A Grande Fuga do Culto

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13 de Novembro, 2020
Caro Futuro,

Algumas pessoas dizem que os deuses nos colocaram aqui.

Outros dizem que os deuses simplesmente nos permitiram que nós nos colocássemos aqui.

Mas, na verdade, o que importava sobre isso? Entre os gritos de estranhos e sussurros daqueles com quem trabalho, eu não tinha tempo para trazer à tona a nova perspectiva que tinha.

A perspectiva de que os deuses foram feitos para nos destruir.

Mesmo assim, independentemente do meu compromisso com esse ponto de vista, decidi que era melhor guardá-lo para mim mesma. Quando você trabalha entre os artesões da carne, você aprende a parar de pensar individualmente, mas como um.
Mas ninguém estava pronto para quando o mundo começou a comer a si mesmo. Nenhum lado tinha vantagem, era um vale-tudo.

Eu tentei o meu melhor para salvar quem pudesse, mas eu era só uma mulher e só podia fazer o que me era dito. Sem permissão para continuar, me tornei nada mais que uma garota em uma fileira com as criaturas que me criaram.

Sim, eu. Minha individualidade é questionável na melhor das hipóteses, estou começando a achar que perdi seja lá o que eu era anos atrás, mas desde que isso aconteceu, eu vi muito mais de ‘mim’ voltando, quase como se estivesse rastejando para sobreviver.

Esses pensamentos que tenho são todos inúteis quando comparados com a minha tarefa agora. Eu tinha uma carta manuscrita, assinada por mim mesma, para entregar à minha boa protetora, a maravilhosa Sarkicista Lu’xkkia.

Demorou um pouco para chegar à igreja, como esperado. Eu morava na cidade, e só deus sabe como Sarkicista Lu’xkkia odiava a população das paredes de concreto e ninguéns com olhos tão curiosos. Às vezes eu achava que ela era muito crítica, mas quando você se parece como ela…

A igreja era magnífica. Espirais de madeira e osso misturadas em uma, sigilos e runas decoravam qualquer orifício em que pudessem ser rabiscados. Sempre achei que a Sarkicista fosse uma naturalista— só de pensar nisso me faz rir.

Ainda me lembro de como foi entrar pelo arco da porta, uma quentura envolvendo minha forma quase como se milhares de pequenas mãos tivessem agarrado meu corpo e me puxado para dentro, tão delicadas enquanto o faziam.

Quando fui iniciada na igreja, foi uma reação de medo que senti ao entrar no edifício, mas depois? Ele se tornou um sentimento de aceitação e, agora, nostalgia. Achei estranho o funcionamento da igreja, não era como as outras igrejas Sarkicistas, a dela era… mais…natural?

Não sei. Me lembro de como segurava aquela carta com um punho de ferro. Quero dizer, quem não estaria nervoso quando nossa espécie pode estar exterminada em menos de uma semana? Eu, junto com os sarkicistas, confiávamos no frágil papel.

Eu deveria saber relaxar; a sarkicista que eu admirava me protegeria como eu fiz com ela. Só consigo pensar em como éramos solitárias, nós duas sozinhas. Embora fosse esperado, enquanto os outros sarkicistas eram muito mais abertos e começaram famílias, Lu’xkkia era um lobo solitário. Acabei sendo sua única membra.

O pequeno tamanho da igreja pode ter sido o que salvou minha vida. Quando a Sarkicista leu minha carta, rapidamente deixamos a igreja para trás. Era um assunto urgente e, tomando a situação em suas próprias mãos, ela exigiu, e eu não iria recusar. Eu não consigo imaginar se ela teria escolhido outra pessoa se houvesse mais membros da igreja.

É sobre o que aconteceu nas 24 horas após essa troca que estou aqui para falar. As artesãs da carne aconselharam que escrever meus sentimentos seria a melhor maneira de desabafar tudo o que atormentava minha mente.

Então, quem quer que esteja lendo isso, isso não é um conto de fadas do qual aprender, este é o fim do mundo. Tente acompanhar.

Depois de longas horas de viagem, Sarkicista Lu’xkkia e eu encontramos duas novas figuras e, naquele dia, fui apresentada às Sarkicistas Nadya e Nakkiaken. Uma havia escapado recentemente das garras do gigante de um deus zangado, a outra ajudou.

Sob a sombra dessas três figuras de força admirável, dei tudo de mim para conduzi-las ao céu, o lugar seguro. Eu sei, eu sei, não te poupei muitos detalhes sobre o que está acontecendo, não é? Continue paciente, este mundo não tem mais tempo para quem não consegue se adaptar.

Saiba que já estive em seu lugar. Essas três eram tão poderosas, admiráveis, influentes sobre minhas ações, porém elas também escondiam muito de mim. Não se preocupe, me recuso a repetir o comportamento delas aqui.

O segredo que elas escondiam era do deus que vi naquele dia. O portador da esperança, o Grande Sarkicista Ion. Não sei como escrever esta parte, ou como explicar a alguém como me senti. Só posso aconselhá-lo a tentar pensar em um momento em que alguém fora de alcance olhou para você, e então seu deus fez o mesmo.

Eu me lembro de como atravessamos a vazia e evacuada cidade de Ottawa, paredes de concreto começando a se elevar entre os edifícios centenários, e então houve uma mudança de atmosfera. Foi quase como se o próprio tempo tivesse parado e tudo que eu ansiava tivesse sido presenteado a mim.

Ele era magnífico, forte, ele tinha assumido uma forma que não consigo descrever, mas ele era Ion. O verdadeiro Ion, aquele que diziam estar morto. Como ele prometeu que faria em todos aqueles escritos antigos, ele estava aqui para nos salvar. Mesmo assim, fui eu quem o liderou. Só eu, Maria. Maria, que só trabalhou ao lado da sarkicista mais solitária, seria a guia do deus que deu origem ao Sarkicismo como o conhecemos.

Mas, por mais que eu adore divagar, tenho certeza de que você entendeu o que quero dizer.

O Grande Sarkicista estava aqui como nosso protetor. Foi com sua sombra e minha condução que vivemos para contar tal história. Durante nossa viagem, eu sentia sussurros dele atormentarem minha mente, sentindo como se de repente soubesse e sentisse tudo o que estava ao meu redor. Estávamos sendo conduzidos à Área-27.

Minha mente vive me trazendo de volta ao Grande Sarkicista. Seja você quem for, duvido que o conheça. Eu nem o conhecia, por muito, muito tempo. Mas embora possa não fazer sentido ainda, prometo que explicarei em breve, mas esta é minha história e, como tal, ela seguirá meu processo de pensamento, certo?

Eu não ouço nenhuma objeção.

Como eu estava dizendo antes de eu me interromper por sua causa, estávamos indo para a Área-27. Em minha carta ao sarkicista, expliquei como a área da Fundação era um lugar onde poderíamos viver, só tínhamos que entrar. Embora eu possa saber como esse lugar vai sobreviver, isso não me colocou exatamente em uma posição alta o suficiente para obter passagens no banco da frente.

Ainda assim, como se faz, eu coloquei confiança nas Sarkicistas conseguindo nos fazer entrar. Fiquei muito feliz em dizer que estávamos quase lá, tudo tinha sido perfeito até aquele momento.

Eu disse ’tinha sido’ por um bom motivo, porque logo, o Grande Sarkicista nos parou no meio do caminho. Ele disse algo sobre mel, sobre abelhas e morte. Gosto de pensar que eu não fui a única na hora que não tinha a menor ideia do que estava acontecendo.

O Grande Sarkicista assumiu a liderança com minhas palavras, quase me protegendo enquanto as artesãs da carne superiores seguiam atrás como se fossem meras sombras sob esta figura divina.

Não sei dizer ao certo o que se seguiu, apenas o que me lembro de ter visto naquele momento. Me lembro de ter visto a menor das abelhas de mel pousar em meu braço, então eu esmaguei ela. Lentamente, mais pousaram em mim- o cheiro de mel ficou forte, quando vi o Grande Sarkicista começar a respirar pesadamente, logo tentando respirar enquanto apertava a garganta. Picadas de abelha pulsantes e vermelhas cobriam seu corpo em comparação com a minha pele intocada.

Momentos depois, havia mãos sobre meus olhos, que mais tarde descobri serem as da Sarkicista Lu’xkkia. Quando essas mãos se foram, lá estava o corpo de Ion, mole na rua. Minha confusão crescia junto com a quantidade de mel que vi; ele estava saindo de sua boca, olhos e nariz como uma fonte. Ion parecia estar com muita dor, morrendo, meu deus, ele estava morrendo.

Fui empurrada e puxada para a frente, disseram para não olhar para trás, mas não consegui me conter. Ouvi sua voz sussurrando coisas para mim, me senti tão horrível por só deixar nosso salvador lá para morrer. Eu poderia jurar que vi a Lu’xkkia cutucando o corpo dele em busca de algo. Com a cidade outrora silenciosa lentamente se enchendo com o zumbido dos insetos, perder tempo não era mais possível.

Então, nós corremos. Corremos por ruas e corredores escuros, entramos em uma magnífica igreja e descemos vários túneis, tudo para chegar a um portão. Eu vi aquele logo dos textos novamente, junto com aquelas palavras sobre uma fundação. Saindo de trás daquele portão estava um homem de jaleco branco.

Ele parecia estar nos esperando. Eu fui mais uma vez deixada de fora da conversa que se seguiu, as únicas pistas de contexto que posso fornecer são que elas deram algo a ele e que nos foi permitido entrar. Eu conheço esse homem muito bem agora; seu nome é Yossi Leiner, e foi ele quem sugeriu que eu escrevesse meus pensamentos, junto com o incentivo das sarkicistas.

Parecia que ele não me queria lá, mas aquelas com quem eu tinha viajado insistiram, estou muito grata por ele ter aceitado. Caso contrário, eu estaria morta, morta como o resto deste mundo.

Esta manhã me contaram muito mais da história. Já se passaram duas semanas desde que viemos aqui. Dr. Leiner e eu ficamos próximos, e Sarkicista Lu'xkkia me presenteou com um colar, embrulhado no pano que já fez parte das roupas do Grande Sarkicista Ion. O colar estava coberto de entalhes rúnicos que ainda não decifrei. Enquanto escrevo isso, eu estou usando ele com orgulho, assim como ele.

Então, pequeno diário meu e possível leitor do futuro; espero que vocês tenham aprendido algo hoje, e que se lembrem disso quando o mundo acabar de novo.

Assinado, Maria Demers


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