutou meu rosto me chamando de porca e estava muito nervoso por seu amigo estar esfaqueado… Ele me levantou e jogou na parede e cai ao lado do corpo do meu irmão. Senti o corpo dele ficando frio… Acabei encostando meu ombro no dele e a tatuagem começou a formigar de novo… Até hoje não entendo bem o que aconteceu, mas o ferimento de bala na cabeça do meu irmão foi transferido de alguma forma ao outro policial, que caiu morto no chão. Chorei e gritei até o sol aparecer na janela, meu irmão não acordava não se mexia. Logo outra viatura parou na frente de casa.

A sala ficou em silêncio durante um tempo. Víbora como sempre parecia inquieto e sua irmã manteve o olhar sereno de sempre. Aproveitei a situação para juntar os fatos. Estavam procurando algo na Fundação… eu estava vendo a invasão em um setor remoto e os segui. Espere… e se não estivessem tentando furtar algo e sim colocando algo como imaginei? Justificaria usarem o setor de transporte de objetos, mas poderiam estar interceptando alguma carga também… preciso de mais peças do quebra-cabeças…

- Sobre Calamitas… –quebrei o silêncio – Como ele se liga nesta história toda?

- O senhor Calamitas pegou nossa guarda através de algum atravessador, e fez alguma coisa pra nos dar a liberdade. – disse Infernalis – Segundo ele, a notícia de que assassinamos nossos pais e dois policiais, despertou o interesse dele, pois estava procurando pessoas para sua organização. Ele disse que tínhamos o que era preciso.

Infernalis começou a alisar a tatuagem de cobra e continuou.

- Nossos… “dons” não se ativaram nenhum momento durante nossa estadia na cadeia. Passamos por muitas situações onde nossa salvação poderia vir destes poderes, mas não tínhamos ideia… nem conhecimento do que podíamos fazer… passamos por tanta coisa…
Mais uma vez Víbora interrompe.

- Já chega, queremos sua ajuda. Vai ajudar ou não príncipe?

- Sim. Mas não farei nada que traia a Fundação, vocês vem comigo e lá pensarei em algo – disse com seriedade.

-“… e lá pensarei em algo… – disse Víbora com voz de chacota – Você está em posição de exigir algo?

- Estou. – respondi – Eu sou no momento sua melhor opção. É pegar ou largar.

Infernalis soltou algumas lágrimas e seu irmão logo a reconfortou.

- Isso não vai dar em nada irmã. Eu lhe disse que esses pesquisadorezinhos da Fundação não são de confiança. Não chore – disse Víbora fazendo carinho na irmã – vamos ficar sempre juntos.
Infernalis deixa a sala apesar dos meus protestos. Nenhuma promessa de cooperação chegava até ela. Quando a porta se fechou, Víbora começou a falar sorrindo.

- Espero que tenha fetiches por humilhação príncipe. Você tem uma dívida para se pagar comigo.

Víbora fez um gesto com a mão, mas nem esperei para ver, pulei atrás do primeiro sofá que vi. Teria eu alguma chance?

Suas risadas ecoavam pela sala, me causavam mais dano do que uma bala no peito causaria, me sentia impotente, apenas pensava em como adiar o inevitável. No combate eu não tenho chance alguma, mas na lábia… é uma criança psicopata que passou por todo tipo de trauma, o que eu deveria falar?
Em milésimos de segundo, uma faca é arremessada e cai bem do meu lado, enterrada na superfície de madeira do chão, então um brilho breve surge e Víbora aparece onde a faca estava. Ela pegou algo do bolso e disse:

- Estouro de Vento. Forma do Punho!

Dizendo isso ela anexou um pedaço comum de papel nos punho e me socou. Eu me senti leve como se estivesse sendo puxado por um furacão e arrebentei as costas em uma janela na sala. Apesar de o vidro não ceder ao impacto, por provavelmente ser blindado, não posso dizer o mesmo de minhas costelas… e mais uma vez uma adaga foi arremessada bem do meu lado.

Em um surto de forças, eu segurei a adaga e depois do brilho breve, fui teleportado para o outro lado da sala, junto da adaga. Estava a entender como tudo funcionava. Víbora estava agora na janela onde estava, tudo aquilo era muito anormal, parecia uma espécie de jogo mesmo, onde meu inimigo teria certo padrão. Talvez eu tivesse mais chances além do diálogo…

Levantei e me posicionei esperando a próxima adaga. Víbora coletou outra adaga da bota, mantendo o sorriso como sempre. Então o inesperado. Ela se cortou fundo em seus pulsos. Então em um lampejo, ela desapareceu no ar e a única coisa que senti depois, foi o pescoço acorrentado por uma estranha corrente. Uma joelhada no estômago veio acompanhando e cai sem ar no chão.

Lembrei-me da infância, quando jogava jogos com meus amigos, o chefão do jogo sempre apelava quando tomava certos danos… baixei a guarda… errei ao pensar que lidava com uma criança, ele era experiente e fui sobrepujado em poucos turnos de eventos.

Víbora então me puxou e me levou para fora. Era um corredor que não refletia em nada a sala luxuosa em que estava. Era como se estivesse morando na boca do demônio; mesmo que tivesse uma boa aparência, ao fundo se ocultava a verdadeira cara do lugar. Passei por vários homens-sem-rostos, um deles espirrou um tipo de spray na face e puxou a pele do rosto. Foi algo bem nojento de se ver e atrás se escondia um rosto cheio de cicatrizes. Alguns começaram a nos seguir, papeando e rindo.

Cheguei até um lugar onde vários homens estavam comendo. Todos uniformizados de forma padrão, eles olharam para Víbora que não chegou ao local com a melhor das educações. Ela chutou a porta e todos se calaram, como se conhecessem bem aquele som.

- Este aqui é o herói que encarou a Víbora? – gritou a Víbora com ar triunfante – Não se enganem plebeia. Qualquer um pode me encarar, agora sair com a pontuação positiva, ai já é difícil.

“Ela fará aquilo de novo” Típica coisa que você ouve da plateia e fica preparado para o pior.

- O pessoal aqui príncipe, acha que você tem alguma chance comigo – disse Víbora – Apenas por que tivemos o empasse la da Fundaçãozinha, eles pensam em ti como herói por que ninguém aqui tem culhões para trocar 1 minuto de porrada comigo. Hoje vamos arrumar as coisas. Lembra-se de quando disse que tua morte não pagaria um terço do que me deveria se abrisse a boca? Vou te mostrar o significado disso.

Então ela socou mais uma vez meu estômago, mas dessa vez não senti dor nenhuma. Notei que sua mão estava aberta e um contorno brilhante verde estava saindo de sua mão.

- Estouro de Vida. Doação Milenar!! – disse Víbora

Nos próximos segundos, tive um vislumbre de lembranças que não pertenciam a mim, como se tivesse ganhado uma vida nova. Então recuei, mas esqueci de que ainda estava acorrentado, então fui puxado novamente e a Víbora me esfaqueou bem no coração. Sentia o peito quente, o sangue escorria até meus pés. Víbora me suspendeu em uma posição de empalado, até ficar rente ao chão. Então agarrou meus testículos com a outra mão e puxou para uma direção oposta cada uma de suas mãos, abrindo meu corpo ao meio e se deliciando com meu interior caindo em seu rosto.

- FATALIDADEEEE – ele gritou.

Fechei os olhos. Acabou pra mim.

Voltei a mim, abri os olhos para ver como é o outro lado da vida… era muito engraçado pois era tudo bem semelhante a antes. Fedia bastante. Havia muitos sacos pretos em minha volta e então me levantei e uma voz estranha me disse:

- Você agora tem uma vida extra apenas, tome mais cuidado!

Depois de andar muito floresta adentro, encontrei uma estrada e desmaiei bem ao lado. Pra mim… chega.

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