Colina de Fogo


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Zâmbia, 1971


A luz do dia se foi há muito tempo, mas metade do céu ainda estava iluminada pelas chamas verdes sobrenaturais que rugiam no mato.

O ataque dos Escoteiros à base inimiga era um exemplo didático de uma missão que deu certo, e todas as evidências da existência do local estavam sendo apagadas pela tempestade de fogo à distância. Apesar de estar muito, muito longe da carnificina flamejante, Jai ainda podia sentir o calor das chamas em seu rosto, e podia ouvir claramente o ronco baixo do fogo.

De todas as formas, ele tinha sorte de estar vivo, mas algo parecia… errado.

Isso não parecia certo para ele olhar. Nada disso parecia certo.

Quase meia hora atrás, eles estavam simplesmente realizando uma missão de reconhecimento na base no mato, antes de Hudson anunciar dramaticamente que a tirariam do controle da Grande Zimbábue de uma só vez. A meia hora de combate corpo a corpo que se seguiu, tinha sido literalmente um borrão, e se Jai fosse fazer qualquer suposição hoje, seu caso de tempo desaparecido era provavelmente o trabalho de algum "dobrador de realidade" em jogo, um termo que ele pegou emprestado de um companheiro de esquadrão durante a luta. O que quer que ele significasse.

E as chamas…

O fogo era provavelmente a pior coisa de tudo. Não só ele era verde, ele estava vivo. Ele parecia se mexer por conta própria, como dedos flamejantes da morte estendendo-se e atravessando terreno aberto. Ele parava de vez em quando—como se estivesse procurando por tendas ou corpos deixados para trás pelos invasores, ou um combatente comunista que não tivesse sido morto após o tiroteio—antes de sair para queimar outra coisa. O fato de um membro da equipe do Hudson—que já era mais mecânico do que humano—ser capaz de liberar uma força tão destrutiva sobre o inimigo apenas de suas palmas assustava completamente a Jai.

Isso o fazia pensar no monstro no Vietnã que ele lutou; será que havia armas soviéticas ou americanas como esta; humanos convertidos em máquinas de matar totalmente metálicas e imparáveis? Isso o fazia se perguntar se mais alguém na equipe do Hudson estava escondendo alguma habilidade anômala como essa, ou se o próprio homem era anômalo.

Jai realmente se destacava dos outros entre esses homens extraordinários, mas talvez fosse melhor para ele permanecer normal. Afinal, ele gosta de sua humanidade.

Enquanto observava os outros Escoteiros vasculharem os restos da base, jogando os restos mortais de membros da tribo da Grande Zimbábue, equipamentos e tomos de aparência antiga em direção à fogueira vermelha, ele ouviu o farfalhar de folhas e o remexer de coberturas de latão atrás dele. Ele lentamente se virou, seus olhos cansados encontrando com o cérebro africânder por trás de todo o ataque que se materializou do mato.

"Hudson," Jai murmurou para o comandante, voltando-se para o fogo verdejante.

Hudson abriu um pequeno sorriso, enterrando as mãos nos bolsos do uniforme. "O que você achou do seu primeiro ataque, garoto? Seu primeiro "grande" ataque de verdade no território da Grande Zimbábue?"

"Foi assustador," Respondeu Jai categoricamente, olhando para sua fiel M16 pendurada no peito, que ele só agora percebeu que estava travada.

Ele só suspirou, exasperado. Não havia muito que um fuzileiro com equipamento americano excedente poderia fazer contra alguém que podia literalmente distorcer a realidade ao seu redor, como tal era um milagre que ele tinha sobrevivido a toda a experiência.

Jai tirou o pente do rifle e puxou o ferrolho de volta, observando inexpressivamente o projétil emperrado cair da câmara e cair no chão. Quando ele soltou, o ferrolho disparou para frente com um tinido metálico, mas ele continuou olhando para o chão. "Não sei como sobrevivi."

"Você sobreviveu. É isso que importe." Respondeu Hudson, concordando. "Pelo menos você tá sendo honesto."

Ele se aproximou do jovem Escoteiro, como se estivesse assistindo o fogo com ele. "Eu me lembro do meu primeiro ataque como se fosse ontem. Eu era meio como você; jovem, cagado de medo, tinha que pegar uma anomalia que podia derreter a mente de alguém se tratada de forma inadequada. Isso foi durante meu tempo com os Skippers. O que me lembra…"

Hudson de repente se virou para Jai, estendendo a mão e pegando algo que o ex-fuzileiro tinha enfiado em sua cinta. Era uma pasta de papel pardo que Jai havia pegado de uma barraca antes do Insurgente mecânico começar a queimar tudo, estampado com uma insígnia preta estranhamente familiar composta por dois símbolos circulares pretos, com três setas pretas voltadas para dentro. Jai não pensou muito no que encontrara, e apenas assumiu que fosse algum tipo de informação importante, então o interesse de Hudson nele não foi muito surpreendente.

"Boa ideia não queimar isso, Sr. perryman." Hudson ergueu o dossiê para dar ênfase, piscando. "E obrigado por me dar ele."

Jai não fez nenhum outro protesto a esse gesto além de encolher os ombros. "O que é isso, Hudson?"

"Um dossiê, meu rapaz."

"Você poderia ser um pouco mais específico, cara?"

Hudson sorriu. "Arquivos ultra-secretos dos Skippers. Esta é a chave para tudo, meu amigo, não apenas para por que estamos aqui e por que lutamos. Para a Insurgência."

Jai piscou, um pouco cansado demais para começar a pensar de maneira filosófica esta noite. No entanto, a menção do doador sombrio dos Escoteiros que lhes fornecia armas e equipamentos foi suficiente para despertar seu interesse; ele quase raramente ouvia sobre eles, exceto por alguns comentários de passagem entre os homens de Hudson.

Ele respirou pelas narinas. "Certo. Então abra."

Hudson fez exatamente isso, e apresentou a Jai um documento com tantas redações que ele assumiu ser apenas uma folha de papel preta à primeira vista. No entanto, enquanto seus olhos se concentravam no papel, ele podia distinguir letras borradas escondidas nas caixas pretas e entre símbolos estranhos, formando frases e palavras sem sentido do que parecia ser nada. As palavras "retrocausal" e "contido" se destacaram por um breve segundo… antes de desaparecerem, o pensamento escapando de sua cabeça como se ele nem tivesse visto as palavras.

A única coisa que permanecia intocada era uma foto em preto e branco anexada ao canto superior esquerdo da folha.

A mente de Jai começou a vagar junto com seus olhos. Ele viu uma alta torre de pedra escondida nas montanhas monocromáticas; uma estrutura que era notavelmente antiga, mas ao mesmo tempo, avançada em seu próprio mérito. Ela pairava alto acima das árvores, grande demais para caber até mesmo na pequena fotografia anexada ao dossiê, deixando seu tamanho real para a imaginação.

"O zigurate da Grande Zimbábue?" Murmurou Jai em voz alta enquanto se afastava do papel e cambaleava para trás. Suas pernas fraquejaram e ele quase caiu sobre suas costas enquanto o tempo que ele gastou olhando para o papel finalmente o pegava, quase como se ele estivesse com descompensação horária. A essa altura, o fogo já havia ido para uma parte diferente da base.

"…Mas o que que ele estava fazendo?"

"…Calma… O quê? O que que eu—"

"Você acaba de ser exposto ao que é conhecido como um antimeme, meu amigo," Explicou Hudson. "Um antimeme é uma informação autocensurável, por isso que você sente que perdeu tempo. Se eu não tivesse usado mnésticos antes disso, eu teria esquecido que estava segurando este documento." Ele fez uma pausa, enfiando o documento de volta na pasta de papel pardo. "Eles não devem querer que o segredo seja divulgado, nem mesmo entre seus próprios pares."

Jai esfregou as têmporas e piscou algumas vezes. "Merda… segredo?"

"A torre é uma representação de uma das forças fundamentais da realidade, Jai, e os selvagens da Grande Zimbábue estão perto de transformá-la em uma arma." Hudson começou a vagar pela área, segurando o queixo com uma mão. "Se eles conseguirem, você pode dizer adeus à Rodésia. Adeus ao resto do mundo livre, por mim."

Jai olhou para a pasta que Hudson carregava na mão livre, antes de olhar de volta para o homem. Ele encolheu os ombros; a solução mais simples tornando-se imediatamente clara. "Então a gente só explode ela."

"Nãonãonãonãonão. Não exatamente." Hudson sacudiu a cabeça. "Aquela torre representa algo muito importante para nós, meu amigo. Não podemos simplesmente explodi-la. No momento, simplesmente tomá-la é muito perigoso…"

Jai observou Hudson se agachar, a mão ainda no queixe. Ele encolheu os ombros novamente. "Então, o que fazemos então, Hudson?"

"Shhh."

"…Quê?" Jai levantou a voz. "Por quê?! Você não tem um plano, Hudson? O Comando não tem um plano, como sempre tem?"

Ele bufou, andando de um lado para o outro enquanto tentava racionalizar as coisas sem sentido que Hudson falava sobre o zigurate, enquanto o homem só ficava parado e ponderava como um filósofo grego.

Aquilo não fazia o menor sentido, e após ter visto uma batalha que também não fazia sentido, com a realidade se dobrando ao seu redor como se fosse barro, e vendo pessoas sendo viradas do avesso ou enfiadas em singularidades do tamanho de um centavo, Jai não queria mais respostas enigmáticas.

Ele bufou amargamente. "É melhor alguém ter a porra de um plano, porque eu não sei o que diabos estamos fazendo aqui, cara. Não sei pelo que estou lutan-"

"Kasseta idiota— cale a boca, Jai." gritou Hudson, apontando um dedo para o home. Jai imediatamente fez o que foi ordenado enquanto Hudson se levantava, pairando sobre ele. "Você tá mesmo me perguntando isso, disgrassa? Você tá mesmo me provocando porque você quer ser mimado durante todo esse processo? Vá à foda." Ele fez uma pausa, colocando a mão no queixo novamente enquanto olhava para o fogo.

"Tô pensando, Sr. Perryman. Esta é uma luta muito importante para nós.. para mim.. e se você for ignorante demais para ter paciência para esse tipo de trabalho, posso mandar esse seu traseiro preguiçoso para casa para continuar fazendo kaka mundana com os rodesianos. Ou…" Sua voz diminuiu. "Você pode se acalmar, ouvir e entender o que estamos fazendo aqui."

O silêncio de Jai foi resposta suficiente para Hudson. Ele ficou parado por cerca de um minuto, permitindo que o africânder de temperamento curto se acalmasse, antes de quebrar o silêncio. "No que você tá pensando, Hudson?"

"No futuro, Sr. Perryman," Começou Hudson. "Estou pensando no que está na minha mente, no que está na mente dos outros e no que está na sua mente. Estou pensando no que vai acontecer amanhã, assim que eu entregar este relatório ao Comando Delta—se eu o entregar. Estou pensando sobre o que isso significa para a Insurgência no futuro, e estou pensando nesta torre. Estou constantemente me preocupando com ela."

Jai tomou um bom minuto para parar, observando silenciosamente seus arredores. As chamas verdes começaram a se extinguir lentamente, cobrindo o mundo mais uma vez na escuridão, iluminada apenas pela lua e lanternas presas às cintas e armas dos Escoteiros.

Finalmente, ele falou. "E o passado?"

Hudson enrijeceu por um momento. Jai também enrijeceu, sentindo que havia atingido um nervo quando Hudson se virou para ele.´

"Não preciso me preocupar com o passado, Jai. Como entendo, o que aconteceu no passado fica no passado. Você, é claro, vai pensar o contrário. O que importa para mim, é o presente e o que fazemos dele, e o futuro."

Antes que ele tivesse a chance de responder, Jai viu Hudson encará-lo totalmente, apoiando as mãos na metade superior do rifle de batalha pendurado em seu pescoço. "Me diga, Jai. Você acredita em Deus?"

"Uh." Jai fez uma pausa. A pergunta era idiota, na verdade. Ele frequentava a igreja desde que conseguia se lembrar, então por que estava demorando tanto para ele responder à pergunta?

"Sim." Murmurou ele. "E você?"

Hudson sacudiu a cabeça. "Não exatamente. Depende do que você quer dizer com Deus. Eu não acredito em hierarquias organizadas—papas, cardeais, padres, merda assim. Do jeito que vejo, eles são todos apenas homens, e todos os homens são igualmente falíveis. Eu acredito no conceito de Deus, ou um Deus. O fato de estarmos nesta rocha para começo de conversa levanta a questão de por que estamos aqui…"

Jai inclinou a cabeça—a tangente que Hudson estava seguindo era um pouco inesperada, mas ele não pôde deixar de ser um pouco curioso. "E a resposta seria?"

"…Acredito que estamos aqui—que algum Deus nos colocou aqui—para criarmos nossos próprios caminhos, Jai. Para perseguir nossos sonhos e motivos, e cumprir nosso destino."

Hudson apontou para Jai mais uma vez. "Eu sei que você tem sonhos, e sei que tu luta todos os dias para vê-los se tornarem realidade—é isso que faz você se levantar da cama todas as manhãs. Fora dos meus sonhos de lucro, sei que minhas aspirações são mais proeminentes do que os sonhos dos outros. Não importa a quantidade de sonhos que você tenha ou o tipo, sempre há aqueles que são mais importantes que outros."

Jai ergueu uma sobrancelha. "Então… você está dizendo que meus sonhos de ajudar minha Mãe a sobreviver e, sei lá, salvar o mundo, não importam comparados aos seus?"

"Eu não estou dizendo isso," Hudson gesticulou para si mesmo e sacudiu a cabeça. "Mas no grande esquema das coisas, sim. Você pode dizer isso."

Jai revirou os olhos e bufou. "Besteira. O que torna os seus tão importantes? O que isso tem a ver com a nossa missão?"

"Meu sonho…" Hudson fez uma pausa. "É superar o Destino. Eu quero pegá-lo pela nuca e torná-lo minha vadia. Alguns podem dizer que não temos controle sobre nossas vidas, Jai, muito menos nosso próprio livre arbítrio. Eu acho o contrário. O Destino é uma gaiola, e é nosso trabalho como insurgentes desmontá-la e quebrar a norma."

"E o zigurate representa o Destino." terminou Jai.

"Sim… e é por isso que devemos tomá-lo, antes que a Grande Zimbábue o tome e use para nos exterminar. Como humanos, é nossa responsabilidade—não, nosso destino, lutar por nosso próprio destino. Você gostaria de fazer seu próprio destino, Jai, ou de estar condenado a apenas seguir o status quo cósmico?"

Hudson fez uma pausa e então sorriu novamente, como se já soubesse a resposta de Jai. "É por isso que estamos lutando. Essa é a nossa guerra. Dominar nosso destino.'"

Jai ficou ali parado, sem saber como processar as divagações enigmáticas de Hudson por enquanto. Ele observou o homem se levantar e guardar o dossiê antes de se voltar para Jai. "Esse é o Plano, meu rapaz. Mas antes que possamos enfrentar a Grande Zimbábue e dominar nosso destino, precisamos das ferramentas para isso. Precisamos… fazer um inventário."

Hudson não disse mais palavras enquanto ia embora, desaparecendo na escuridão enquanto o resto dos Escoteiros deixavam seu perímetro de segurança, seguindo seu líder para fora da área.

Jai ficou sozinho na escuridão, observando as últimas brasas da fogueira verde desaparecerem na terra, antes de tudo ficar escuro novamente.

***

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Rodésia, 1973


Jai acordou com os sons de tiros e grunhidos pesados.

Ele tentou se levantar, sua visão embaçada focando em um guerrilheiro ZANU se aproximando no meio de seu acampamento, que parecia estar à beira da morte. O homem rastejou por seus companheiros caídos, o uniforme manchado de lama, sangue e suor, enquanto avançava lentamente em direção a um único corpo caído no chão.

Manchas de sangue de numerosos ferimentos de bala salpicavam o uniforme e colete camuflados rodesianos do gigante careca, mas ele se mexia mesmo assim, arfando e resmungando a cada respiração.

Darren ainda estava lutando.

"Vamos lá… seu… filho… da.. puta"

Darren mexeu a pistola em suas mãos cobertas de sangue enquanto cuspia na direção do guerrilheiro comunista ferido que mancava em sua direção. Apesar de estar lotado de mais balas do que havia disparado contra o inimigo, o insurgente ainda lutava e não parecia querer cair tão cedo. "Você… você quer continuar?! Eu vou… te matar…"

Ele tinha que admirar a tenacidade de Darren, mas Jai sabia que o homem só estava fazendo isso para deter o inimigo. Ele estava operando a restos de adrenalina, e não havia nenhuma maneira que ele estaria deixando aquele vivo.

"Vá… se foder… vamos…" Com um grunhido, Darren empurrou fracamente o cartucho na pistola e acionou o ferrolho. O ferrolho disparou para a frente, e então Jai o viu estender a pistola em direção ao—

RATATATATATATATAT

Jai se encolheu quando o terrível barulho de tiros automáticos de repente encheu o ar. O corpo de Darren ficou mole, sua pistola caiu no chão ao lado dele com uma batida abafada. A respiração pesada do homem e os grunhidos determinados foram lentamente substituídos por grogolejos úmidos; Darren estava engasgando com o próprio sangue.

Ouviu-se um grito das árvores: "Alfa, você tá bem?!"

"Tô, chefe!"

"Tô bem!"

"Force até o fim! Um corpo no Land Rover! Circulando!"

Americanos. Por que será que mercenários americanos estavam trabalhando para comunistas, muito mais para a Grande Zimbábue?

O atirador, um homem em equipamento tático preto que usava uma luva vermelha, avançou para fora das árvores, ladeado por dois soldados equipados de forma semelhante. Ele verificou a área com uma varredura rápida de três segundos, apontou sua SMH para Darren e, então, começou a esvaziar outra longa rajada no abdômen do homem.

Antes que Jai pudesse soltar um suspiro, Mira colocou a mão sobre sua boca. Algo molhado escorria de seu nariz para a mão dela, e ele sentia o cheiro de cobre. Sua cabeça estava girando e latejando ao mesmo tempo, mas ele não fez outras vocalizações enquanto Mira o arrastava ainda mais para o mato. Não havia nada que ele pudesse ter feito, mas, ao mesmo tempo, ele sentia como se houvesse uma pequena chance de que eles pudessem ter salvo Darren.

O atirador chutou o cadáver de Darren com um pé e então deixou sua submetralhadora cair ao seu lado em sua cinta. Sua mão direita enluvada disparou para o fone de ouvido que usava sob o gorro. "Comando, Alfa-1-Chefe, um insurgente abatido. Estamos procurando os outros dois agora, câmbio."

Havia homens por todo o acampamento. Os outros dois soldados em uniformes militares escuros revistaram seus sacos de dormir com lanternas presas às armas. Um punhado de guerrilheiros comunistas falando em xona policiava a área, vasculhando as mochilas que haviam pendurado na lateral do Land Rover e rindo das bugigangas anômalas ocasionais que saqueavam de seu veículo.

No centro da formação estava o homem tribal alto que Jai tinha visto antes de desmaiar, que examinava a área de maneira lenta, quase robótica. Seus olhos passaram pela direção geral da dupla várias vezes, quase como se ele soubesse inatamente que eles estavam lá, então Jai só podia torcer que Mira tivesse um plano para lidar com alguém como ele que não envolvesse meter bala.

Não era como se eles tivessem outras opções de qualquer maneira.

O acampamento deles foi invadido, e eles quase não tinham saída… e Mira sabia disso também. Ele olhou para os olhos dela, como se aceitando o que ia acontecer e desejando algum consolo dela, mas então ela fez algo inesperado.

Ela pegou um chapéu kepi dobrado do bolso de trás de seu short, estampado com a mesma camuflagem estilo "caçador de patos" que ela usava. Jai não conseguia distinguir exatamente o que estava bordado na frente do chapéu, já que estava tão escuro, mas isso pouco importava para ele de qualquer modo.

"Mira, o que você tá—"

"Vá pro norte em direção à estrada principal, voltando para a base," instruiu ela com um sussurro, encaixando o chapéu na cabeça dele, embora uma de suas mãos ainda permanecesse na aba por algum motivo. A outra apertou algo comprido e de cor escura na ponta do cano de seu rifle. "Nem se preocupe em se esconder, Jai. Eles nem vão saber que você tá aqui."

"Calma, do que vo—"

Mira tirou as mãos do chapéu e, quase como se estivesse ignorando seus protestos e vocalizações, rapidamente, desapareceu no mato atrás deles. Ele calou a boca, desacelerou sua respiração o melhor que pôde e rolou de bruços, procurando uma abertura para usar para escapar.

Os inimigos tagarelavam entre si enquanto ele estava deitado de bruços no mato, parado como uma pedra. Jai aproveitou o tempo para deixá-los se mover e ouvir. Talvez uma abertura se apresentasse se ele esperasse—afinal, paciência era uma virtude.

"Alfa-1, continue procurando na área pelos outros dois. Fiquem de olhos atentos," o atirador que executou Darren anunciou em voz alta. Seus olhos então se encontraram com o homem de aparência tribal coberto de pintura de guerra, que balançava a mão sobre o guerrilheiro ferido, curando-o de suas feridas. O atirador olhou para o homem, aparentemente sem se deixar perturbar pela diferença de altura ou pela presença do dobrador de realidade para começar. "Sua alteza. Algo a dizer?"

Sua alteza? Jai ergueu uma sobrancelha, intrigado.

"Fique atento, comandante," o grande zimbabuense falou com um forte sotaque, segurança uma M16 de aparência familiar para ver sob a luz do sinalizador. Os olhos de Jai se arregalaram ao ver os cartuchos presos e a pintura de guerra de seu rifle, e quase gritou para o homem soltá-lo, apenas para assistir impotente o rifle se dissolver em areia entre os dedos do homem tribal.

"Dois ainda permanecem na área, mas um deles está escondido," terminou ele, cruzando as mãos atrás das costas.

Jai viu o soldado inclinar a cabeça, examinando as árvores. "O que te faz pensar isso, Príncipe?"

"Eu pude sentir a presença dele por um breve momento…" continuou o "príncipe", murmurando em xona enquanto andava ao redor da floresta. "Depois, ela sumiu. Não foi como a morte, pois foi simplesmente como se ele não estivesse aqui."

Jai viu o comandante inimigo franzir a testa, como se soubesse de algo que o homem tribal não sabia. "Merda. Me tragam o especialista em memética, tomem cuidado com quaisquer antimemes na área."

Jai tomou isso como sua deixa para se mover e começou a se arrastar pela folhagem, ficando o mais baixo possível no chão enquanto se dirigia para um arbusto adjacente a uma árvore.

Uma vez escondido, ele se escondeu nas sombras e estendeu a mão para a alça direita de sua cinta, desfazendo um botão com o polegar para pegar uma bainha de faca. A lâmina de sua faca de combate brilhou por uma fração de segundo sob a luz da lua enquanto ele a segurava em um aperto reverso, e então esperou.

Restavam apenas mais uma dúzia de árvores antes da floresta abrir caminho abruptamente para a grama alta. Onde Jai sabia que seria impossível alguém encontrá-lo. Ele observou do mato enquanto quatro guerrilheiros se aproximavam em uma formação delta em leque, suas armas se movendo de forma irregular enquanto sussurravam entre si em xona.

Eles pararam perto de sua árvore, tão perto que Jai praticamente podia sentir o cheiro deles. Seu coração batia de novo e de novo, desesperado para se soltar de seu peito, enquanto ele lentamente levantava sua faca.

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Mais sussurros desesperados em xona. Os combatentes ZANU perto de seu esconderijo se espalharam para investigar o som de um galho quebrando, deixando apenas um deles para manter a posição que ocupavam antes. O homem se virou pra ver seus companheiros partirem, apresentando suas costas expostas a Jai.

Sua mão estava ao redor da boca do homem antes de sua faca entrar na base do pescoço do guerrilheiro. Jai e sua presa entraram no mato em um movimento fluido, e após retirar a faca do pescoço do homem, ele saltou para outra árvore.

Sua cabeça girou em torno do tronco enquanto observava os outros três guerrilheiros desaparecerem na escuridão. Ele só tinha mais algumas árvores… e, enquanto ele corria para outro arbusto para se esconder, ele—

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Outro sinalizador disparou no alto, iluminando a figura do homem africano alto coberto de pintura de guerra, que estava bem na frente dele. Jai rapidamente cambaleou para trás da árvore mais próxima enquanto observava o homem olhar para baixo, inspecionando o rastro de pegadas na terra que parecia terminar abruptamente do outro lado da árvore.

"Eu sei que você está aqui." Ele fez uma pausa, e então ajustou seu tom. "Saia, e eu não o matarei."

Aquela voz. O tom de comando. O estrondo barítono. O que diabos havia de errado com ele?

Jai sentiu como se ele estivesse se dirigindo diretamente a ele, sacudindo violentamente seu corpo a cada sílaba, como se alguma força invisível estivesse agarrando sua cabeça e forçando-o a olhar diretamente nos olhos do homem. A única razão pela qual ele notou que estava se movendo lentamente de trás da árvore para enfrentar o "príncipe" enquanto pegava o chapéu kepi da Mira era porque ele ouviu um grito horripilante atrás dele.

Um dos homens em equipamento tático preto explodiu espontaneamente em chamas, agitando os braços descontroladamente e gritando enquanto seu corpo iluminava a noite e alguns arbustos ao seu redor. Seu comandante gritou a palavra "CONTATO!" enquanto os sons de tiros silenciados de fuzil ecoava dos flancos, seguidos pelo som de vários corpos caindo no chão.

Em meio ao caos, Jai então viu uma oportunidade satisfatória demais para ser ignorada enquanto olhava de volta para o príncipe.

Sua pistola saiu do coldre, o cano apontado para a têmpora do grande zimbabuense, cuja atenção estava concentrada no homem em chamas. O dedo indicador de Jai correu para o gatilho e apertou.

Click.

"Ah, porcaria." Emperrou.

Jai viu o "príncipe" grande zimbabuense se virar para o som de sua voz. Ele levantou a palma da mão, provavelmente se preparando para literalmente apagá-lo da existência. Enquanto se preparava para se lançar para o lado e rezar para escapar a tempo, Jai de repente sentiu um calor sufocante sobre sua cabeça quando uma bola de fogo explodiu sobre ele.

O príncipe rebateu a bola de fogo em uma árvore próxima, muito concentrado em Mira se tornando brevemente visível no mato para se importar com a árvore se partindo ao meio e caindo perto dele. O rifle de Mira estava pendurado no ombro enquanto ela atirava do quadril, sua mão livre cercada por runas geométricas brilhantes e rotativas, como se ela estivesse preparando outro ataque taumico.

As balas disparadas pareciam não ter efeito contra o príncipe enquanto ele estendia a mão para Mira, como se estivessem simplesmente desaparecendo antes que pudessem atingi-lo. Jai piscou e então viu o espaço `sua frente sendo dobrado como papel, enquanto o príncipe instantaneamente reduzia pela metade a distância entre ele e a mulher.

De jeito nenhum. Ela não ia morrer hoje também.

Jai bateu o pente para cima o mais forte que pôde, puxou o ferrolho para trás e puxou o gatilho duas vezes.

O "príncipe" caiu no chão ao lado de Mira, morto com o impacto enquanto seu corpo passava por ela e se acomodava em um arbusto próximo. A mira de Jai virou para a direita e depois para a esquerda—um dos guerrilheiros se virou para ela e ergueu sua Kalashnikov, mas então caiu sob sue próprio peso quando mais duas balas de .45 da pistola de Jai atingiram seu peito e testa.

Mira se encolheu por um momento, como se não tivesse certeza de quem estava atirando, mas continuou se movendo mesmo assim. Ela correu para longe do acampamento, uma ação que Jai imitou sem qualquer hesitação enquanto corria em direção às árvores.

"Recuar, RECUAR, o Príncipe foi abatido, dois contatos em reti—"

A voz do comandante inimigo sumiu no ambiente de fundo da verdadeira queimada quando Jai se lançou no campo de grama quase na altura do peito. Ele arrancou o chapéu kepi de sua cabeça e, em seguida, levantou a cabeça para o céu. "MIRA!"

Nenhuma resposta. "Ah, merda. Ah, porra."

A paranoia começou assim que ele realmente entendeu a situação em que estava: Ele estava no meio de grama alta, sozinho. Ele estava desarmado e não tinha ideia de para aonde ir a partir daqui.

"Jai, vamos. Tô com você. Ainda não saímos dessa."

Ou talvez não.

O braço de Mira de repente se estendeu da grama, puxando-o enquanto eles se apressavam na noite. Eles correram pelo que pareceram horas pela grama alta, e logo antes de Jai pensar que seus pulmões e joelhos iriam ceder, eles saíram do campo gramado e chegaram a uma estrada de terra. Jai prontamente caiu no chão e ficou de quatro, ofegante para recuperar o fôlego.

Eles ficaram parados na beira da estrada por um tempo ofegante. Jai ergueu os olhos e olhou ao redor da área, descobrindo que a estrada de terra levava a uma colina—um bom sinal de que eles estavam bem perto da base. "Estamos na limpa, Mira. Estamos na limpa." Ele suspirou de alívio, olhando para ela. "Você… ah… você pegou o que podia?"

Mira apenas se sentou de joelhos e deixou cair duas mochilas de suas costas, deslizando uma para Jai. Em troca, Jai jogou para ela o chapéu kepi, que ela rapidamente pegou e colocou no bolso do short. "O chapéu funcionou… eu acho, reconheço isso, Mira."

Novamente, nenhum resposta. Ele suspirou. "Nada, hein?" Jai bufou, jogando as mãos para o lado enquanto encolhia os ombros. "Então o que você quer que eu diga?"

Ela finalmente murmurou algo. "…Por que estou fazendo isso?"

"O quê?"

Ela fez contato visual com ele. "Nada. Eu não preciso que você diga nada, Jai."

Ele bufou novamente. "O que, nenhum 'obrigada, Jay,' ou 'obrigada por me defender, Jay,' hein? Nada?"

"Não."

"Não?"

"Que porra você quer, Jai, a porra de um beijo?" Gritou Mira, ficando de pé enquanto pegava seu rifle do chão. "Estamos acabados. Sim, estou muito grata que você me ajudou a sair de lá, mas estamos fodidos agora. Precisamos planejar nossos próximos passos com cuidado, e não faço ideia se a Equipe Vermelha ainda está viva."

Ela então parou. "Eles estão? Você é quem tá com o rádio."

Jai assobiou enquanto olhava para a floresta em chamas da qual haviam escapado. "Porra, cara. O rádio estava no painel do Land Rover. Ou aqueles capangas o pegaram, ou a queimada o destruiu."

"Puta merda." Mira inclinou a cabeça para trás, soltando um longo "uuuuuuugh" que transmitia muito bem sua frustração. "Nós estamos acabados, e se eu fosse adivinhar, aquilo foi a Fundação nos emboscando."

"Que significa…?" Perguntou Jai, esperando que ela terminasse sua pergunta.

Ela revirou os olhos. "O que significa que estamos fodidos, Jai. Uma vez que eles nos encontrem, a Fundação não vai parar por nada para nos eliminar. Nossa melhor aposta é voltar para a base e descobrir o que fazer a partir daí."

"Não estamos muito longe," Jai apontou para o topo da colina, pegando sua mochila. "É só subir aquela colina e seguir reto. Caminhava por essa rota o tempo todo."

Ela passou por ele e começou a se arrastar pelo caminho. "Então bora."

Eles não disseram mais nada um o outro e começaram a subir a colina, assim que os raios do sol começaram a espreitar no horizonte. Jai não tinha ideia de há quanto tempo eles estavam fora, nem há quanto tempo eles estavam correndo, mas não devia ter sido mais do que uma hora se o sol já estava nascendo tão cedo.

Tudo o que eles precisavam fazer era voltar para a base, se recuperar e esperar que o Hudson ou outra pessoa estivesse na estação para ajudá-los a seguir em frente.

rrrrrrrrr

Jai de repente congelou, ouvindo um zumbido muito familiar se aproximando; um som que ele conhecia muito bem de seu tempo no Vietnã. Sem qualquer aviso, ele agarrou mira e se jogou com ela debaixo de uma árvore. "Se abaixe!"

Seu rosto se contorceu enquanto ela olhava para ele. "Olha, Jai, aprecio você também, mas não assim. Por favor, saia de cima de—"

"Cale a boca. Escute."

Mira se interrompeu quando também ouviu o zumbido ficando mais alto, entendendo instantaneamente o que era quando uma enorme sombra passou por eles, seguida pelo rugido ensurdecedor de pás de rotor.

Um helicóptero preto, elegante demais para ser considerado um Huey, mas inconfundivelmente americano em design, voava baixo e rápido. Ele sobrevoava o chão, presumivelmente permanecendo baixo para evitar ser detectado por radar, muitas vezes perigosamente baixo em alguns pontos conforme manobrava pelas colinas como uma faca ágil no céu. Uma nuvem de poeira o perseguia enquanto passava por eles, felizmente ignorando sua existência.

Jai observou enquanto o helicóptero se tornava pouco mais que um ponto preto no horizonte. Ele e Mira olharam um para o outro, como se ambos soubessem as implicações do que aquilo era.

Aquele helicóptero tinha vindo da base.

À medida que o sol avançava lentamente no horizonte, iluminando o céu com um tom âmbar cor de lavanda, eles viram uma espessa coluna de fumaça subindo atrás de outra colina, uma estranheza que tingia o céu com uma cor preta esfumaçada. O fedor avassalador de algo apodrecendo e cozinhando ao mesmo tempo encheu suas narinas, e quando chegaram ao topo da colina, Jai gritou em voz alta com o que viu.

"Ah, porra."

As torres de vigia tinham sido explodidas em pedacinhos, e detritos salpicavam o chão por toda a base. Os motores de seus veículos, juntamente com o resto da garagem, foram destruídos com o que pareciam ser granadas de termite, visto os buracos consideráveis em seus capôs. O que restava do edifício do comando central havia sido reduzido a uma pilha fumegante de escombros, como se um grande incêndio tivesse ocorrido no dia anterior.

No centro da base havia uma pilha enorme e fumegante de… algo, com os restos queimados da bandeira rodesiana sobre esse algo. O fedor da morte permeava o monte, enchendo suas narinas com a fumaça doentia, mas a curiosidade de Jai estava tomando conta dele. Apesar dos protestos de Mira, ele desceu a colina e entrou na base, determinado a dar uma olhada melhor n oque era o monte em chamas no centro.

Um braço ossudo e queimado se estendia para ele do monte, para sempre congelado no lugar. O queixo de Jai caiu ao ver isso. Seus olhos viajaram lentamente do braço, localizando um crânio e um torso carbonizados… e então…

"Meu Deus…"

Ele sentiu nojo. Ele se dobrou e quase vomitou com o que viu, uma sensação indescritível de pavor o dominando ao ver dezenas de corpos queimados semelhantes, todos misturados em uma massa singular e coagulada de morte.

***

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Masvingo, Rhodesia, 1973


Não demorou muito para que Hudson e os poucos homens que lhe restava entrassem no vale e estabelecessem um posto de observação com vista para a cidade de Masvingo. Àquela altura, o sol já havia nascido, e seu elemento de furtividade era essencialmente agora nulo, mas pelo menos eles ainda podiam confiar na velocidade, surpresa e violência da ação.

Bom o bastante.

O vale tinha vários penhascos que davam para florestas abaixo, todos cercando as antigas ruínas da Grande Zimbábue, mas ele e seus garotos conheciam bem o ambiente. Atravessar a área foi uma brisa, assim como trazer um Unimog para cá, mas descer os penhascos sem cair várias centenas de metros para a morte certa era o maior desafio aqui.

Ele tinha tempo para se preocupar com isso mais tarde. Por hora, seus olhos estavam concentrados nas ruínas da Grande Zimbábue, e seja lá qual "torre" ele estava tão inflexível em encontrar. Até o momento, ele só podia ver uma coletânea de pequenos edifícios pré-fabricados e veículos, provavelmente pertencentes à pequena equipe da Fundação designada para vigiar o sítio provisório na área, junto de um punhado de guerrilheiros comunistas trabalhando junto com a Grande Zimbábue que foram encarregados de proteger a área.

A óbvia falta de uma torre ou zigurate aqui era mais chocante para ele, ainda mais a falta de qualquer selva, mas Hudson Croix era um homem determinado. Os grandes zimbuenses provavelmente tinham uma ou duas cartas na manga para explicar a falta de uma torre aqui.

Felizmente, Hudson, tinha algumas cartas próprias. Ele baixou os binóculos e virou-se para o Unimog. "Bora começar, que tal, rapazes?"

A lona cobrindo a parte de trás do caminhão foi retirada, revelando um grande sino de igreja de ferro suspenso sob um poste de madeira. Seu badalo havia sido marrado a um degrau na caçamba do caminhão, efetivamente impedindo que o sino tocasse.

A Insurgência o chamava de Sino da Entropia. Os efeitos do toque eram completamente aleatórios, mas quase sempre eram de natureza extremamente destrutiva para o recipiente pretendido. Ele, junto com o enigmático Cajado de Hermes, tinha sido um dos primeiros itens que seu grupo variado de insurgente s havia capturado da Fundação em seu auge, e ele só via a luz do dia durante os maiores cercos da Insurgência aos sítios mais seguros da Fundação.

Apesar disso, aqui estava ele, nas mãos de um louco no meio da África, prestes a ser tocado.

Hudson levou a mão às costas e puxou uma grande faca Bowie recém-afiada de uma bainha sob a parte de trás de sua cinta. Ele observou os padrões rodopiantes na lâmina de aço Damasco fluindo por conta própria e inspecionou as runas esotéricas inscritas em seu cabo de osso, antes de agarrar o badalo e cortar a corda que o amarrava ao degrau.

Naquele momento, Hudson realmente sentiu que era a mão direita de Deus. O que aconteceria quando o Sino tocasse hoje? Será que ele faria com que uma enorme tempestade aparecesse no horizonte, dizimando tudo em seu caminho? Será que causaria morte generalizada e instantânea a todos que o ouvissem? Será que ele causaria a erupção de uma coluna de fogo, consumindo tudo em seu caminho? E se nada disso acontecesse e, em vez disso, o Sino simplesmente fizesse com que a Torre, onde quer que estivesse, deixasse de existir?

Só há uma maneira de descobrir.

Ele puxou o badalo para trás, fez uma oração silenciosa por boa sorte e então balançou o badalo para a frente com toda a sua força.

BLEEEEEEMMMMMMMMMMM

O barulho que se seguiu foi de outro mundo, sacudindo toda à terra ao redor de Hudson, seus homens e da Grande Zimbábue. Os ouvidos de Hudson zumbiram pelo que pareceu uma eternidade, e quando ele ergueu os olhos, ele agora podia ver completamente a devastação que havia causado nas ruínas da Grande Zimbábue e Masvingo. Fissuras se abriram na terra, engolindo um punhado de ruínas antigas e funcionários da Fundação do lado de fora inteiros, antes da terra se fechar novamente como uma boca costurada.

Um estalo alto, semelhante ao de um trovão, encheu o ar, seguido pelo estalar ensurdecedor de vidro se estilhaçando. Uma rajada de ventos fortes de repente atingiu Hudson e sua equipe enquanto eles se escondiam atrás das rochas, observando uma pequena cratera se formar sob as ruínas, como se houvesse uma explosão invisível bem na frente deles.

As outrora grandes ruínas da Grande Zimbábue desmoronaram em uma confusão de pedras e terra, parecendo o esqueleto de uma grande criatura que apodreceu com o tempo. E no centro de tudo…

"Rasgo dimensional, avistado à frente," disse o insurgente mecânico em voz alta, estendendo um dedo metálico até a aberração. "No meio das ruínas."

"Rasgo" era a maneira mais fácil de descrever aquilo, visto ser, na verdade mais parecido com um padrão fractal de buracos e formas quase incompreensíveis que pareciam distorcer e se transformar por contra própria, sem nada que parecesse um padrão ou consistência. No meio do padrão inconstante de espaço, no entanto, ele podia distinguir árvores altas e um dossel espesso, características terrenas que não correspondiam a nada no mundo real. O que significava…

"Ahh. Boa, Sr. Gideon. Então, parece que a Grande Zimbábue tem uma dimensão de bolso escondendo seu zigurate…" Deduziu Hudson, esfregando o queixo. "E nós acabamos de forçar nossa entrada."

Três figuras altas cobertas de tinta de guerra saíram cambaleando da dobra no espaço-tempo, assumindo um círculo defensivo apressado ao redor da fenda. A cavalaria da Grande Zimbábue havia chegado, mas será que três dobradores de realidade poderiam manter uma defesa contra um pelotão dos melhores do Hudson?

O africânder se levantou, desdobrando a coronha de seu rifle. Ele acenou com a cabeça para seus homens, e então fez um gesto em direção aos restos das ruínas. Metade do grupo se dividiu para cobrir um lado da fronte, enquanto Hudson imitava o movimento para cobrir o outro flanco. Era uma tática simples, na verdade: cercar o inimigo de ambos os lados, e então avançar e se encontrar com eles no centro.

Seus homens conheciam bem o resto: escolher um homem, se fixar nele e atacá-lo se ele se esconder, para permitir que um amigo o flanqueasse e o derrubasse. Assim que cada membro da equipe escolheu um alvo, Hudson levantou a mão, contando do cinco com os dedos.

No um, ele ergueu o rifle e disparou três vezes, derrubando a pobre alma colocada para guardar o que restava da frente das ruínas. Um breve destacado de tiros ecoou ao redor de Hudson e os corpos dos comunas caíram ao redor dos dobradores, atordoados demais pelo eco do Sino e a velocidade dos Escoteiros para nem sequer retaliar.

Enquanto eles avançavam para o centro das ruínas, is três dobradores de realidade em guarda se separaram; um erro que Hudson sabia que lhes custaria caro. Hudson se agarrou a uma parede de pedra e se arrastou ao longo dela, encontrando o ponto cego de um dos dobradores de realidade com bastante facilidade. Sua mira apontou em direção ao grande zimbabuense atualmente concentrado em suprimir um elemento da equipe de Hudson quando seu dedo deixou o guarda-mato.

BOOM BOOM BOOM

Hudson rapidamente puxou o gatilho três vezes. Três balas rasgaram o corpo do homem, a terceira cortando seu pescoço e fazendo com que sangue espirrasse contra o chão.

Enquanto ele caia contra a parede, Hudson viu Gideon de repente passar por sua linha de visão, agarrando um grande pedaço da parede de pedra para usar como cobertura contra outro guerreiro grande zimbabuense. A luz na frente do titã mecânico parece se curvar por um momento, como se estivesse sendo vista debaixo d'água, e então Hudson viu o escudo de pedra explodir.

Gideon foi quase jogado do chão quando um corte semelhante a uma trincheira apareceu no chão sob os pés do homem, parte de seu uniforme explodindo para revelar o excesso de peças mecânicas e engrenagens que compunham suas extremidades.

O soldado mecânico recuperou o equilíbrio, passando por seus camaradas caídos que infelizmente não foram poupados da explosão taumica. As engrenagens em seu braço giraram descontroladamente, e então assobiaram, como se estivessem liberando pressão acumulada. Seu braço balançou para frente, praticamente afundando o rosto do grande zimbabuense para dentro quando Gideon o lançou em direção a outra parede de pedra.

O terceiro viu isso e se virou para longe do grupo de Escoteiros que o havia prendido, e então ergueu as palmas das mãos em direção a Gideon. Mais dois tiros estalaram dos flancos, e então o homem se viu lamentando a perda de seus dedos e mãos enquanto Hudson se aproximava da cobertura, baixando seu rifle. "Gideon, pegue ele, agora. Parece que eu o desarmei. Hah!"

O insurgente meio mecânico balançou a cabeça e avançou. Ele agarrou o grande zimbabuense aleijado pelo couro cabeludo, forçando-o a ficar de joelhos. Hudson inspecionou o homem por si mesmo e encolheu ao ver seu rosto, recuando alguns passos com a aparência estranhamente jovem do guerreiro. "Cristo amado. O garoto mal deve ter dezoito—por que a Grande Zimbábue tá colocando crianças em campo agora, hein?"

"Ele não consegue nos entender," Gideon deu ao jovem alguns toques de encorajamento no lado do rosto com a mão livre. Seu cativo olhou para eles em resposta. "Ou, talvez, ele esteja apenas escolhendo não falar."

"Ele vai falar. No devido tempo." Disse Hudson. Sua cabeça girou em torno das ruínas, como se estivesse tentando verificar visualmente se elas estavam limpas, e estremecendo com a exibição arrepiante de carnificina ao redor deles, nem mesmo se atrevendo a se incomodar em contar os corpos. Ele então se viu perscrutando o padrão incompreensível que existia à sua frente, imaginando o que eles encontrariam do outro lado da fissura, e imaginando se ele teria os homens para uma operação tão ambiciosa.

"Gideon, contagem de baixas?" Pediu Hudson, temendo o pior enquanto um nó se formava em sua garganta.

O tom do homem meio mecânico foi sem graça. "Sete mortos, um ferido. Vamos entrar?"

Hudson sacudiu a cabeça. "Não, tenho que fazer uma ligação primeiro. Tire o sino daqui e leve ele de volta para um local de entrega. Estabeleça um perímetro—nada sai e nada entra. Eu tenho meus melhores homens aqui, não quero desperdiçar isso."

Sua voz diminuiu no final de sua ordem. "Já perdi o suficiente hoje."

Balançando a cabeça, Gideon saiu para fazer o que lhe foi dito. Hudson se afastou d anomalia e pegou o rádio portátil preso á metade da frente de seu uniforme, e então falou nele. "Hudson para Walls, chegamos a Masvingo. Tenho um rasgo dimensional à vista…deve ser aqui que os desgraçados estão se escondendo. Esperando sua aprovação para entrar, câmbio."

Houve uma pausa, e então Walls falou. A relutância na voz do general do outro lado do rádio era palpável. "Walls par Hudson… reconhecido, adiem esse ataque, por favor. Aguardem."

"…O quê?!" Hudson quase gritou no rádio. "Mas… estamos bem, aqui—"

"Aguarde, Hudson."

Hudson calou a boca, baixou o rádio e se preparou para esperar por um tempo desconfortavelmente longo.

Seu punho cerrou enquanto seus olhos disparavam ao redor da clareira; para os olhos verdes brilhantes de Gideon, para seu prisioneiro grande zimbabuense, e então para os corpos de seus homens que não conseguiram. Ele contou sete corpos, assim como na contagem do Gideon, e então praguejou para si mesmo em voz baixa.

Isso era inacreditável. Por que eles não estavam atacando a Grande Zimbábue agora mesmo. Matando tudo em seu caminho para assumir o controle da torre? Por que eles estavam esperando? O que era tão importante para o General Walls que exigia que os Escoteiros esperassem?

Para cada missão que os Escoteiros realizavam, probabilidades impossíveis eram alcançadas. Cada missão que Hudson planejou ou recebeu do Comando Delta era um exemplo imaculado de como as coisas iam bem quando todos faziam o que deveriam fazer à risca. Mesmo hoje, depois de uma emboscada tão chocante e cara da Fundação, seu poder ainda estava presente. Derrubar um dobrador de realidade era um desfio, mas derrubar três de uma vez era um milagre.

Havia uma razão para eles serem considerados alguns dos homens mais perigosos do continente, mesmo para os padrões da Fundação. A missão de hoje foi executada perfeitamente… e mesmo que eles tivessem enfrentado uma resistência tão desafiadora aqui, ela não era nada que eles não pudessem superar… o que tornava suas suspeitas de que o Primeiro-Ministro Smith tinha algo a vez com esse atraso irritante ainda mais viáveis.

Hudson conhecia Ian Smith como a palma de sua mão e podia lê-lo como um livro: Ian considerava os Escoteiros de Hudson como dispensáveis, na melhor das hipóteses. Valiosos com certeza, mas perdas em uma unidade que não eram rodesianas eram negligenciadas. Pequenas perdas como as de hoje eram devastadoras o suficiente para Hudson, sem falar em grandes perdas como o ataque da Fundação, mas para as pessoas em Salisbury, elas não passavam de nomes em um pedaço de papel.

Tudo por causa de quê? Que eles querem manter a Máscara? Porque os rodesianos não precisam saber que sua existência está sendo ameaçada por esses selvagens? Hudson olhou para seu capturado enquanto pensava, franzindo a testa para ele enquanto grunhia. Ridículo pra porra. É melhor que isso valha o meu tempo.

Sete de seus homens se foram, sua base se foi, e Salisbury iria tratá-los como perdas não críticas, tudo porque Ian queria manter sua preciosa Mascarazinha. Ele iria aprender, em seu devido tempo.

Gideon se aproximou de Hudson, observando o homem fazer beicinho por um minuto antes de falar. "Hudson. O Sino da Entropia foi evacuado, o perímetro foi estabelecido. Se eu puder perguntar…"

"Você acha que isso é intencional?" Perguntou Hudson, como se estivesse roubando as palavras da mente de Gideon. Ele sacudiu a cabeça. "Não. nãonãonãonãonão. Não pode ser, os Skippers devem estar planejando isso há anos, então eu tenho que admitir que eles são bastante pacientes e preciosos. Parece que eles aprenderam bem comigo."

"Talvez eles só queiram ver você ir para o fundo do poço," Gideon adivinhou com um encolher de ombros. "Colocar a Insurgência em desordem e então levar seu operador mais talentoso à loucura. Quem sabe."

Hudson estava prestes a dizer algo concordando com a afirmação de Gideon quando o rádio estalou novamente. Ele o levantou ao ouvido e escutou atentamente.

"Hudson, aqui é Walls. Sinto muito."

"O quê?" Hudson ergueu uma sobrancelha. "Peter, o que esta acontecendo? Por que você está dizendo que 'sente muito'? O que você quer dizer?"

"Hudson, estou falando com você em um canal privado. Sinto muito, mas tentei fazê-los reconsiderar isso."

"Reconsiderar o quê? Walls, só fale comigo."

Hudson não podia vê-lo do outro lado do rádio, mas sabia que Peter provavelmente estava olhando para baixo e derrotado, a julgar pelo tom de sua voz. "Eles encerraram a parceria com a Insurgência do Caos. Ian rejeitou os Escoteiros de Hudson como uma unidade formal da Rodésia, com efeito imediato. Eu fiz o que—"

Hudson quase partiu o rádio ao meio com as próprias mãos. "Eles O QUÊ?!"

"Quero dizer exatamente o que eu digo, Hudson. Eu tentei negociar contra isso, mas Ian viu a operação da Fundação e a perda de sua base como uma perda muito crítica para ser ignorada. Ele vai delegar suas responsabilidades ao Serviço Aéreo Especial da Rodésia agora."

Hudson sentiu seus olhos se contraíram. "Aquele… aquele busseta não pode fazer isso, cara." Ele sibilou. "Olhe para tudo o que fiz por este país. O que nós fizemos. Você não vê o besteirol aqui, Walls?"

"Não é como se eu pudesse fazer muito de qualquer maneira…" Suspirou Peter. "A votação foi unânime."

Hudson andava de um lado para o outro, segurando o rádio portátil com tanta força que viu os nós dos dedos começando a ficar brancos. "Unânime. Inacreditável." Ele bufou em descrença. "Bem, eu não tenho medo de dizer o que eu penso. Eu estou nem aí pro que algum político idiota quer pensar—Eu deveria estar lá."

"A decisão foi tomada com você à revelia… porque eles não queriam interferência da comunidade anômala na votação." Peter parou novamente. "Por enquanto, eles estão oferecendo a vocês cargos como empreiteiros externos ou oficiais dentro das Forças Armadas da Rodésia, como compensação por s—"

"Eles…" Hudson parou de repente, e então só gargalhou em um tom hostil. "Eles… realmente acham que esse é um pagamento bom o suficiente? Ranques? Dinheiro? Eles só querem que eu pare e largue tudo, depois do que fiz por anos e do que vi? Vendo… vendo o anômalo pelo que realmente é faz coisas com as pessoas, e você sabe disso…"

"…Hudson..—"

"Você fodeu a si mesmo e ao seu país. Os grandes zimbabuenses vão NOS DESTRUIR se tiverem a chance, e eles não vão parar em mim, Peter." Hudson interrompeu. "Depois, eles virão atrás de você, depois do resto da África, enquanto a Fundação apenas observa e contém e varre a bosta pra debaixo do tapete como eles sempre fazem, com seus malditos amnésticos. Ninguém vai fazer nada, além de nós, e se não agirmos contra eles, e não contarmos às pessoas o que está por vir, você está praticamente morto."

"Hudson, escute, eu—"

"Não. Você que escute, Peter." Gritou Hudson enquanto apontava para uma pedra, como se estivesse repreendendo o homem em pessoa. "Vocês fodidos nunca viram o anômalo de perto como eu vi, e vocês não fazem ideia do que está acontecendo. Vá se foder."

Walls ficou em silêncio por mais dez segundos. "Mais uma vez, Hudson, eu não pude fazer nada. Sinto muito."

Hudson cuspiu amargamente. "Claro que você sente muito. Claro que você não fez nada, porque você não fez. Eu não vou me permitir ficar de castigo por líderes incompetentes e burocrata enquanto eu tiver a oportunidade de ação direta contra a Grande Zimbábue. Estou terminando essa luta, sozinho, com ou sem sua ajuda."

Ele fez uma pausa. "Agora, se me dá licença, General Walls, tenho um relatório de baixas para entregar aos meus homens, sete homens para enterrar e um zigurate para capturar. Bom dia. Câmbio."

Ele abaixou o rádio e o enfiou na cinta, e então se virou para Gideon. Todos que Hudson conseguiu reunir estavam reunidos aqui; uma força de 20 homens de insurgentes bem versados com o anômalo, ou anômalos por si mesmos. Cada um deles compartilhava um sonho com ele, e cada um deles estava pronto para matar e vingar seus companheiros caídos.

Nada mais os segurava.

"Vamos entrar." Hudson anunciou em voz alta, antes de apontar um dedo em direção ao prisioneiro. "E nós vamos levá-lo conosco. Alguma pergunta?"

Gideon ergueu lentamente a mão. "E o Jai e a Mira? A Equipe Amarela ainda está desaparecida, eles ainda podem estar vivos e nós poderíamos usar o apoio. Devemos esperar por eles?"

Hudson ergueu uma sobrancelha para essa proposta, mas depois sacudiu a cabeça. Por mais que quisesse que eles estivessem aqui, ao seu lado enquanto faziam história, ele sabia que isso seria um resultado impossível. Ele sabia o que esperava por eles com essa decisão.

"Não. O que estamos prestes a fazer não foi aprovado pelo Comando Delta. Eles não considerarão ignóbeis, nos marcarão como hereges, nos excomungarão, mas saberão que nossa causa é justa. A história se lembrará de nós como os homens que conquistaram nosso próprio destino e impediram a Grande Zimbábue de ditar nosso futuro. Ele escolheu seu caminho, eu escolhi o meu."

Enquanto se preparava para entrar na fenda, Hudson de repente virou a cabeça por cima do ombro e olhou para Gideon nos olhos. "Se ele vier, será para me impedir."

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