A aberração deixa o complexo e pisa na neve branca como a neblina. Seus pés afundam com um estalo no permafrost; ele quebra sob seu peso. Ele não é dissuadido. Ele mexe os pés, a carne que flui livremente faz almofadas largas.
Ele não consegue ver a Máquina. Mas ele sabe onde ela está. Ele teve que aprender.
Ele reflete enquanto caminha.
Ele é um único ponto em um vazio branco como a neve. A aberração não se lembra há quanto tempo esteve aqui. O sol não se põe nem nasce; sua luz é uma difusão pálida e cinzenta. A rotina nunca muda. Há apenas a aberração, a neve e os outros.
A aberração conta seus passos, língua pequena provando o frio com cada palavra. 500 passos, e então pare. Vire à direita.
É um ritmo familiar. Ele e a carcereira o praticaram.
Ele se vira. 1124 passos restantes.
Uma memória.
A aberração caminha para a nevasca. Ele é orgulhoso e alto. Seu impulso é ótimo, sua missão dois dias fresca em sua mente. Ele é filho de Ion; sua fé é mais forte do que qualquer nevasca nessas planícies geladas. O frio mantém a distância.
Ele se move com propósito, uma chama iluminando a vasta escuridão. Os ventos rugem e uivam, mas sua fúria não é nada comparada à chama da aberração.
Ele mapeia a topografia alienígena sem cuidado. A tempestade cresce lentamente, mas ele não presta atenção a ela;
A Máquina deveria estar à vista. Ele vira à esquerda. Ele vai encontrá-la. A nevasca não diminui.
O cinza pálido se transformou em preto vazio. Os olhos arregalados da aberração não ganham apoio no purgatório congelado. Ele não consegue ouvir a si mesmo pensar. O único som é gelo, geada e vento.
Ele sente o frio na ponta dos dedos.
A aberração não sabe onde está. Ele não sabe há quanto tempo esteve lá. Ele só sabe que está frio e que a longa noite chegou para ele. Ele puxa sua carne para perto e espera. Ele não sabe para quê.
Uma figura embrulhada em parka se aproxima de um monte de pedras de neve e gelo nos desertos congelados. Já faz algum tempo desde que a aberração foi vista no complexo. A figura se inclina em direção ao monte de pedras com uma picareta e pá e começa seu trabalho.
313 passos restantes.
A carcereira havia encontrado o corpo congelado da aberração, preservado e cristalino. Ela o trouxe de volta ao complexo, onde eles praticaram os passos, definiram o caminho.
A aberração olha para cima. Diante dele ergue-se uma torre atarracada de vapor e aço. Daqui ele pode sentir o calor da Máquina abaixo. Ele abre a porta e desce as escadas molhadas e escorregadias.
No final das escadas há uma pequena sala. Ela cheira a carne podre e gordura. Ela está molhada em vapor e óleo, que cobrem as engrenagens e os barris em uma película fina e brilhante. A sala foi escavada no gelo para manutenção da Máquina. A parede oposta é a Máquina - um labirinto de engrenagens, canos e carne.
A Máquina é unida de engrenagens e piche e o cadáver de um Deus. No fim da terra ela acende o forno da criação. Mas seus criadores foram precipitados. Eles tinham que ser. A Máquina precisa de manutenção. As engrenagens que a giram se enferrujam. As magias que a unem precisam de renovação. As mensagens que ela grita precisam de decodificação.
A Máquina se aquece. Ela é quente o suficiente para matar um humano normal, mas a aberração não percebe. Ele ouve as engrenagens enferrujadas gritaram a cada rotação. Ele as liberta de suas amarras. A gritaria não para.
A aberração se senta e começa a trabalhar. As engrenagens devem ser lavadas, a carne deve ser descartada. Seu punho se transforma em fios finos e quitinosos que raspam o maquinário. Seu suor e sangue se misturam com o óleo e lubrificam as engrenagens. O ritmo de esfregar, lubrificar, repetir se torna uma ladainha silenciosa e mecânica em um turbilhão de barulho. Sua heresia percorre sua espinha.
Ele se lembra de Sarajevo. As máquinas profanas que escureceram o céu e as blasfêmias que choveram sobre os seguidores do profeta. Ele se lembra dos carcereiros e dos bibliotecários e da coisa que se infiltrava pelas frestas feitas pelos exércitos de homens. Acima de tudo, ele se lembra do rosto de Ion. O olhar nos olhos de Ion. Ele não conseguia decifrá-lo na época.
Falta uma engrenagem. A aberração se levanta e começa a avaliar a carne. Ele é delicado e preciso, saboreando cada momento. A cada momento ele se sente mais próximo da promessa de Ion, uma rede de carne e nervos que atravessa a terra em um abraço caloroso. Se ele fechar os olhos, ele quase consegue sentir seus semelhantes.
A aberração está sozinha na sala. Ele está tocando a carne nova e crua da Máquina, esperando que ela fale com ele.
A aberração olha para a última engrenagem. Nela ele vê seus semelhantes, comprometidos em metal frio. Uma filosofia, uma teologia do mundo. Seu salvador, abatido.
A aberração coloca a engrenagem enferrujada de volta na Máquina. Ele não consegue limpá-la. Ele não consegue se permitir essa heresia.
A aberração sai da sala e volta para o permafrost. Ele vê uma figura encolhida passando ao longe. Um dos outros, fora do complexo.
A aberração se lembra da expressão nos olhos de Ion. Ele a conhece agora.
Era medo.