Vietnã, 1969
Quando o tremor parou, Jai lentamente se arrastou para fora de seu buraco.
Após escalar para fora do poço, ele parou por um momento para recuperar a compostura, repetidamente dizendo a si mesmo que o que acabara de testemunhar não era real. Ele agora podia ver completamente a devastação que havia sido causada na aldeia em que eles estavam e imediatamente se arrependeu. Incapaz de racionalizar qualquer outro sentimento sensato, ele levantou a cabeça, abriu a boca e só soltou um grito prolongado o mais alto que pode.
Cartuchos gastos e balas cobriam o chão ao redor dele como confete de um desfile. Os corpos de vietcongues, civis e fuzileiros estavam todos espalhados aleatoriamente pela aldeia, seu sangue e uma parte de corpo ocasional se misturando para formar algum projeto de arte macabro e perturbante com à terra como tela.
Uma espessa nuvem de fumaça subiu de um grande incêndio mais adiante na vila, ocultando parte do céu sem nuvens em uma tela escura. A maioria dos edifícios havia sido simplesmente reduzida a pilhas de escombros fumegantes, e um silêncio sombrio pairava sobre a área. Jai não ouvia nada, exceto o vento soprando lentamente contra seus ouvidos e sua própria respiração.
Ele nunca havia sentido esse tipo de sentimento antes. Ele era algo maior do que o nervosismo de limpar túneis de vietcongues e a ansiedade de vagar pela selva traiçoeira em patrulhas noturnas. Era algum tipo de sensação doentia, suas entranhas e sua mente girando enquanto ele tentativa racionalizar o que tinha acabado de acontecer, apesar do fato de ter quebrado todas as regras da lógica em que ele acreditava.
Ele se sentia doente, confuso e cansado, mas acima de tudo, ele sentia medo.
Meia hora atrás, uma aldeia existia no topo de onde ele estava. O pelotão de Jai estava em uma missão de rotina para investigar atividade vietcongue na área, onde encontraram uma pequena resistência ao chegar ao perímetro da vila e começaram a atacar. Então, o mundo começou a tremer violentamente, e enquanto a terra destruía a aldeia e seu pelotão, Jai reuniu toda a força que lhe restava e se escondeu em um buraco, esperando que os tremores cessassem.
Ele vivia, mas estava sozinho. Sem rádio, sem Sargento Gibson para ajudá-lo a se levantar, ninguém mais aqui além dele… e aquela coisa, que ele sabia que ainda estava por aí.
"Perryman?!"
Ou talvez não.
Jai virou a cabeça para a fonte do grito. Ele sinalizou para o fuzileiro que se aproximava para calar a boca, colocando um dedo sobre a boca—para a que a coisa não descobrisse que eles ainda estavam vivos.
Era o Soldado Cody Parson, o artilheiro de seu esquadrão, e alguém que Jai conhecia desde o campo de treinamento. Ele era um garoto branco louro e esguio com uma bandoleira de munição no pescoço e uma bandana vermelha, e correu até ele com a mesma coragem e vigor do treinamento de recrutas, praticamente jogando as mãos ao redor de Jai enquanto chorava em alívio. "M-merda, cara! Todo mundo está morto. Eu vi… eu vi o líder ser engolido por aquela coisa… meu Deus… eles estão todos mortos… mortos, mortos, mortos…"
Cody respirou fundo e expirou, agarrando os ombros de Jai como se quisesse tranquilizá-lo, embora Jai soubesse que Cody precisava que alguém o tranquilizasse um pouco. Ele concordou, a cabeça girando como se estivesse procurando por algo. "Tá, Perryman… t-temos que dar o fora daqui!"
Jai, não muito falante de qualquer maneira, continuou enfatizando o dedo sobre os lábios. Cody balançou a cabeça, como se entendesse, então continuou, seu tom mais baixo desta vez. "O-o que diabos foi aquilo, cara? Uma nova arma comunista? Alguma coisa dos vietcongues?"
Para ser honesto, ele não conseguia entender o que aquilo era, então Jai sacudiu a cabeça.
Cody engoliu em seco. "Tá, ham… ahm… porra. Eu não sei pra onde— ah!" Ele apontou para o sul da aldeia. "Nós viemos de lá, ahm… p-podemos sair por lá. Vamos."
Eles correram pelos restos da aldeia, pulando cautelosamente sobre e ao redor dos corpos que cobriam a área—outros poderiam vir buscá-los se quisessem. Jai sabia que a salvação estava na floresta. Esta aldeia estava amaldiçoada, mas, pela primeira vez, ele estava feliz por voltar para a selva. Tudo o que eles precisavam era fugir, seguir a rota para voltar à base… e talvez…
grrrrrrrrrr
O coreção de Jai congelou. Estava acontecendo de novo.
grrrRRRRR
Ele ouviu antes que pudesse ver: o barulho do chão, o movimento de milhares de toneladas de terra e rochas, e então um gemido de outro mundo que sacudiu ele e tudo ao seu redor. Uma montanha de terra subitamente se ergueu do centro da aldeia, destruindo qualquer outra coisa que ainda estivesse de pé nela. Embora à terra não tenha que quebrado, bastava olhar para o monte para saber que o que quer que estivesse embaixo dele era enorme… e vindo diretamente para eles.
GRRRRRRR
Jai correu como nunca, ouvindo o crepitar repetitivo de tiros de metralhadora enquanto Cody gritava para ele continuar. Ele continuou correndo o mais rápido que suas pernas podiam levá-lo, nem mesmo se atrevendo a olhar para a ladeia ou para seu amigo. Ele finalmente chegou à selva depois do que pareceu uma eternidade de corrida, e se virou para testemunhar seu amigo pela última vez antes do chão se mover sobre ele.
Era como se a própria terra estivesse envolvendo Cody, um maremoto de rocha, terra e detritos envolvendo o fuzileiro em segundos. Ele viu uma fenda aberta no chão e, de uma só vez, Cody se foi, e o monte derreteu no chão como se estivesse mergulhando em água.
Antes que tudo ficasse quieto novamente, Jai soltou outro grito.
"Assine aqui e você estará livre para ir."
Jai piscou ao sair do transe. Ele ergueu os olhos para o homem em roupas civis pairando ameaçadoramente sobre ele. Ele então se virou para seu parceiro, outro homem branco fisicamente imponente parado na frente da porta, cujos olhos estavam cobertos por óculos escuros opacos.
Os dois homens eram claramente agentes militares—os óculos escuros e os cortes de cabelo denunciavam tudo—mas Jai não sabia ao certo por que eles estavam ali, para começo de conversa. Além disso, por que ele estava aqui? O que acabou de acontecer? Onde ele estava?
"Eu…"
O homem sobre ele continuou, agora soando um pouco frustrado em seu tom. "Soldado Perryman, só assine aqui," seu dedo passou por dezenas de linhas de letras miúdas no formulário na frente de Jai, antes de parar em um X em negrito acima de uma longa linha preta, que ele bateu para dar ênfase. "E você estará livre para ir."
Jai piscou novamente. "…O… o quê?"
O homem na porta suspirou alto. "Cristo amado. Eu realmente espero que eles tenham ensinado a vocês como ler no treinamento. Vamos logo, cara."
O agente que pairava sobre Jai se virou para seu parceiro, com a testa franzida, "Ele viu coisas. Dê um tempo a ele, Zmiejewski."
"Enquanto desperdiçamos o nosso com esse analfabeto n—" Ele parou, suspirando novamente. "Só dê a ele o maldito fractal, Watkins. Ele viu demais para simplesmente deixá-lo ir."
"E você acha que alguém vai acreditar, vindo dele de todas as pessoas?" Watkins desafiou com um meio sorriso. "Metade do povo que sai daqui diz que viu coisas na selva que não eram reais." Ele gesticulou para Jai. "Esta é apenas mais uma dessas histórias."
O olhar de Jai saltava entre os dois agentes militares. Do que diabos eles estavam falando? Fractais? Ver demais? Daí, sua atenção voltou para o papel—os detalhes pequenos se encaixaram perfeitamente depois de uma segunda leitura.
Eles não estavam aqui para ajudá-lo, não. Eles estavam aqui para fazê-lo calar a boca.
"E você…" Watkins fez uma pausa para um efeito dramático, colocando uma caneta diante de Jai, como se quisesse encorajá-lo. "Precisa assinar. Você vai ficar bem, Soldado Perryman."
"..Eu não posso assinar isso." Jai finalmente resmungou.
"Por que não?" Desafiou Zmiejewski, cruzando os braços. "Você foi pra aldeia errada, viu coisas que você não deveria ter visto, e você tem sorte de estar vivo. Agora, você vai assinar este pedaço de papel que vai basicamente te levar para casa um ano mais cedo, desde que você mantenha o bico calado. Todo mundo ganha."
Jai olhou para a insígnia preta no topo do formulário, uma águia imposta sobre um pentagrama invertido. Ele não tinha certeza de que agência era essa, nem o que pensar disso, mas ele não ia só fingir que havia esquecido os eventos que aconteceram nas últimas 24 horas."
Ele ia?
Ele respirou fundo. Sua unidade merecia coisa melhor. Cody merecia coisa melhor. Ele tinha que defender todas aquelas almas perdidas de uma forma ou de outra. "Mas meu pelotão…"
"Seu pelotão foi morto em uma emboscada vietnamita—você como o único sobrevivente— e você foi apanhado por forças especiais e devolvido à base. Uma ocorrência terrível," respondeu Zmiejewski, como se estivesse zombando. "Você vai ganhar pelo menos um Coração Púrpura por isso, talvez uma Estrela de Bronze."
"Eu não posso simplesmente fingir que esqueci que tudo isso aconteceu, cara." Jai murmurou em voz baixa. "Não posso varrer essa merda para debaixo do tapete. Tenho que dizer às pessoas—elas merecem saber o que aconteceu."
"Será que elas merecem?" Desafiou Zmiejewski, levantando uma sobrancelha enquanto marchava da porta até a mesa. "Você acha que, em qualquer mundo perfeito, elas acreditariam em você? Você acha que elas acreditariam nessa sua história, que a porra do próprio chão ganhou vida e comeu sua unidade? Você acha que você chegaria a algum lugar, Soldado Perryman?"
Jai engoliu em seco. Ele não tinha certeza do que fazer, muito menos o que dizer, então ele apenas falou o que estava em sua mente. "Quem são vocês?"
"Quem somos nós?" Zombou Zmiejewski. "Nós somos os caras que têm que lidar com casos de merda como este, de pessoas contando histórias de OVNIs e homenzinhos cinzentos andando por ai—ou, no seu caso, o chão literalmente comendo pessoas."
Ele cruzou os braços. "Tudo isso é besteira, mas alguém tem que lidar com isso. Poderíamos estar em campo coletando informações sobre os vietcongues ou fazendo outras coisas interessantes, mas você está nos incomodando atualmente, então eu e meu parceiro gostaríamos muito se você assinasse esse papel." Sua voz divagou. "A menos, é claro, que você queira ficar aqui por mais 5 anos."
jai piscou novamente para o conteúdo do papel. Ele tinha que contar a todos a verdade sobre o que exatamente estava acontecendo com esta guerra, que havia coisas além de sua compreensão por aí no mundo, e que o governo deles era ignorante demais para reconhecer isso.
Mas talvez ele não tivesse uma chance—afinal, Zmiejewski estava certo. Quem acreditaria nele?
Ele relutantemente pegou a caneta, assinou seu nome e a colocou ao lado do papel. Watkins pegou o formulário assim que foi assinado, enfiou-o em uma pasta de papel pardo e caminhou até a porta, com Zmiejewski logo atrás.
"Até dezembro você estará fora, Soldado Perryman," disse Watkins. "Obrigado por seu serviço com antecedência. Adeus por agora."
Depois dessa despedida enigmática, os dois homens saíram sem cerimônias, deixando um Jai estupefato sozinho na sala.
***
Atlanta, 1970
A última vez que Jai vira esta quase fora em 1965, quando Dr. King começara sua marcha de Selma a Montgomery e quando partira pela primeira vez para a Ilha de Parris. Naquela época, ele era um pouco menos e um pouco mais burro do que era agora.
Cinco longos anos depois, ele estava de volta, e a pequena casa era exatamente a mesma. Ela parecia um pouco mais monótona na cor, um pouco menor em tamanho, mas na maior parte estava completamente inalterada desde quando ele partiu.
Cinco anos se passaram e ele não se esqueceu da segurança que sentia naquela casa. Sua mãe era uma pausa muito necessária de um mundo estressante cheio de ódio, um farol de clareza e paz em que ele sempre podia confiar e um ombro para se apoiar quando estava para baixo. Suas cartas, por mais lentas que fossem, era um lembrete constante de que alguém estava lá para apoiá-lo.
No entanto, muita coisa podia mudar em cinco anos—Jai certamente descobriu isso por conta própria. Ele estava maior, um pouco mais esperto, mas percebeu que se tornou mais quieto e cúmplice—afinal, ser quieto e obediente era melhor do que ser alto e orgulhoso no mundo de hoje. Dr. King e Malcolm X aprenderam isso da maneira mais difícil. Será que o velho ditado de que "quanto mais as coisas mudam, mas elas continuam as mesmas" realmente era verdade, dado que as coisas pareciam ter estagnado em casa?
Jai estava sendo essencialmente jogado para fora da frigideira metafórica e direto para o fogo. A questão mais imediata agora era como ele se adaptaria à vida em casa. Ele passara os últimos cinco anos aprendendo a atirar, a matar e a sobreviver, e tais ações se tornaram tão fáceis para ele quanto respirar. Onde esses tipos de habilidades se tornariam úteis agora?
Então, ele ficou para silenciosamente em seu carro, observando a entrada da frente da pequena casa suburbana. O motor ainda funcionando enquanto ele contemplava seu próximo plano de ação, percorrendo os cenários em sua cabeça.
Espere, o que estou fazendo? Jai pensou consigo mesmo. Estou tentando planejar isso como algum tipo de missão?
Ele sacudiu a cabeça e deu um suspiro alto e prolongado, misturado com frustração e descrença: ele estava no modo militar, não no modo civil. Pelo amor de Deus, Jai, você não vê o rosto dela há anos. Só vá, cara.
Jai desligou o motor do carro, saiu do veículo e caminhou em direção à casa. Ele tocou a campainha e esperou, as mãos cruzadas atrás das costas. Quase imediatamente, ele pôde ouvir latidos altos atrás da porta que gradualmente se tornaram mais altos, seguidos pelos murmúrios frustrados de uma mulher atrás da porta. Ela falava em um sotaque sulista e estava murmurando sobre algo próximo de "Já estou pagando as malditas contas."
A porta se abriu, revelando uma mulher negra de meia-idade, baixinha e de óculos, cujo cabelo estava coberto por um turbante. "Tá, o que cês querem agora, eu já paguei as—" Seus olhos então acenderam. "Ah."
"Oi."
Ótima maneira de se reapresentar, Jai. "Oi"?
A mulher olhou para Jai como se nunca o tivesse visto antes, levando uma fração de segundo para olhá-lo de cima a baixo, antes de seu queixo cair. De repente, ela abraçou o homem, exclamando uma mistura de alegria e surpresa. "Ai meu Deus, Jai! Meu bebê! Tô tão feliz que você voltou pra casa bem!"
"É." Disse Jai monotonamente, abraçando-a de volta. "Voltei, mamãe."
"Ah, bora entrar," ela abriu a porta, permitindo que Jai entrasse na casa. O interior estava tão inalterado quanto o exterior, mas Jai viu que havia mais um rosto familiar: um cachorrinho olhando para ele.
Ele olhou para sua mãe depois de sufocar o cachorro com tapinhas. "Jojo não mudou nem um pouco, mamãe."
"PE, esse vira-lata mal-humorado ficou esperando você voltar para casa cada dia," respondeu a mãe de Jai, voltando para o filho depois de cuidar de algo cozinhando na cozinha. Ela continuou, apesar do fato de que ela provavelmente estava divagando a essa altura. "Você vai passar a noite aqui, bebê? Desculpe, tá uma bagunça e você veio sem aviso prévio—estou recebendo visitas. Os Johnsons, eles, ah, eles estão vindo amanhã também—eles se casaram, sabe! E com você de volta e tudo mais…"
Ela então parou de repente. Jai olhou para a mãe, confuso. Até Jojo estava confuso e quieto. "Mamãe?"
"Você não vai ficar aqui por um dia e só ir e voltar pros fuzileiros, vai?" Perguntou sua mãe, seu tom menos jovial do que antes e mais sério desta vez. "Você tava sempre falando sobre se juntar, servir seu país para tentar conseguir o respeito de seus amigos brancos e tudo, mas com cê voltando, eu envelhecendo…" Sua voz começou a divagar, mas Jai entendeu ao que ela fazia alusão.
Ele deu um suspiro. "Mamãe, estou aqui para ficar… e eu quero ficar. Não sei o que vou fazer, que emprego vou arrumar, como vou arrumá-lo, mas não vou voltar para o exército. Não vou voltar para o Vietnã. Não depois do que vi."
A mãe de Jai franziu a testa. "Ah, pobre bebê, o que aconteceu?"
A mente de Jai disparou enquanto procurava um álibi. Ele pensou em Zmiejewski e Watkins, os dois agentes militares que o forçaram a assinar aquele acordo de confidencialidade após o incidente na aldeia. Ele pensou em Cody Parsons, seu amigo do treinamento que talvez fosse a única razão pela qual Jai ainda estava ali. Ele pensou em seu pelotão e nas dezenas de outros fuzileiros com quem fizera amizade, apenas para serem obliterados por aquela coisa da aldeia.
As palavras de Zmiejewski grudaram nele como o fedor de um cadáver—você acha que eles acreditariam em você?
Jai estava em conflito. Ele sabia que o mundo merecia saber o que aconteceu na aldeia, mas, ao mesmo tempo, talvez não. Talvez a inocência de alguém como sua mãe fosse suficiente para lhe dizer o contrário, e talvez fosse melhor não saber dessas coisas horríveis.
"Bebê?" Repetiu sua mãe. "O que aconteceu?"
"Desculpe, mamãe, é que…" Ele se jogou no sofá e começou a falar. "É guerra. Não sei por que estamos lá, lutando contra os vietnamitas, um povo que nem conhecemos, nem entendemos. Já vi tanta gente morrer, mamãe, perdi tantos outros que voltar nem vale a pena. E aquela aldeia…"
"Que aldeia?"
"Só, uh, um lugar que era pra limparmos," mentiu Jai. "Muita gente morta, mas quero parar de falar sobre isso."
Ele se virou para sua mãe, tentando dar um sorriso. "Você disse que teríamos convidados?"
A noite chegou logo e, embora a maioria de seus amigos e familiares estivessem dormindo há muito tempo, Jai ainda estava acordado. Todas aquelas longas horas de missões noturnas e patrulhas de longo alcance significavam que dormir a essa hora era mais fácil falar do que fazer, infelizmente. Mesmo agora, ainda estava demorando um pouco para se ajustar a um estilo de vida civil normal.
Uma curta caminhada de volta ao seu apartamento deu a Jai uma pausa muito necessária de todo o caos dos últimos dois meses. Ele não tinha outras opções sobre o que fazer para trabalhar ou onde trabalhar na cidade, e tal ambiente era tudo menos compreensivo para alguém recém-saído do exército. Foi talvez por um golpe de sorte que ele conseguiu consolidar o dinheiro que recebeu do exército e comprar um pequeno apartamento, mas, mesmo assim, biscates só podiam ajudá-lo até certo ponto.
Ele precisava de outra coisa para fazer—algo que pudesse sustentá-lo a longo prazo. Seria difícil, mas ele faria qualquer coisa a essa altura, exceto voltar ao exército, é claro. Qualquer coisa menos isso.
Ao se aproximar de seu apartamento, passando por dois carros pretos estacionados na frente do complexo, Jai continuou considerando suas opções. Talvez um emprego em uma fábrica pudesse ajudar. Ou talvez—
Espere um segundo.
Ele parou e virou a cabeça por cima do ombro para garantir que os homens nos carros pretos não estavam olhando para ele, então rapidamente saiu de vista. Jai pulou em um beco entre seu prédio e o próximo, praticamente derretendo nas sombras enquanto observava silenciosamente os dois veículos pretos estranhos da escuridão.
Merda.
Seu primeiro pensamento inicial sobre o que estava acontecendo o trouxe de volta a Zmiejewski e Watkins—será que eles finalmente foram atrás dele em sua observação de que "o veriam novamente"? Será que eles estavam secretamente observando esse tempo todo e decidiram que agora era a hora de atacar? Jai atendeu ao pedido deles e não contou a ninguém, mas será que menções vagas não eram suficientes para eles?
A paranoia começou. Talvez eles estivessem tentando limpar completamente a barra e sumir com ele… ou talvez isso fosse outra coisa. De qualquer forma, Jai imaginou que, se algo ruim estivesse por vir, ele queria cair lutando.
Evidentemente, os homens à paisana nos carros não o notaram—ou não se importaram com ele—mas Jai agora tinha o elemento surpresa e decidiu aceitá-lo.
Ele verificou duas vezes a área ao seu redor com varreduras rápidas de seus olhos para garantir que estava tudo limpo. Jai então se aprofundou no beco até chegar a uma escada de metal—um conjunto de escadas conectadas a cada uma das saídas de emergência—quando estendeu a mão para seu lado e sacou sua pistola.
Jai subiu as escadas até chegar ao terceiro andar, seus passos agora se tornando lentos e metódicos enquanto passava pela porta de emergência e entrava no apartamento. Os corredores estavam completamente vazios e quietos, exceto pelo zumbido de uma luz tremeluzente acima dele.
Ao se aproximar de sua porta, porém, ele parou, abaixando sua .45 em uma direção baixa e pronta enquanto se movia até a porta, vendo algo que despertou seu interesse.
Um bilhete grosseiramente rabiscado estava colado na frente da porta.
Curioso, Jai baixou a pistola com uma das mãos, pegando o bilhete da parede e lendo com a outra.
ENTRE, ESTOU DENTRO DA SUA CASA SENTADO NO SEU SOFÁ
NÃO ATIRE EM MIM, PORRA.
"Mas que diabos?" Jai ficou horrorizado. Que tipo de intruso doméstico era esse? Se eles tivessem vindo pegá-lo, ele imaginou que teria sido pego a essa altura, e se eles tivessem vindo para pegar algum de seus pertences, a porta já estaria quebrada. Que tipo de pessoa simplesmente entra na casa de alguém e se senta no sofá?
Jai ergueu a pistola com uma mão, abrindo lentamente a porta com a outra. Ele entrou em seu apartamento silenciosamente, passando pela pequena cozinha e entrando na sala de estar.
Havia mais alguém aqui—Jai só não tinha certeza de quem ou o que era. Seu coração gelou feito gelo quando ele viu uma silhueta escura onde seu sofá estaria, aparentemente descansando nele como se fosse sua própria casa. Era isso: hora de ser homem.
Ele reuniu toda a coragem que lhe restava e tirou a trava de segurança de sua arma, levantando-a para mirar na figura. "Ei!"
Antes que ele pudesse disparar um tiro, porém, a figura se levantou, correndo em direção a Jai em um movimento quase borrado. Ele sentiu a pistola escapar de suas mãos enquanto a silhueta o desarmava sem esforço, antes de recuar de volta para o sofá. Ele não teve tempo para contemplar o que mais estava acontecendo antes de perceber: ele agora estava desarmado, e o que quer que estivesse sentado em seu sofá estava com sua arma.
Jai congelou ao ouvir uma risada furtiva vindo da sombra. A massa negra se mexeu, movendo-se sobre o sofá e ele viu o brilho de sua arma contra a luz difusa da cidade do lado de fora.
"Não é assim que você deveria tratar convidados, Sr. Perryman." A voz falava com um sotaque muito forte e exótico, quase ininteligível, provavelmente sul-africano, tornando sua presença aqui ainda mais confusa para Jai.
A indiferença do homem à entrada indesejada atraiu a ira de Jai enquanto ele olhava para a figura escura. "Convidados não invadem minha casa sem aviso. Quem diabos é você?"
Ele viu um membro escuro emergir da sombra e se estender até uma luminária ao lado dele. A luz acendeu, dando a Jai uma visão clara do homem atualmente descansando em sue sofá
Era um homem branco com cabelo ruivo e uma barba impressionante, um anel preto sobre um de seus dedos. Ele era grande—maior do que Jai poderia esperar ser, e tinha uma cicatriz em uma bochecha e olhos verdes penetrantes que pareciam brilhar no escuro. Muito parecido com Zmiejewski e Watkins, Jai sabia que o homem era ex-militar ou em serviço, a julgar por suas vestimentas limpas e corte de cabelo elegante, exceto pela barba—a roupa camuflada e o relógio eram suficiente para Jai saber disso.
O homem estava com a arma de Jai no quadril, o cano apontado para longe dele, mas ainda em sua direção geral, e parecia estar saboreando uma garrafa de cerveja na mesa à sua frente. Uma segunda, fechada, estava bem ao lado dela.
"Além disso," continuou Jai, "O que faz você pensar que pode entrar na minha casa sem avisar assim? Você sabia que eu entraria pelas escadas da saída de emergência, passando por aqueles caras na frente."
Ele estava jogando um jogo perigoso—ele tendia a ficar quieto a menos que falassem com ele, já que ele tendia a ficar um pouco agressivo e arrogante, o que nunca terminava bem com os brancos. O fato de seu convidado estar agora armado não ajudava em nada.
O homem no sofá suspirou, encolhendo os ombros. "Sabe, você poderia ter simplesmente pedido aos homens na frente para que saíssem do caminho para que você pudesse entrar. Eles são bastante amigáveis."
"Acho difícil ser amigável com vocês, especialmente com os federais," explicou Jai, não se sentindo nada convencido. "O que te faz diferente deles?"
O homem apontou para a garrafa fechada com o cano da arma. "Eu tenho boas maneiras." Ele então gesticulou para Jai em direção a outro assento adjacente ao sofá com um pequeno aceno da arma. "Vá em frente, sente-se, sente-se. Eu estava guardando uma garrafa pra você."
Jai piscou. "O que…"
"Vamos, se senta, cara!" O homem sorriu.
Relutantemente, Jai sentou-se, observando enquanto o homem colocava a arma no colo enquanto enfiava a mão no bolso para pegar algo. "Deixa que eu cuido disso." Ele tirou a tampa com um abridor que colocou de volta no bolso, deslizando a garrafa para mais perto de seu anfitrião. "Ai está."
Jai tomou pequenos goles da garrafa de cerveja, observando enquanto o homem pegava sua .45 novamente. Em vez de apontá-la para ele, ele simplesmente deixou o cartucho cair em sua mão, onde o colocou sobre a mesa. Ele então fechou a arma terminar com ele, pegou a bala que havia caído no chão e colocou ela e a arma sobre a mesa.
Jai olhava para o homem enquanto ele fazia isso. "Quem é você?"
O homem parou para tomar um gole de sua cerveja. "O nome é Hudson. Hurdson Croix. É um prazer conhecê-lo, meu amigo."
A próxima que Jai tinha que fazer foi imediatamente óbvia. "Como você sabe quem eu sou?"
Hudson encolheu os ombros novamente. "Alguns rumores aqui e ali, alguns contatos em lugares em que você esteve. Lamento muito pelo que aconteceu com sua unidade também, companheiro—um amigo meu foi arrastado por um manipulador dimensional uma vez." De repente, ele colocou as pernas sobre a mesa. "Entre ser comido pela mão natureza e arrastado para algum espaço intermediário, amigo, estou feliz por estar vivo."
O queixo de Jai caiu. Será que finalmente havia alguém que também sabia sobre cosias como a vila no Vietnã? Ele estava atento. "Calma. Então, você sabia sobre a—"
"Eu sie de muitas coisas, Sr. Perryman," explicou Hudson. "Isso vem com minha linha de trabalho, naturalmente. Eu também sei sobre aqueles dois babacas americanos, Zmiejewski e Watkins, como eles tentaram desertar para outra organização que a minha não gosta tanto. Acho que eles não gostaram da minha oferta."
"Que… organização… o quê?" Jai ergueu uma sobrancelha. "Que oferta?"
Hudson sorriu novamente. "Veja, Sr. Perryman, para conhecer a natureza da minha organização, tenho que explicar um pouco. Humanos sempre foram mantidos no escuro literal e metafórico sobre alguns acontecimentos estranhos em nosso mundo. Sempre fomos ignorantes, informados do contrário por nossos líderes, rotulados como loucos, tudo isso, mas alguns de nós sabemos que as coisas nem sempre são o que parecem."
"Como o chão se erguendo e engolindo meu pelotão, no Vietnã," interrompeu Jai. "E essas outras organizações? Aquela de onde Zmiejewski e Watkins eram, aquela para a qual eles desertaram?"
Hudson balançou a cabeça, continuando: "Há muitas dessas organizações governamentais, sabe, algumas dedicadas a estudar essas… anomalias, que estão em todo lugar em nosso mundo. Outras são dedicadas a destruí-las. Às vezes, eles tornaram uma declaração de missão manter essas coisas trancadas em uma caixa enquanto eles as cutucam, vendo-as como ameaças capazes de acabar com o mundo das quais eles poderiam obter algumas informações científicas perspicazes."
"E sua organização?" Perguntou Jai.
"Minha organização… bem, somos uma corporação militar privada, por exemplo, mas somos compostos de pessoas que viram coisas impossíveis, entende? Outros temem o desconhecido, nós o aceitamos. Outros gostam da lógica, nós incorporamos a falta de lógica. Somos um pouco tabu, sabe—alguns nos chamam de terroristas, outros nos chamam de mercenários sujos, mas eu não nos vejo sob essa luz."
Ele continuou. "Mas chega de falar do meu grupo—vamos falar sobre mim e você. Veja, eu reconheço o perigo dessas anomalias, mas também vejo potencial para uma nova fase da evolução humana nelas—pelo menos é assim que vejo. Por exemplo, e se guerras pudessem ser travadas e terminadas com essas anomalias? E se você pudesse alimentar milhões com elas? E se você pudesse curar todas as doenças com elas?"
"Eu.. não vejo por que essas 'anomalias' merecem andar conosco,' murmurou Jai com naturalidade. "Um desses monstros matou meu pelotão inteiro de uma só vez—o que faz você pensar que eu trabalharia com elas, ou o que quer que você esteja me propondo? Além disso, por que eu deveria me juntar ao seu grupo?"
"Ah, ah, ah! É aí que você precisa ouvir," retrucou Hudson. "E se eu te dissesse que havia uma arma em nossa posse que poderia ter salvado seu pelotão naquele dia, hein?" Ele inclinou a cabeça. "Ao invés de trancar essas anomalias em jaulas e encerrar o dia, ou simplesmente destruí-las, nós escolhemos usá-las. Quer cê acredite ou não, estamos jogando um jogo de alcançar as anomalias—eu sou simplesmente um soldado nesta luta, sabe, e eu e meus colegas de trabalho percebemos isso."
Ele fez uma pausa, enfatizando suas palavras com as mãos abertas para Jai. "Uma vez que percebemos que podemos usar algumas dessas anomalias para combater fogo com fogo, essa luta se torna muito mais fácil, heim? Mas, para isso… a Máscara tem que ser levantada, meu amigo."
Hudson observou Jai se mexer desconfortavelmente, sorrindo. Jai olhou para ao chão, sentindo subconscientemente os olhos de africânder perfurando seu crânio enquanto a menção de uma "máscara" se prendia nele. "Zmiejewski e Watkins me disseram que ninguém acreditaria em mim se eu contasse. Seria essa a máscara de que você está falando?"
"Mais um menos. Ninguém vai acreditar em você, sim," Hudson concordou, bebendo o resto de sua cerveja enquanto fazia uma pausa. "…mas isso não quer dizer que seja impossível. Considere sua doce mãe, por exemplo—ela definitivamente não acreditaria em nossas histórias… mas se mostrássemos prova empírica para ela, quem diria que ela não ficaria convencida? É isso que a máscara é—pessoas sendo desinformadas ao invés de vez de mantidas por fora."
Ele se inclinou para frente. "Veja, a missão da minha organização é tripla: lutar pelo maior lance, mostra ao mundo o que realmente está acontecendo além da máscara do sigilo, e mostrar ao mundo quanto mais ele poderia ser se aceitássemos o desconhecido, em vez de nos escondermos dele."
Hudson de repente riu. "Tudo isso soa como um monte de bobagem pseudo-filosófica, e eu não sou nenhum filósofo, amigo. Sou apenas um soldado, e alguém que precisa de uma mão extra em minhas operações."
Jai balançou a cabeça lentamente. "Acho que entendo. Eu não tenho muito o que fazer aqui de qualquer maneira, e conversar com pessoas que viram a mesma merda que eu seria bacana. Além disso, é praticamente o que eu estava fazendo nos fuzileiros."
"Sim… sim." Hudson concordou profusamente. "Muitos dos meus novos recrutas aprenderam a adotar uma maneira de pensar semelhante à minha sobre o desconhecido. Quanto a você… Sinto que minha organização poderia responder às suas questões específicas," ele estendeu um dedo para Jai. "Eu sei que você se juntou ao exército para ganhar o respeito de seus camaradas brancos, que te tratam como pouco mais do que um merda menos que humano. Eu sei como isso acabou para você. E se eu te dissesse que você poderia lutar em uma unidade desagregada para um propósito maior do que, sei lá, morrer na selva?"
Jai piscou. "Continue."
"Estou te oferecendo uma chance de redenção, Jai. Uma chance de finalmente provar ao mundo que você é mais do que você deve achar que é. Uma chance de provar que aqueles idiotas do Zmiejewski e do Watkins estão errados contando aos outros sobre o impossível, e fazendo uma pequena fortuna com isso." Hudon fez uma pausa. "Você gostaria disso, sim?"
Jai balançou a cabeça. "Para aonde iríamos?"
"Rodésia," explicou Hudson. "Fica ao norte do meu país natal, vocês americanos provavelmente nunca ouviram falar dela antes. O governo lá é… amigável comigo e meus homens, e eu essencialmente trabalho pra eles também, mas as coisas estão um pouco agitadas lá. O país está ocupado sendo embargado pela maior parte do mundo e lutando contra terroristas comunistas, ele também está travando uma guerra contra mais dessas 'anomalias,' e podemos usar sua ajuda nessa luta."
Hudson se levantou, colocando a garrafa vazia de cerveja na pia da cozinha de Jai, antes de marchar de volta para o sofá. "Se você aceitasse minha oferta, você seria enviado para lá e treinado por mim pessoalmente. Eu não só ensinaria você a atirar melhor, eu ensinaria você a sobreviver melhor ao estranho. Você teve sorte no Vietnã, mas você pode não ter sorte outra vez."
Ele enfiou a mão no bolso para pegar um cartão de visita com texto impresso em preto, colocando-o sobre a mesa. "Se você quiser se juntar a mim, me ligue nesse número no cartão," explicou Hudson. "Vou deixá-lo em paz agora, Sr. Perryman."
Jai balançou a cabeça. Ele se deu ao trabalho de examinar o logotipo no cartão: ele era diferente de tudo que ele já tinha visto. Um pequeno círculo vermelho estava situado dentro de um círculo preto maior, com oito linhas pretas estendendo-se para fora do círculo vermelho, com as informações de contato de Hudson impressas no topo da insígnia.
Jai observou o homem se encaminhar para a entrada do apartamento. Antes de sair, no entanto, ele parou, virando-se para Jai enquanto colocava um dedo ao lado de sua cabeça. Os dois não fizeram contato visual um com o outro, mas Jai sabia que Hudson ainda estava olhando para ele. "Pense nisso."
Ele abriu a porta e saiu imediatamente depois, deixando Jai sozinho em sua própria casa, e uma garrafa de cerveja pela metade e uma pistola descarregada na mesa à sua frente.