Spider estava subindo a trilha da montanha fazia uma boa meia hora, e seus pés estavam começando a doer. Não ajudava o fato de ela estar carregando uma mochila pesada: ela já fez longas marchas de mochila em treino, mas ela esteve em reabilitação por muito tempo e sabia que estava fora de forma. Com sorte, o resto desta viagem ajudaria.
Felizmente, ela já podia ver a pequena cabana de madeira à frente. Uma fina corrente de fumaça emitida do forno de tijolos e barro nas proximidades. O som alto e metálico de martelo batendo em aço podia ser ouvido mesmo a essa distância.
Ela ergueu a mochila um pouco mais alto, tomou um gole de água de sua mochila de hidratação e seguiu em frente.
Com sorte, as bolhas valeriam a pena no final.
"Então você finalmente veio visitar, hein, garota?"
Heinrich Guggenheim parecia exatamente como se esperaria de um anão: baixo, atarracado e de constituição maciça, com antebraços do tamanho de pernis e punhos do tamanho de pequenos barris. Ele era um homem de meia-idade, calvo, com uma barba branca bem aparada e olhos intensos e redondos, e seu rosto e braços estavam marcados com dezenas de pequenas e claras cicatrizes de queimaduras. Ele deu um passo para trás e olhou Spider de cima a baixo uma vez, e riu alto. "Cara boa. Você tá usando bem esse novo corpo."
"Obrigada," disse Spider, sorrindo. "Mudança taumatológica completa de identidade faz isso. Dado que vou passar a vida inteira trabalhando para a Coalizão, o mínimo que eles podem fazer é me deixar sentir confortável em meu próprio corpo."
"E agora que você se estabeleceu, você veio visitar o velho Guggenheim para comprar aquelas facas que ele prometeu a você, hein?" O velho riu em voz alta. "Certo, garota. Vamos ver o que posso fazer."
Heinrich soltou um grunhido baixo e impressionado enquanto Spider desempacotava o pacote pesado embrulhado em seda que ela carregava amarrado à mochila. "Isso é real?"
"Sim," disse Spider. "Caiu sobre a Sibéria alguns anos atrás. Tenho comprado o máximo de partes que posso."
Ele pegou um dos fragmentos de ferro meteórico e o pesou em sua mão contemplativamente. "Alto teor de ferro," disse ele. "Mas você tem certeza que vai ser suficiente para fazer três facas?"
"Não precisa ser. Podemos preencher com ferro normal se precisarmos. Simpatia e Contágio irão transferir suas propriedades."
Guggenheim balançou a cabeça. "Tenho guardado um bom lingote sólido para você. Desde os dias em que você era minha aprendiz. Tem muita história por trás dele. Nós o fundimos em moldes junto com isso, e vai funcionar muito bem. O que nos leva à questão do pagamento."
"Você não vai falar de Brisingamen de novo, vai?"
"Você mesma disse isso. Não eu. Ele tem o peso da tradição por trás dele," Heinrich sorriu.
"Diferente de Freya, tenho algo melhor a dar do que ouro." Ela abriu a mochila e tirou dois cilindros de papelão canelado.
"18 anos?" Perguntou Heinrich.
"25. Duas Yamazaki. E uma Hibiki de 30 anos."
"… é, isso vai servir muito bem," riu Guggenheim "Você podia ter trazido uma de 12 anos, sabe."
"Eu sei. Mas eu quero que isso seja feito rápido, antes que a Coalizão me chame de volta. Estou tecnicamente em 'reabilitação psicológica,' mas os psiquiatras acham que isso vai ajudar meu processo de recuperação. Mesmo assim, eles não vão me deixar ficar por muito tempo."
"É, ouvi falar," admitiu Guggenheim. "Que bom que você voltou para o jogo." Ele levantou as garrafas de líquido âmbar escuro para a luz. "Por isso? Sim, vou terminar rápido. Mas você vai me ajudar."
"Não gostaria que fosse de outra maneira."
"Então você está querendo o conjunto completo?" Perguntou o ferreiro. Ele esboçou o contorno largo de três facas em uma folha de papel pardo na mesa grosseiramente talhada na cozinha da cabana. "Atame, boline e secespita?"
"É," disse Spider, sentando-se em frente a ele.
"Algum detalhe em particular sobre o design?"
"Vou deixar isso para você, como o especialista."
"Mmmm. A boline é fácil. Você quer uma lâmina de bico-de-pente. Ponta de corte côncava. Bem adequada para cortar visco e galhos de árvore. E a atame… lâmina reta, punhal de dois gumes, com um largo maior para que possamos esculpir algumas runas. A secespita é a mais difícil. Algumas pessoas preferem facas de clip point: dá a você uma ponta mais afiada, mas uma de drop point é melhor na minha opinião. Menos chance de abrir as entranhas se tu fizer aruspício."
"Não há muita necessidade disso nos dias de hoje."
"Também não há muita necessidade de facas ritualísticas forjadas à mão. Mas, novamente, você sempre preferiu os métodos tradicionais." Guggenheim esboçou rapidamente os detalhes das três facas em carvão, preenchendo os detalhes. "A atame será a maior. A boline e a secespita terão pelo menos serrilhas parciais. Aço wootz puro. Você vai querer bainhas também, certo? Couro é o melhor material para bainhas."
"Elas têm que usar revestimento tático. Talvez eu deva ver se os armeiros conseguem adaptar a bainha de uma OKC-3S ou algo assim."
"Nylon estraga a pureza. Couro é melhor."
"Não há prova de que armazenar em plástico ou fibra sintética possa afetar a assinatura EVE de um dispositivo ritualístico," apontou Spider.
"Você quer minha ajuda, ou não? Bainhas de couro. Você pode prender suas presilhas de nylon e outras coisas nelas se precisar, mas a parte que toca a lâmina deve ser de couro."
"Se você insiste. Você tem algum?"
"Eu tenho, mas para essas facas… hmm." Guggenheim recostou-se na cadeira e passou a mão pela careca. "Você ainda consegue manusear um arco e flecha?"
Spider se ajoelhou na base de uma árvore, a flecha na corda do arco, e respirou fundo, limpando sua mente de todas as distrações. Ela podia sentir o ar fresco da floresta ao seu redor, acariciando seu rosto e garganta. Era reconfortante. Calmante. Quieto.
Memórias de uma infância passada na natureza. Caminhando pela floresta seguindo o colete laranja de seu pai. Ouvindo-o dar conselhos sobre como perseguir a presa, como ficar perfeitamente imóvel, como respeitar a natureza e todos os seus seres vivos. O orgulho em seus olhos quando ela atirou em seu primeiro veado: uma única bala de rifle no coração. Uma boa pegada.
Lembrar dos olhos de seu pai a lembrou de dias piores. Vozes raivosas e olhos apertados. Vozes erguidas. Uma porta batendo.
Ela não tinha notícias de sua família há anos. Não que eles fossem a reconhecer. Ela mudou muito desde então.
Às vezes ela se perguntava se eles pensavam nela. Ela se perguntava se eles já a haviam declarada morta.
Ela se perguntava se seu pai a havia perdoado.
O som de um galho quebrando a despertou de seus pensamentos. Ela abriu os olhos muitos lentamente, tomando cuidado para não se mover de sua posição agachada nos arbustos.
A caça era um veado velho e poderoso, com galhadas de vinte pontas e pelo grisalho no focinho e na garganta. Ele examinou as árvores com cautela antes de emergir para abaixar a cabeça e mordiscar as bagas e o sal que ela havia colocado na clareira.
Spider lentamente levantou o arco e puxou a flecha até sua orelha.
Ela soltou a corda suavemente, e o míssil de penas brancas saltou da corda com um assobio agudo.
A flecha atingiu o alvo com um baque monótono, penetrando logo atrás do ombro.
O cervo saltou para longe, berrando de dor e terror. Ele se virou pra correr, mas caiu em poucos passos e ficou imóvel no chão coberto de folhas, com os lados tremendo.
Spider tirou uma segunda flecha de sua aljava e ficou de pé. Aproximando-se rapidamente, mas com cuidado, ela avançou cerca de dez pés e disparou uma segunda flecha precisa no coração do cervo.
Besta estremeceu uma vez e depois ficou imóvel.
Agarrando o animal moribundo pelos chifres, ela passou a lâmina de sua faca de caça em sua garganta.
Sangue quente derramou sobre suas mãos e se acumulou sob o animal, manchando as folhas caídas de vermelho brilhante.
Eça tomou um momento para cortar um raminho de uma árvore próxima e colocá-lo na boca do animal. Quebrando um pedaço daquele galho, ela o mergulhou no sangue e o colocou no cabelo como lembrança da caçada do dia.
Então, trabalhando rapidamente, ela usou a faca com a qual havia cortado a garganta do cervo para desenhar um círculo ao redor da carcaça.
Ela se perguntou se deveria fazer a próxima parte em nudez ritual. Ela decidiu contra isso: o tempo estava muito frio para ficar nua na floresta, não importa qual o significado ritualístico.
Ela removeu as flechas e as colocou de lado: uma delas era reutilizável, a outra havia quebrado quando a fera rolou sobre ela. Ela então virou o cervo de costas e, começando pelo esterno, abriu sua barriga com um movimento lento da faca de caça.
Os intestinos se derramaram, quentes e fumegantes, no chão da floresta: ela os ergueu nos braços e os jogou para o sul, saindo da barriga do cervo como uma longa corda. Os pulmões ela puxou através das costelas, abrindo-as como as asas de uma águia. O fígado e o coração ela guardou, deixando-os de lado para mais tarde.
Foi um trabalho longo, sangrento e cansativo, e o sol estava se pondo quando ela finalmente se levantou. Pele, a cabeça, as ancas e grande parte da carne ela levou consigo. O resto ela deixou para os lobos e necrófagos devolverem à terra. Limpando algumas manchas de sangue do rosto, ela se curvou uma vez para o sol poente e se virou para fazer a longa caminhada de volta à cabana de Guggenheim.
Guggenheim derramou um pouco do sangue do cervo sobre os pedaços de ferro, vidro, areia e carvão dentro do caldeirão de barro. Ele jogou o coração no carvão antes de selar o forno de barro e tijolo e acender as chamas.
Eles jantaram naquela noite bifes de veado e batatas, depois que Spider limpou o couro e o colocou em um barril com sal para curtição. Eles ficariam acordados a noite toda bombeando ar para o forno através de grandes foles, mantendo as chamas acesas.
A manhã chegou e, com ela, veio a abertura do forno e a remoção do caldeirão. Guggenheim sorriu ao ver o lingote brilhante emergir do entulho e argila. "Aço bom," disse ele. "Fará boas facas."
"As melhores," concordou Spider.
Ele acrescentou o fígado do veado às brasas de sua forja: ele chiou e fumegou enquanto Guggenheim mergulhava o lingote nas brasas. Spider o ajudou a bater o aço em uma lâmina vazia longa e fina, levantando e batendo o pesado martelo de aço até suas costas doerem e seus braços parecerem gelatina. Então, com uma talhadeira e martelo, ele dividiu o aço brilhante em três pedaços.
Longos dias se passaram. Enquanto Guggenheim se dedicava a aquecer, bater e moldar as lâminas, Spider terminava de limpar e curtir a pele do cervo. Ela escolheu um de seus chifres e duas de suas costelas, e os guardou para alças. A carne ela curtiu, salgou e secou em carne seca.
A fera tinha dado sua vida por ela, e ela faria uso dela até o fim.
A primeira lâmina que Guggenheim terminou foi a da atame: longa e fina, de dois gumes, com quillions delgados, uma ampla margem interna com runas prateadas. Ela esculpiu o cabo de carvalho sólido e bom, pintou-o de preto e esculpiu runas neles e as incrustou com prata. Esta era a lâmina ritualística, aquela que ela usava para desenhar círculos e cortar o éter.
A segunda foi a boline: curvada e curta, com borda côncava e ponta romba. Ela fez este cabo com o chifre do veado, esculpindo e polindo-o em um cabo liso. Esta era a lâmina de trabalho, a que ela poderia usar para cortar ervas e visco, uma ferramenta para trabalho do dia a dia.
Essas duas lâminas nunca tirariam sangue. Mas a terceira era a secespita, a lâmina de matar, a faca de sacrifício. Esta Guggenheim fez com um drop point robusto e uma borda perfeitamente afiada. Ela esculpiu o cabo em osso, tirado das costelas do cervo, os ossos que estavam perto do coração.
Na noite depois que Guggenheim terminou a terceira faca, ela a levou para seus currais de coelho e escolheu um grande e gordo pronto para ser comido. Ela segurou o animal que lutava contra o toco de carvalho e cortou sua garganta,
O sangue se derramou sobre suas mãos mais uma vez, e ela estremeceu quando o levou aos lábios e provou o sangue vital da criatura mortal. Ela desenhou o círculo com a ponta da atame e queimou a sálvia que havia cortado com a boline. Ela inalou a fumaça e fechou os olhos e dormiu naquela noite sob as estrelas, envolta na pele do veado que ela havia matado, com as facas que ela havia feito de seu corpo ao seu redor em três pontos de um triângulo equilátero.
Três facas. Uma destinada a ferir. A segunda destinada à colheita. A terceira para o poder. As ferramentas de seu ofício.
"Feliz com elas?" Perguntou Heinrich na manhã seguinte. Ele deu um polimento final nas lâminas, e agora elas estavam sobre um cobertor feito de pele de veado macia: a longa e fina atame, a boline curta do formato do bico de um falcão, e a larga secespita. Elas brilhavam como água ondulante, lindamente adamascadas. Forjadas do mesmo aço sob a mesma lua, brilhando como estrelas.
"Elas são perfeitas," disse Spider. Ela as embrulhou no couro de veado e as amarrou com um cordão de couro. Ela teria o couro curtido em couro duro e o traria para os armeiros da Coalizão fabricar bainhas para essas novas facas dela.
"Você encontrou o que procurava?" Perguntou Guggenheim.
"… Acho que sim," respondeu Spider.
"Então boa sorte lá embaixo, garota," disse o velho, e ele se inclinou para beijar sua aluna na testa. "E se cuide."
"Eu vou," sussurrou Spider.
Lágrimas brotaram em seus olhos, e ela se sentou com força, soluços silenciosos sacudindo seu corpo.
Guggenheim sentou-se ao lado dela e colocou o braço em volta dos ombros dela. Eles ficaram assim juntos até a dor parar e ela poder ficar de pé sozinha mais uma vez.
"Spider."
"Bullfrog." Ela se sentou em frente ao líder de sua equipe na mesa de conferência, acenando com a cabeça para ele respeitosamente. "Kitten. Skunkboy."
Os quatro se sentaram ao redor da mesa enquanto Bullfrog apagava as luzes e colocava um mapa de uma pequena cidade costeira na tela de projeção.
"Esta é Dunwich, Massachusetts," disse ele. "Esta é uma zona neutra entre a humanidade e os subpelágicos, e um dos poucos lugares onde ocorre mestiçagem entre as duas espécies. A cidade tem sido um terreno neutro para ambas as partes por pelo menos cem anos. E na semana passada, essa neutralidade foi quebrada…"
Ele repassou os detalhes do incidente, as crescentes tensões diplomáticas, o tratado de emergência que evitou por pouco uma guerra total entre a humanidade e os habitantes das profundezas. "Nossa missão é descobrir o que realmente está acontecendo," concluiu ele. "Seremos destacados para a equipe de investigação da divisão de PSIQUE. Nosso trabalho é basicamente estar à disposição se e quando eles precisarem de alguém com experiência em combate. Enquanto isso, ajudaremos na investigação da melhor maneira possível. Alguma dúvida?"
Ninguém respondeu.
Ele respirou fundo. "Tudo bem, então uma última coisa." Ele acendeu as luzes, iluminando totalmente a sala e afastando as sombras. "Fomos feridos," disse ele, sua voz baixa e rouca. "E esta é a nossa primeira vez de volta ao campo. E o que piora a dor é que foi um de nós… fui eu… que infligiu muito da dor. Ainda acho que nossa equipe é sólida. Ainda acho que somos fortes. Mas… se vocês precisarem fazer alguma coisa… dizer algo… para que possamos deixar essa dor para trás e terminar o trabalho… estou aqui. E estou pronto."
Houve silêncio, quebrado apenas pelo som da ventoinha do projetor girando lentamente.
Spider lambeu os lábios e inspirou muito lentamente, depois expirou com a mesma lentidão.
"Bullfrog?" Disse ela.
A boca do homem grande se contraiu uma vez. Ele se virou e a olhou nos olhos pela primeira vez em mais de um mês.
"Te seguirei onde quer que você me leve," disse ela. Sua voz tremia um pouco, e ela limpou a garganta. "Mesmo pro inferno."
Bullfrog acenou com a cabeça nisso. Por um momento, ela pensou que podia ver a umidade se acumular nos olhos dele, mas então ele piscou e endireitou os ombros, e seus olhos voltaram à sua habitual dureza fria e calma de pedra.
"Então vamos nessa," disse ele. "Encontrem-se no hangar às 1800. E façam as malas. Podemos ficar lá por um tempo."
"Sequência"
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