Liberdade, Para Sempre

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Eles o chamavam de costureiro. Ele não era um costureiro, é claro, mas um cientista, e um muito inteligente. Houve um tempo em que ele esteve na vanguarda de novos desenvolvimentos, um homem de poder, influência e gosto impecável.

Prometeu, assim era ensinado a alunos, tomou o fogo dos deuses. Mas em vez de usarem-no para aquecer, eles o usaram para queimar, escaldar, aniquilar. Isso era verdade. Isso era tudo verdade.

Nas colônias fora da Terra, nas estações vermelhas, nas linhas de transporte do Gamma Quandary, o nome de Prometeu estava quase esquecido, agora. Um nome de uma época mais sombria. Nada mais do que um ladrão mesquinho, mas perigoso.

O costureiro pertenceu à Prometheus, muito tempo atrás. Agora não havia mais fogo a ser roubado. Ele estava em um quarto escuro, uma sala vazia, sobre uma pequena lâmpada. Sua mão estava dentro de uma manopla mecânica, toda de bronze e luzes brilhantes. Um monitor fraco piscou, sua imagem sendo manipulada pela mão sombreada.

Prometeu tomou o fogo dos deuses e seu fígado foi comido por uma águia.


Mary suspirou, com vontade de vomitar. Ela não sabia onde estava, como estava, o que estava acontecendo, por que-

"Oi! Er, desculpe. Isso acontece, às vezes. É, er, Mary Woodward, certo?"

Um homem magro e nervoso estava diante dela. Ela achava que ele era magro e nervoso. Era difícil dizer. Ela tentou mover os braços, mas eles não responderam.

A sala era cinza. Uma luz pálida estava saindo de… Cristo, o que aconteceu? Ela sentia como se tivesse acordado de um longo sonho. Ela estava em uma sala de exposições, e os homens estavam-

Cristo amado.

"Você, hum. Você pode perceber que as coisas não funcionam como costumavam. Mas podemos consertar isso. A gente acha. Agora temos todo o tempo do mundo, sabe."

Os outros estavam saindo por meses. Krešimira. Bojan. Ela foi cercada por rosto desconhecido, e eles a levaram para o chão, e-

E então…

"Lamento te dizer que, bem, já faz um tempo. Um bom tempo. As coisas, hum, mudaram recentemente, sabe. Cerca de cem anos atrás. E finalmente somos capazes de corrigir alguns dos erros do passado, e, bem-"


O costureiro estava ficando careca. Ele tem ficado careca há séculos. Ele não conseguia se lembrar de uma época em que não estivesse ficando careca. Ele moveu a mão, devagar, levemente.

Imagens se moviam, uma fração de cada vez. Tudo tinha que estar certo. O computador fazia muito disso, mas os problemas da automação nunca foram corrigidos. Sempre havia a necessidade de um toque humano, para corrigir os erros.

Elétrons, movimentos elétricos, conhecimento intrincado de peças e posicionamento. Ele era ideal para o trabalho. Ele sabia como esfarrapar e fritar, e queimar.

Ele se lembrava de coberturas. Ele se lembrava de olhar para fora e entender a natureza do poder. Crepúsculos fracos, enquanto as cores elétricas dançavam atrás dele. Mulheres jovens se tornando mulheres mais velhas se tornando mulheres mais jovens.

Houve uma vez uma pessoa chamada Greene. Ele se perguntava o que havia acontecido com ele. Algo no sorriso de Greene sempre o desconcertou. Ele não conseguia lembrar o quê. Nenhum deles conseguia lembrar o quê.

Havia um crepúsculo fraco aqui também. O pouco que restava da luz do sol entrava pelas janelas, enquanto ele costurava, remendava e consertava a coisa diante dele.


Dois postes. Ele conseguia. Ela já esteve em forma e fresca, apenas cinco minutos atrás.

Um pé adiante. Dois pés. Ignorando o balbucio do Augustus, ele só estava piorando as coisas. Terceiro pé. Quarto-

Mary caiu, de cara, sobre as esteiras. Ela sentiu as mãos de Augustus pegá-la, carregá-la, colocá-la na cadeira de rodas. "Deixa pra lá, Mary", disse ele, com um pequeno sorriso. "Podemos tentar de novo, quando você estiver pronta."

"Não sei se algum dia estarei," disse ela. Mas ela não disse isso. Uma série de sons saiu de sua boca, ecoando nas pequenas refrações que eram tudo o que ela podia ouvir. Eles não estavam corretos, mas talvez Augustus pudesse entender o suficiente para-

"Você poderia repetir, por favor?"

Ela via um homem magro e nervoso. Ela ouvia a voz de um homem fraco e nervoso. Mas esteva tudo distorcido, fragmentado, montado imperfeitamente. Suas memórias tinham buracos. Ela não conseguia se lembrar.

Ela disseram a ela que ela fora líquido.

Mas ela não conseguia se lembrar. Havia… algo. Uma sensação que ninguém deveria experimentar. Mas ela não tinha morrido. Seus átomos e elétrons ainda estavam se comunicando uns com os outros, a milhares de quilômetros de distância, e os homens inteligentes deste mundo do amanhã a tinham remontado. Mas ela estava errado, toda errada, tudo não era nada, apenas dançando no escuro.

Mil anos, eles disseram. Mil anos de solidão.


O costureiro deixou o trabalho. Ele trancou o lugar atrás de si; ele sempre trabalhava até tarde. Ele saiu para a rua e caminhou.

Acima dele, bondes aéreos e neo-maglevs percorriam o ar. Você mal podia ver o céu, mas tudo se tornou tão bonito, tão limpo. A função tornou-se tão fácil que o artista e o arquiteto podiam direcionar suas energias para outras coisas, para linhas suaves e cacafonias felizes de estilos discordantes;

Estava tudo além dele, agora. Ele tinha esquecido tanto. Todos tinham.

E então ele se lembraria, eles se lembrariam, nos piores momentos. Vislumbres repentinos de um passado que estava errado. Aqueles que se lembravam da morte, aqueles que se lembravam de estar vivos demais. Ele os via em um parque, suas novas criações, ou as criações de pessoas como ele. Tentando andar, mover, sentir.

Ele se lembrou de outro bonde, de quando ele era jovem. A primeira vez que ele foi jovem. Ele era velho quando o ceifador faleceu, e ele ainda podia se lembrar dos velhos bondes, chacoalhando pelas velha Nova York um milênio atrás. Ele coletava moedas que caiam e sarjetas. Ele era pobre e orgulhoso disso.

As coisas morrem, pensou ele, mesmo quando não morrem.

Ele caminhou para casa, em silêncio, de cabeça baixa. Os amantes no crepúsculo ignoraram esse velho, congelado com uma cabeça meio calva para sempre. Ele chegou ao seu pequeno apartamento, projetado para ser aconchegante, mas feliz, e abriu a porta.

Ele não era aconchegante ou feliz. Ele não chorou lágrimas amargas de arrependimento; ele bebeu um pouco de leite e foi dormir.


Ela sentia como se não fosse mais uma pessoa.

Pessoas são naturais. Elas podem ter falhas, problemas, coisas que precisam corrigidas, mas tudo fluía de impulsos naturais, experiências. Um mundo que era um.

Ela tinha sido sopa em uma jarra por mil anos, espalhada pelo oceano e unida por máquinas estranhas. Ela era uma coisa construídas. Será que almas existem? Será que ela ainda tinha uma se elas existem?

Ela acordava e ainda parecia um sonho. Seus olhos lhe diriam coisas que não existiam. Ela olhava pela janela para o céu alaranjado de outono e queria saber por que ela ainda estava aqui. Augustus não disse. Ela o achava bonito, mas não conseguia entender direito.

Ela se considerava apenas uma coisa, suspensa por um fio, esperando uma morte impossível. Os novos corpos tinham todos os seus problemas resolvidos; assim como os humanos de outrora, só que sem envelhecer e ainda sem morte. Uma infinidade de luz das estrelas brilhando em um mundo perfeito, séculos para consertar os velhos problemas e velhos pecados.

Do outro lado do espaço, havia pessoas dançando, em curvas de luz queimando para sempre. Colônias de prazer, dor, significado, todas as variações que as pessoas pudessem imaginar para afastar o tédio. Os limites da memória ajudavam, as constantes mudanças na personalidade também ajudavam. O infinito não parecia tão infinito quando você podia fazer tudo pela primeira vez, de novo, mesmo sem perceber.

E ela não tinha nada disso. Um resquício passado de uma época mal lembrada.

Ela era uma coisa quebrada.


Há quantas maneiras para se cavar para fora da sujeira?

Favelas. Cirurgias corporativas. Envelhecimento e colapso transformando pessoas em uma polpa de poeira e carne, mal sonhando com a dor. Uma sociedade estagnada era a ordem do dia, quando o sangue novo jamais tinha chance de governar. Foi um inferno, por tanto tempo.

Mas sempre há esperança, e a esperança pode florescer em algo mais. Século após século se passaram, e as coisas começaram, lentamente, gradualmente, a melhorar. Primeiro, foram os exoesqueletos, depois os designs melhores que removiam ou adicionavam alguns detalhes, depois os corpos clones, daí os corpos crescidos artificialmente, então…

O problema do poder é que ele não dura para sempre. E ele tem dificuldade em se reafirmar enquanto ainda está na memória viva de velhas formas de tirania. E assim, as coisas melhoraram. A superlotação foi resolvida pela exploração sem fim dos espaços escuros. A fome foi consertado por novos corpos, cultivados, feitos e alterados pelos caprichos da humanidade. O paraíso veio à Terra, quando a última das Nova Kowloons foi derrubada, quando todos se tornaram iguais perante a lei, quando as pessoas se tornaram livres.

E então tinha a Prometheus.

Criminosos ainda precisavam ser punidos, é claro. Mas como você poderia punir a Prometheus? Eles tinham feito tanto. As novas noções de formas humanas de punição não eram suficientes para eles. Eles tinham que ser levados a entender seus pecados. Como poderíamos fazê-los sentir, realmente sentir, o que fizeram?

Em um canto sombrio, em uma sala de reuniões desconhecida, um plano foi criado.

E assim, todos os dias, os homens e mulheres da Prometheus vinham a armazéns escuros, com monitores organizados em fileiras e mais fileiras. Eles colocavam luvas mecânicas e olhavam para suas telas, ajudando a consertar o que haviam quebrado.

Enquanto impulsos elétricos continuassem a voar entrar as partes de cada cérebro como uma unidade discreta, era possível rastreá-las. As grandes máquinas, drones automatizados, voariam de mar a mar, pedra a pedra, de céu a céu. Eles vasculharam as estrelas para aqueles queimados no sol. Eles vasculharam o fundo do oceano em busca de minúsculos átomos flutuando no oceano, piscando sinais ocasionais. Sacos de plástico foram arrombados, seu conteúdo enrugado liberado.

Ninguém perguntou se eles queriam acordar. Ninguém perguntou a eles se queriam ser trazidos de volta errados

Os homens e mulheres da Prometheus voltavam para suas pequenas e miseráveis habitações. Alguns deles arrependidos, chorando amargas lágrimas de arrependimento.

Alguns deles não.


Mary olhava para fora com os olhos quebrados. O parque estava verde, e ela estava sobre seus dois pés.

Augustus estava sorrindo para ela. Ele era legal. Séculos de idade, mas, novamente, ela também tinha. Ela levantou os braços- um braço- algo se aproximando de seus braços, e sentiu o vento assobiar contra sua pele.

Ela via o mundo em tons de vermelho, cinza e laranja. Não estava certo. Não era como ele "deveria" ser. Mas a construção da Terra permitia suas anomalias aqui e ali. As coisas estavam diferentes, ela estava diferente, e ninguém seria exatamente como ela. Em um instante, um instante singular, de vez em quando, ela podia ser feliz.

Crianças brincavam no parque, os estranhos jogos de sua própria criação. Elas riam e cantavam e passeavam, sem saber de sua fragilidade. Elas partiriam, um dia, para novos pastos no céu, enquanto a Terra cantaria em sua maneira antiga. Augustus estava sorrindo para ela, sua cabeça de um lado e seu cabelo solto despenteado.

Ela se perguntava o que faria, para sempre, no paraíso.

Mas então o céu escureceu e começou a chorar, jorrando estranhas lágrimas de luz incandescente. E então as cores pareceram ceder, e ela se perguntava como isso poderia ser o paraíso, afinal.


O costureiro foi trabalhar. Ele não chorava. Ele tinha um trabalho a fazer. Ele estava sentado em uma sala escura, diante de um monitor brilhante em uma sala cheia de monitores brilhantes.

A tela cintilou à vida. Os vermelhos, verdes e pretos de sempre começaram a se cristalizar nela, logotipos, menus e instruções. Havia uma nota, no canto superior direto da página.

PACIENTE WW113M232 SOFREU FALHA DO RETALHO MATÉRIA-TECIDO ONTEM. PRIMEIRA TAREFA CONSERTAR MATRIZ.

NÃO COMETA O MESMO ERRO NOVAMENTE.

O rosto do homem se moveu. Seu vazio se foi, apenas por um momento. Mas seria difícil dizer qual foi a emoção que passou por ele. Ele parou, por um segundo, e começou a trabalhar.

Tudo morre, pensou ele. Mesmo em um mundo sem morte, tudo morre. Prazer, dor, conforto, cuidado, cores, a mente, paraíso. Tudo morre no escuro, sozinho e gritando.

Você não está realmente livre.

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