
Rodésia, 1973
Nada poderia tê-lo preparado para isso.
A colina em chamas, a emboscada, os Grandes Zimbabuenses trabalhando ao lado da Fundação e os corpos carbonizados fundidos em uma só massa—tudo parecia um borrão na mente de Jai agora, e tudo o pegara de surpresa como um caminhão em movimento. Qualquer que seja a operação que a Fundação elaborou, ela foi meticulosamente planejada e executada… como se eles estivessem esperando há anos pelo momento de finalmente atingir os Escoteiros onde doía.
E doeu para um caralho. Praticamente nada restava da base, exceto pelas carcaças queimadas dos veículos e o monte de corpos queimados no centro, que já havia começado a soltar uma nuvem constante de fumaça branca à medida que as chamas esfriavam.
Jai observou enquanto Mira olhava para o monte. Ela havia feito a maior parte do trabalho para parar o fogo e enterrar quem pudesse, mas ele não conseguia ver o rosto dela, visto que ela estava de costas para ele. Ele observou enquanto ela chutava um símbolo geométrico que ela traçou na terra com o pé na frente do monte, murmurando uma série de palavrões em voz baixa, antes de ir embora.
E então, tudo ficou em silêncio. Até o vento parou e escutou o barulho do cascalho sob os pés de Jai enquanto ele andava sem rumo, como se estivesse em transe.
Ela estava certa, de qualquer modo. Eles estavam acabados, e quanto mais tempo eles permanecessem aqui, mais tempo a Fundação teria para encontrá-los e matá-los, ou pior. Eles precisavam sair.
Mas o que eles fariam? Para onde eles iriam?
E a liderança deles? E os rodesianos? Pelo que ele sabia, o Hudson estava morto, desaparecido ou algo entre os dois. Os Escoteiros eram como uma galinha sem cabeça agora: sem líder, sem direção e lentamente sangrando até sua eventual morte, e ele nem tinha certeza do que deveriam fazer a essa altura. Se a interpretação de Mira sobre a Insurgência do Caos fosse para ser acreditada, então a Insurgência provavelmente nem estava ciente do fim deles.
Os rodesianos, semelhantemente, provavelmente também estavam indiferentes. Mesmo que houvesse a menor chance de que eles viessem ajudá-los e reforçá-los, Jai duvidava que eles fossem capazes de fazê-lo, muito menos que se importassem em ajudar dois insurgentes. Eles estavam travando uma guerra totalmente diferente e tinham sua própria infinidade de problemas para resolver.
E… A Grande Zimbábue. Eles falharam em sua missão e, dada a aparente falta de experiência dos rodesianos no combato ao anômalo, não havia praticamente nada que impedisse seu inimigo de terminar sua super arma e ativá-la. A aura de incerteza pairava sobre Jai enquanto ele contemplava, mas ele sabia que, se o zigurate estivesse operacional, apenas coisas terríveis aconteceriam.
Enquanto Jai observava o monte fumegantes de corpos esfriar e saía da base, ele se virou e viu que Mira havia se movido. Ela estava agora sentada de pernas cruzadas no topo da colina, com o rifle apoiado no colo. Ela olhava fixamente para algo ao longe, bem além da base, e estava murmurando algo ininteligível enquanto praticava alguns gestos esotéricos com as mãos.
Fosse o que fosse, Jai não se incomodou em perguntar—talvez praticar taumaturgia fosse um método de enfrentamento dela.
Ele subiu a colina e caminhou até ela. "Se importa se eu sentar ao seu lado?"
Ela suspirou. "Sinta-se livre."
Jai sentou-se ao lado dela e olhou além dela. Ele então percebeu o que ela estava olhando: um rebanho de gnus havia aparecido no horizonte, vagando pela savana como uma lenta onda de escuridão. Ocasionalmente, um deles parava, olhando para a base e a dupla na colina, antes de continuar junto com o resto do rebanho.
Ele invejava ser um gnu agora. Pelo menos eles não precisavam viver com medo do anômalo ou das Máscaras, ou qualquer coisa dessa natureza.
"Você acha que eles se importam com essa merda toda?" Perguntou ele em voz alta, apontando para os animais à distância. Era uma pergunta retórica, de qualquer modo, então ele não se incomodou em deixá-la responder. "Eu sei lá. Eles nos veem e provavelmente não têm ideia do que diabos eles estão olhando. E, ainda assim, continuam seguindo em frente, completamente ignorantes, mas simplesmente… bem. Indiferentes a tudo."
Jai parou novamente. "Tenho um cachorro em casa, um vira-lata chamado Jojo. Ele sempre parece saber quando algo está acontecendo, como se tivesse um sexto sentido ou algo assim. Talvez eles também saibam. Talvez estejam com medo."
Mira revirou os olhos diante de seu monólogo atipicamente pretensioso. "Quando que você virou filósofo, Jai?"
"Pensar não vai machucar ninguém," respondeu Jai, antes de se corrigir. "Na verdade, retiro o que disse, mas você entende o que quero dizer."
Ela sorriu por uma fração de segundo, antes de suspirar, esfregando a ponta do nariz por um momento. "A diferença entre nós e eles, Jay, é que eles não têm escolha sobre viver da maneira que vivem. Fomos abençoados—ou //amaldiçoados—com a sapiência—o dom do conhecimento e a habilidade de agir segundo ele. Pessoas como nós sabemos que as coisas não são como parecem, que as coisas podem simplesmente desmoronar a qualquer momento e que a normalidade é apenas uma ilusão para tudo. Eles não sabem."
Ela sacudiu a cabeça. "Eles só.. vivem, Jay. Não sei como dizer senão assim, cara. Eles não estão com medo. Eles não têm a capacidade mental para quantificar coisas como o anômalo ou—ou mesmo a maldita Grande Zimbábue, como nós. Eles não têm livre arbítrio para desafiar nada disso. Eles são apenas… animais."
"Livre arbítrio." Repetiu Jai, refletindo um pouco sobre a palavra. Talvez as coisas estivessem começando a fazer um pouco mais de sentido.
Ela parou, reiterando suas palavras novamente. "Eles são apenas animais, Jay. Não importa o que aconteça, eles simplesmente continuarão vivendo e seguindo em frente, porque seu instinto continua dizendo a eles 'Não congelem.' Talvez seja melhor começarmos a pensar como eles, Jay, e seguirmos o fluxo."
Ela bateu um dos suportes de tipoia contra a coronha do rifle e depois recostou-se na grama. "Sei lá, cara. É o que penso."
Jai ergueu uma sobrancelha. "'Começar a pensar como eles,' hein?" Ele bufou. "O quê, vivendo ao ar livre, sem se importar que o mundo inteiro deles possa simplesmente acabar com um *estalar* de dedos por causa da armazinha dos grandes zimbabuenses? Completamente alheios de que todo o seu modo de viver está em jogo, simples assim?"
"Sabe, Jai, você está atribuindo muito disso aos grandes zimbabuenses," disse Mira secamente. "Eles não são a única potência anômala com a qual deveríamos nos preocupar."
"Com quem mais deveríamos nos preocupar, então, hein? A GOC? A Fundação? Os malditos soviéticos?" Jai se virou para ela. "Diabos, os grandes zimbabuenses têm uma arma que apagará um país inteiro. Acho que tenho um motivo bom pra caramba para me preocupar com eles."
"E os civis deles?" Desafiou Mira. "Você não aprendeu com o combate no Vietnã que sempre há um custo civil na guerra? Quer você queira admitir ou não, eles têm tantos civis quanto combatentes. Você não pode só generalizar eles assim."
De certa forma, ela estava certa, mas Jai não tinha outra resposta. Ele cedeu com escárnio, girando de volta para encarar o horizonte. " No pouco tempo que te conheço, Mira, vi que você e eu concordamos em muitas coisas, mas nunca pensei que estaríamos discordando por causa de um maldito gnu."
"Se você conhecesse metade das minhas crenças, Jai, você provavelmente me estrangularia até a morte agora mesmo e me chamaria de herege."
Seu tom foi monótono, então Jai não tinha certeza se ela estava brincando ou falando sério quanto a esse comentário.
Ele calou a boca e continuou observando a massa de gnus rastejar de um lado para o outro de sua visão. Ele ouviu alguns deles enquanto emitiam grunhidos ocasionais conforme se moviam em seu grande rebanho, totalmente incontestados pelo terreno à sua frente. Depois de um tempo, o rebanho gradualmente começou a desaparecer no horizonte gramado, deixando mais uma vez os dois sozinhos no topo da colina com vista para sua base em ruínas.
Assim que isso aconteceu, Jai suspirou e se levantou. "E agora?"
"Bem, o mundo é sua ostra, meu amigo." Ela encolheu os ombros. "Minha missão acabou, Jai. Vou para casa."
"Sua" missão?
As palavras dela se repetiram em sua cabeça de novo e de novo enquanto ele estreitava os olhos. "Mas que caralhos? Mas a Grande Zimbábue está—"
"Você sequer sabe como chegar à Grande Zimbábue, Jai?" Perguntou Mira, se levantando enquanto pegava seu rifle e kit do chão. "Você sequer sabe onde fica a Grande Zimbábue? Eu não sei e isso é uma certeza, além disso, não me importo. Também nem preciso de uma resposta sua, porque sei que você não tem uma."
Antes que ele pudesse levantar a voz, ela colocou um dedo em seu rosto. "Nem me fale sobre as Etapas do Plano, também. Se você acha que eu sei como decifrar essa merda, você vai ter outra surpresa."
Jai parou por um momento. "Nós temos uma missão, Mira. Não podemos simplesmente abandoná-la, tem de haver algo que possamos fazer para manter essas pessoas a salvo das armas da Grande Zimbábue. Temos de encontrar uma maneira de voltar ao Comando, talvez nos reagruparmos com alguns sobreviventes. Nós só— temos que fazer algo—sentar e esperar não é o certo."
Ela zombou, imitando a voz dele por um momento enquanto revirava os olhos. "Tch, 'manter pessoas a salvo'—sabe, quanto mais você mantém esse tipo de conversa, Jai, mais estou começando a pensar que você se encaixaria perfeitamente na Fundação—ou pior, na Coalizão."
"Mas não é isso que fazemos? Salvar o mundo, manter as pessoas a salvo? Usar anomalias contra os próprios monstros que querem nos matar?" Jai parou, boquiaberto por um instante. "Sabe, nos últimos dois malditos anos, ninguém me deu uma resposta clara sobre o que é a Insurgência. Talvez seja isso."
Ela ficou em silêncio por um momento, mas depois gesticulou para si mesmo com a palma da mão fechada. "Só estou dizendo. Minha missão está concluída. Já passou pela sua cabeça que o Plano é multifacetado, Jay?"
Ah, sua vadia do caralho.
Jai olhou para a mulher, sentindo o punho se fechar, mas não por vontade própria. "Você é de outra divisão."
"Como eu disse, você aprende rápido, então terei que elogiá-lo por isso." Ela passou por ele, dando tapinhas em seu ombro e olhando em seus olhos com um sorriso malicioso. O olhar dela estava aprofundado, quase relaxado, e o atingia como um predador, enchendo-o com uma onda de sentimentos. O olhar foi algo que Jai interpretou como parte ameaça, parte convite e parte engano, mas ele provavelmente estava interpretando mal seus próprios sentimentos. Ele nem tinha certeza se sua suposição estava correta—a mulher era um enigma completo.
Ele ficou parado enquanto ela passava por ele, sabendo que não tinha como ele ter chance contra a taumaturga, muito menos tocar um dedo nela. O punho dele relaxou e ela se virou para ele, antes de estender as duas mãos encolhendo os ombros. " Então, você só vai desistir e ir embora? Que se foda. Por mim, tudo bem. Para onde devo ir, então?"
"Para casa, Grande Zimbábue, a natureza. Não ligo. Você é quem tem o livre arbítrio." Mira encolheu os ombros, pendurando o rifle no peito e apoiando os braços em cada extremidade da arma. "Não há nada que impeça você de simplesmente ir embora, sabe."
Então, o que o impedia de partir?
Seria isso um senso de dever? Uma lealdade a Hudson e à Insurgência? O Plano não estava completo—ele nunca esteve—e pessoas como ele precisavam estar lá para ajudar a concretizar-se, para ver a vitória final da Insurgência, seja ela qual for. Ainda havia trabalho a ser feito—Jai simplesmente não entendia o que era… ou talvez não conseguisse entender nada.
As palavras de Mira o empalavam—talvez ele tivesse escolha, e uma delas seria ir para casa. Ele deixaria a Insurgência para trás e retornaria a uma vida atrás da Máscara, onde não seria necessário se preocupar com forças indescritíveis se cercando todo dia.
No entanto, essas coisas simplesmente não podiam ser esquecidas, assim como as memórias do tempo no Vietnã. Talvez fosse melhor para ele confrontá-las, em vez de esquecê-las e empurrá-las para o fundo da mente. Talvez essa fosse uma alternativa melhor do que simplesmente engolir tudo e viver em algum mundo novo e anômalo.
//Tak tak tak tak tak tak tak //
Mira se atentou e se virou para ouvir o som vindo da base, no momento em que a pistola de Jai saiu do coldre. Antes que ele soubesse, ambas as armas deles estavam apontadas para o que restava do edifício do comando central… onde algo estava girando e clicando.
"Parece que ainda não estamos fora dessa." Murmurou Mira.
"Vou lá ver." Jai desceu a colina e correu em direção ao complexo. Sua pistola em sua mão dominante enquanto ele passava pelo lado esquerdo da base, antes de flutuar para a direita—nada estava à vista, mas o barulho estranho ainda podia ser ouvido vindo do edifício pré-fabricado em ruínas.
tak tak tak tak tak tak
Ele passou a segurar a pistola com as duas mãos enquanto se aproximava dos escombros, mirando na direção deles e avançando lentamente. "Está vindo daqui."
"Se afaste."
Ele obedeceu e observou Mira dar um passo à frente, pendurando o rifle nas costas enquanto traçava outro símbolo triangular ao seu redor na terra com o pé. Uma luz sobrenatural e um padrão espiral que se mexia se reuniram em suas palmas enquanto ela apontava as mãos para os escombros, a cor da luz mudando entre o que ele presumiu ser rosa, vermelho e branco.
Ele não percebeu que ela estava murmurando lentamente algo em voz baixa até ela falar algo ininteligível ao nível de fala. Uma rajada de vento quente passou sobre eles, quase derrubando Jai quando uma impressionante nuvem de poeira foi lançada dos restos do edifício do comando… junto com todos os destroços em si.
Escombros, estilhaços e pedras foram jogados como brinquedos de criança para o outro lado da base, deixando a fonte do barulho exposta.
"Um teletipo." Jai murmurou em voz alta, abaixando a arma.
"O teletipo do Hudson." Mira o corrigiu, chutando sua runa com o pé. Os dois então se entreolharam, uma troca silenciosa de palavras ocorrendo como se tivessem entendido o que essa descoberta significava.
Engolindo em seco, Jai ergueu a pistola e se aproximou da máquina ele mesmo.
Ele não se parecia com nenhum tipo de computador ou máquina de escrever, o que significa que devia ser uma criação proprietária. Ele era grande, volumoso e feio; grande demais para ser considerado uma máquina d e escrever típica de mesa. Ele também tinha um mecanismo estranho na parte superior que imprimia cada letra na página com um som de tak tak deliberado, quase como uma máquina de escrever.
Jai percebeu que a máquina estava digitando um monte de letras e palavras aleatórias no topo da página, talvez algum tipo de cifra ou criptografia, mas ele não era um especialista em comunicações.
Ele só olhou para a máquina, lentamente abaixando a arma. "Mas que p— …você sabe o que essa merda quer dizer com 'cúmulo da loucura moral,' Mira?
Ela sacudiu a cabeça. "Espere um segundo."
TAK TAK TAK TAK TAK TAK TAK
Ele observava enquanto a máquina continuava digitando uma sopa sem sentido de palavras. O fato dela estar fazendo tanta coisa sem estar conectada a algum tipo de fonte de energia já sugeria que era anômala, mas não muito estranha para desviar a atenção de Jai do que ela estava digitando.
Jai forçou a vista enquanto se aproximava do teletipo, como se fosse para digitar algo, e então parou quando a máquina pareceu parar. Ele olhou por cima do ombro para Mira, que estava igualmente perplexa e confusa com isso, e então quase atirou na coisa quando ela voltou à vida.
Seu mecanismo de digitação estava funcionando a todo vapor, o tak tak aumentando em velocidade e volume, quase lembrando os disparos de uma metralhadora. Jai piscou, o queixo caído, enquanto letras começavam a formar frases e as frases começavam a formar sentenças.
No canto superior direito do documento, um logotipo havia sido impresso e Jai viu palavras vermelhas em negrito aparecerem na página pela primeira vez.

CONTINGÊNCIA DE EMERGÊNCIA EC-73/001
ORDENS SUPLEMENTARES A SEGUIR
AGUARDE PARA RECEBER NOVA DIRETIVA
"Essa insígnia," Murmurou Jai. "Só vi essa insígnia uma vez. No cartão que o Hudson me deu quando me recrutou."
Para uma mulher relativamente impassível, ele viu que os olhos de Mira transmitiam confusão, curiosidade… e então se arregalaram, quando ela percebeu finalmente o que ela era. "Jai, essa é a insígnia da Insurgência."
"Achei que a nossa fosse preta com um—"
"Não." Ela sacudiu a cabeça. "Divisões diferentes, mesmo objetivo, se lembra." A voz dela se apagou. "Mas esta… esta é A Insurgência do Caos. Aquela que se separou da Fundação décadas atrás, aquela da qual nossa "Insurgência" é apenas uma sombra, e eles estão nos dando novas ordens."
Sem demora, a máquina começou a escrever novamente.
12. ETAPA EC-73/005:
Agentes classe-Alfa Jai e classe-Beta Mira devem eliminar o comandante rebelde classe-Gamma, Hudson Croix, na Grande Zimbábue.
ZZZZZZZZIIIIIIIIIIP
A máquina se desligou naquele momento, seu aparelho de digitação mudando para o lado esquerdo do mapa. Jai pegou as ordens com uma mão e observou o texto, lendo-o de novo e de novo em sua mente enquanto as coisas começavam a clicar.
"…O que?"
Mira se aproximou por trás. "O que está escrito?"
"Aqui diz que o Hudson se rebelou. Querem que a gente vá para a Grande Zimbábue," Murmurou ele. "E querem que nós matemos ele." Outra pausa. "Nós temos que matar o Hudson."
Ela arrancou o papel dele e o leu na metade do tempo que ele levara, antes de devolver o documento a Jai. Ele foi dado a ele mais como um empurrão que o atingiu bem no peito, e ele imediatamente soube por quê. Mira soltou uma risada rápida e inapropriada, como se tivesse ouvido uma piada hilária, e se afastou dele.
"Tem um erro de digitação," Acrescentou ela cinicamente. "Eles querem que você mate o Hudson."
"Não é engraçado." Murmurou Jai. "Essa merda é séria, Mira. São as novas ordens, da própria Insurgência, caralho. Temos um trabalho a fazer."
Ela apontou um dedo para ele. "Você acha que eu vou arriscar minha vida em alguma besteira absurda, Jai? Depois daquela emboscada—onde eu quase morri—veja bem, tentando salvar sua pele? E agora… e agora estamos indo atrás de um homem que provavelmente conseguiria nos matar com a porra dos olhos fechados? Você está pelo menos ouvindo você mesmo falando, Jay?"
Sua voz falhou por um momento, antes de seu vigor voltar com força total. "E… e você nem está questionando que está recebendo ordens para eliminar seu mentor?" Ela zombou sarcasticamente. "O que, os fuzileiros navais te doutrinaram a seguir cegamente suas ordens um pouco demais?"
"Minha experiência com os Fuzileiros é irrelevante. Matar o Hudson é possível," Jai falou sem pensar. "É só… é só que parece que é o que eu deveria estar fazendo. É como se fosse natural, sabe? Não consigo descrever o sentimento."
"Olha, matar o Hudson nem é o ponto, Jay." Ela suspirou alto. "Isso foi feito para limpar a lousa—uma tabula rasa. Assim como você assinou todos aqueles acordes de confidencialidades com os federais, estamos sendo desativados pela Insurgência por meio de uma missão suicida contra o Hudson. Tenho feito essa merda há mais tempo que você, eu sei muito bem quando não vou seguir algumas ordens enigmáticas de algum Engenheiro que provavelmente nem existe, só para poder ser descartada pelo Comando Delta porque sou dispensável. Você é dispensável."
Jai franziu a testa. Era engraçado: ela parecia exatamente com como ele estava dois anos atrás.
"A emboscada te quebrou, não foi." Ele resmungou. A frase foi formulada mais como uma afirmação do que como uma pergunta.
Mira revirou os olhos. "Claro que ela me quebrou, porque minha missão de observar os Escoteiros do Hudson—de observar vocês, de ser a taumaturgazinha do Hudson… está acabada. Tudo está acabado Não tem mais sentido em eu estar aqui. O ataque da Fundação estragou tudo e arruinou meus planos, e agora percebi o quão infinitesimal sou no grande esquema das coisas. Quero viver, abraçar o anômalo, ser eu mesma, não ficar presa a alguns comandantes equivocados que nem sequer sabem a natureza de suas ordens,"
Ela se virou pra Jai, com um fogo nos olhos que ele nunca tinha visto antes. "Você não quer viver?"
Houve um silêncio por mais um minuto enquanto ele e Mira ficavam parados ali, olhando um para o outro e o documento em suas mãos. Eles nunca perceberam quanto tempo havia realmente passado até ouvirem o som de pneus contra uma estrada de cascalho e se virarem em direção à entrada da base.
O rifle de Mira se levantou. "Temos companhia."
Um Land Cruiser branco entrou na base, suas janelas escuras demais para que Jai pudesse ver quem ou o que estava dirigindo. Enquanto apontavam as armas para o veículo e gesticulavam para que parasse, Jai parou, ouvindo o som da música vindo de dentro do veículo enquanto ele desacelerava até parar
"Volte, Jack, faça de novo, a roda girando e girando.. Volte, Jack…"
Steely Dan? Jai pensou consigo mesmo. Alguém tinha bom gosto.
O motor—e a música—desligou e então a porta do motorista se abriu. O cano de uma metralhadora saiu junto a cabeça de um homem branco com cara de soldado de cabelos loiros penteados e um bigode espesso. Ele usava uma camiseta totalmente vermelha e um colete à prova de balas verde-oliva aberto, além de algo que Jai definitivamente já tinha visto antes—um lenço krama cambojano enrolado em seu pescoço.
Ele saiu do veículo e Jai e Mira relaxaram as armas ao verem ele colocar as mãos sobre a metralhadora RPK de aparência ameaçadora pendurada em seu peito. Ele se elevava provavelmente alguns centímetros sobre Jai, e seu olhar imediatamente se voltou para ele. "Ei, você A lua negra uiva?"
Jai ficou parado, a mão estendido tremendo enquanto avaliava o homem. Se esta fosse uma senha corrente, ele não sabia o que responder, então encolheu os ombros. "Quem pergunta?"
A porta do passageiro se abriu e, dela, saiu um homem branco, magro, de cabelos castanhos, em roupas civis e com um jaleco branco por cima de tudo. Ele tinha mais ou menos a idade de Jai, possivelmente bem mais jovem, e usava um boné de beisebol dos Astros, alguns fios de cabelo saindo da parte de baixo do boné.
Ele cambaleou para fora do veículo, se atrapalhando com a Uzi que segurava em uma das mãos. Jai achou que a arma parecia um pouco grande demais para as mãos, ou ele parecia magro demais para segurar uma. A maneira como seus olhos pareciam se movimentar rapidamente sob as lentes amarelo-limão dos óculos de aviador sugeria que ele estava nervoso.
Jai e Mira se entreolharam. Eles ainda tinham menos poder de fogo, mas pelo menos não estavam mortos.
O homem magrelo de óculos falou primeiro. "Ei, Whiplash, e-esses são os caras ou…?"
"Não sei, Richards." O loiro respondeu, provocativamente. "Talvez você devesse perguntar a eles você mesmo."
Jai e Mira se entreolharam enquanto o tal de "Richards" se aproximava lentamente, abaixando sua Uzi para seu lado. "Oi. Hum. Vocês são Jai e Mira?"
Jai repetiu o que havia dito antes, estreitando os olhos. "Quem diabos está perguntando?"
"O Comando Delta."
Sua visão disparou para o homem branco musculoso, o tal de "Whiplash," segundo Richards. Ele colocou as mãos nos bolsos da calça jeans enquanto caminhava ao lado de seu associado, e sua voz era baixa e lenta, quase como se ele estivesse relaxado, apesar de tudo.
"Sou o agente Whiplash—tudo maiúsculo nos documentos, a propósito—em nome do Comando Delta. Este é o Pesqui-Doutor Richards, da divisão Pesquisa e Desenvolvimento do Clube das Armas." Ele parou por uma fração de segundo. "O Comando Delta está procurando por você—ou melhor, eles estão procurando pelo seu comandante. Hudson. Onde está ela?"
"Ele parece muito jovem para ser um doutor," Brincou Mira, para o desgosto de Richards.
"Minha pergunta," Disse Whiplash, falando em um tom mais grave. "Ela continua sem resposta."
"Bem, se vocês estão procurando pelo Hudson, vocês estão sem sorte, amigo." Respondeu Mira. "Ele se foi, e não fazemos ideia de onde diabos ele está. Se eu fosse apostar, ele provavelmente está perdido na selva tentando encontrar a Grande Zimbábue ou algo assim—ele nunca nos deu nenhuma informação sobre o lugar, de qualquer modo, além do nome."
"Então estamos sem sorte," Murmurou Whiplash. "E perdido na selva também não parece muito longe da realidade, conhecendo o Hudson. Vocês dois ainda não perceberam, não é? O que tem acontecido ultimamente?"
"O que aconteceu?" Jai perguntou. "Estamos sendo liberados ou a luta ainda continua?"
"Você perdeu muita coisa, amigo." Whiplash começou, sacudindo a cabeça. "A Insurgência e os rodesianos cortaram as ligações. Já ouvi relatos de alguns confrontos e operações uns contra os outros — nada muito grande, mas vai ficar muito pior."
Ele apontou um dedo para eles. "Enquanto isso, seu chefe pegou o Sino da Entropia e deu no pé para só Deus sabe onde. Agora, o Comando Delta está incumbindo vocês de abater o homem. Parabéns pela sua nova missão como assassinos."
O queixo de Jai estava no chão enquanto Mira suspirava, xingando para si mesma. Ele soprou pelas narinas. "Inacreditável. E agora?"
"Contarei mais a vocês no caminho para o Clube das Armas," Continuou Whiplash. "Por enquanto, vocês vão entrar no meu carro e eu vou tirar vocês daqui, antes que a Fundação realmente apague este lugar do mapa."
Como que para encorajá-los, ele abriu a porta e empurrou o banco para a frente para permitir que os dois entrassem nos bancos traseiros apertados do Land Cruiser. "Não se acomodem muito. Vocês têm um longo dia pela frente."
***

À frente deles havia um grande edifício cor de creme com telhado de palha, situado numa clareira em torno de vários trechos de acácios. Fileiras de árvores ladeavam a estrada de terra que levava à cabana remota, terminando em uma entrada circular com outro Land Cruiser estacionado na frente do complexo. Num poço próximo, atrás do edifício, um grupo de antílopes levantou a cabeça momentaneamente, avistando o veículo e olhando para ele enquanto ele parava.
Para um chamado "Clube das Armas," Jai achava que o lugar certamente se encaixava na descrição de um "clube," embora a falta de armas até agora o decepcionasse um pouco. Apesar de tudo isso, ela ainda estava um pouco cauteloso em ir junto com Whiplash e Richards—diabos, a essa altura ele sabia mais sobre Mira do que sobre os outros. Isso dizia muito, sem dizer nada, que ele confiava mais nela do que neles.
O fato de eles ainda estarem vivos, entretanto, era o suficiente para que ele entendesse que o Comando Delta pelo menos ainda precisava deles—se fosse para acreditar na Mira, é claro. Desde a discussão, eles nunca trocaram uma palavra diretamente entre si, nem mesmo durante a longa viagem até o Clube das Armas. Talvez ela precisasse de algum tempo para se acalmar.
"Chegamos." Anunciou Whiplash, estacionando o veículo e saindo, seguido por Richards. Mira saiu logo em seguida, deixando Jai como o último a sair do veículo.
"Então, este é o seu esconderijo? Este é o lugar mais bacana que já estive em meses, talvez até anos." Mira olhou para a fachada frontal do edifício, dando um hmph impressionado. Uma placa na frente em inglês indicava que ele pertencia à empresa "Conestoga Independent" como uma cabana de caça, um pseudônimo bastante direto.
"O aluguel e a manutenção não são, ahn, de graça, sabe…" Richards foi até a porta da frente, trazendo um cordão de chaves tilintantes enquanto destrancava a porta. "Ah, ahn, inclusive. E-enquanto, ahn, vocês estão aqui, pessoal… vocês estão, ahn, sob as regras do Clube das Armas."
Jai inclinou a cabeça. "Que tipo de regras, exatamente?"
"Todo mundo aqui segue as regras dele, incluindo eu," respondeu Whiplash. "Não toque em nada a menos que ele diga."
A porta foi destrancada e, quando Richards a empurrou, Jai foi recebido por uma refrescante rajada de ar frio em seu rosto. A fachada do edifício refrigerado era tão padrão e sofisticada quanto uma cabana de caça poderia ser, embora o bar totalmente abastecido, os bustos de animais taxidermizados e as armas de fogo antigas penduradas nas paredes fossem suficientes para despertar seu interesse.
"Vocês têm um lugar bacana," Jai balançou a cabeça, andando pelo chão de ardósia enquanto acenava com a cabeça para alguns dos trabalhadores. "Vocês têm alguma arma para nós ou o quê?"
Whiplash bufou. "É, sobre isso."
Jai parou para olhar para Richards e Whiplash, que estavam descendo um lance de escadas até o que deveria ser um porão. A presença de uma parede de tijolos no final da escadaria, entretanto, parecia sugerir que as escadas não levavam a lugar nenhum.
Ele soprou pelas narinas, olhando para os homens dando passos lentos e metódicos em direção à parede. "Cara… que porra é essa merda?"
"Pé direito primeiro," Explicou Richards, "E certifique-se de visualizar uma porta à sua frente a cada passo. Um passo de cada vez."
Ele piscou—e então Richards e Whiplash desapareceram. Ele olhou por cima do ombro para Mira, que apenas mostrou as mãos, mostrando que suas palmas estavam vazias. "Não tenho nada, Jay. Vá em frente."
"Devemos confiar neles?"
"Você decide, mas eu teria cuidado com eles. Pessoalmente, tenho problemas de confiança."
Jai riu. "É, eu sei."
Com o pé direito à frente, ele desceu as escadas com cuidado, agarrando-se firmemente ao corrimão. Um passo se transformou em dois e depois dois se transformaram em dez, mas seus olhos estavam concentrados na barreira aparentemente impenetrável à sua frente.
Ele imaginava uma porta à sua frente enquanto chegava aos últimos degraus, se imaginando caminhando em direção a ela e movendo a mão para frente, como se para empurrá-la e abri-la. Ao sentir o ar mudar ao seu redor, Jai girou a maçaneta e abriu a porta, passando pela entrada para a instalação subterrânea.
A instalação aparentemente subterrânea em que eles entraram era pequena, mas avançada, como se tivesse sido feita há dezenas de anos com uma arquitetura que hoje é considerada moderna. Luzes fluorescentes zumbiam acima deles, o corredor retro-futurista à frente deles era repleto de múltiplos escritórios e espaços de armazenamento, alguns cheios de computadores zumbindo que ocupavam grande parte do espaço da s ala.
Jai soltou um assobio enquanto ele e Mira continuavam, alcançando Richards e Whiplash. "Uau."
Os espaços de armazenamento, embora quase todos vazios, tinham várias bugigangas e itens dentro, indo desde aparelhos de rádio amador e espingardas de aparência inócua a até espadas que provavelmente pareciam poder se encaixar em alguma história de fantasia. Ele já sabia que muitos desses itens, assim como o micro-ondas que ele usou para matar o monstro no dia anterior, provavelmente tinham algum tipo de pegada estranha ou detalhe em suas habilidades—mas seu potencial destrutivo e tático não deveria ser subestimado.
"Então, vocês vão deixar ele testar algumas dessas coisas em campo ou o quê?" Zombou Mira, observando Richards destrancar a porta de um arsenal à frente deles. "Sabe, Whiplash, o Jai está implorando para experimentar o que quer que você tenha que o deixe matar o Hudson com eficácia."
Jai revirou os olhos e gemeu, se virando para a mulher. "Você pode parar com isso?"
"Só estou afirmando o óbvio, Jay."
"Olha—" Ele sacudiu a cabeça. "Só… você está certa, droga—não tenho a mínima ideia de onde aquele homem está agora," Ele fez uma pausa, gesticulando para uma metralhadora de aparência normal que estava em um suporte no arsenal. "E todo esse material bélico é legal e tal, mas você não pode esperar que eu use uma M60 como se fosse uma bússola ou algo assim. Ela vai ser tão útil quanto um martelo na selva."
Richards suspirou e reprimiu uma risada, apoiando a mão sobre a metralhadora enquanto olhava para o nada. "Símile idiota à parte… eu, ahn, acho que teremos que fazer um inventário por enquanto, ver com o que vocês podem trabalhar. Então!"
Seu olhar se voltou para Mira. "O que você faz?"
"Taumaturga de combate." Disse ela, cruzando os braços. "Só preciso mesmo de um rifle."
"Eeee você. " O dedo de Whiplash se voltou para Jai, "No que você é bom em particular, Jai? É atirador? Teve treinamento militar?"
"Eu me qualifiquei como atirador especialista nos fuzileiros navais. Ia me tornar franco-atirador," Explicou Jai. "Se vocês tiverem algo que eu possa gostar, me avisem."
Sua voz diminuiu ao ver Whiplash murmurar alguma coisa, antes de se virar para o jovem de óculos amarelos. "Atirador experiente… O que'cê acha, Richards? Vamos dar o Ativo para ele?"
"Não, eu não vou dar a ele a porra do Ativo, Whiplash."
"O que mais ele vai usar, uma faca? Eu diria que é justiça poética."
"O Ativo é perigoso e você sabe disso."
"Mas é uma boa chance de cumprir o Plano. Literalmente. Tudo o que precisamos é da sua aprovação…"
"Não quer dizer não!"
Vendo que os dois estavam ocupados demais discutindo para ajudar, Jai jogou as mãos para o alto e saiu do arsenal. "Certo, vou só dar uma olhada por aí e ver se algum dos Itens que vocês têm vale meu tempo."
Voltando para o corredor, Jai suspirou e começou a examinar os múltiplos espaços de armazenamento e a observar seus codinomes, muitas vezes absurdos e que soavam bobos. "Caralho."
Havia todo tipo de ferramentas e armas estranhas atrás dos vidros aramados das salas; alguns pareciam tão mundanos quanto a pistola em seu quadril, enquanto outros pareciam a manifestação de um desenho do diário de uma criança. Alguns pareciam quebrados, outros pareciam avançados demais para 1973, mas todas as sinopses de seus efeitos não pareciam chamar sua atenção.
Havia, porém, uma sala que continha apenas uma mesa de metal. Em cima dela, entretanto, havia um estojo trancado com cadeado para o que ele presumiu ser algum tipo de rifle. Ao lado havia várias caixas de metal com munição com texto em russo estampado. A sala em si não tinha identificação e era anormal, mas a placa ao lado da porta indicava um codinome sinistro: "O ATIVO".
Abaixo da placa, um aviso; um símbolo triangular amarelo com um olho preto no meio olhando para ele.
Jai sentiu uma presença atrás dele e olhou por cima do ombro para ver Mira ao lado dele novamente. "Sabe, eu não quis dizer aquele último comentário, Jay."
"Pensei que você não fosse mais falar comigo," Jai ergueu uma sobrancelha, encarando totalmente a mulher. "O que aconteceu com voltar para casa?"
"Bem, verdade seja dita…" Ela sorriu. "Não vou caminhar 500 quilômetros só para chegar a Salisbury, seja lá onde fique em relação a nós. Posso ficar por aqui um pouco, antes de você sair para matar o Hudson."
"Então, você mudou de ideia."
"Poderia se dizer isso."
"Hmm.' Ele balançou a cabeça lentamente. "Bem, isso é bom, eu acho. Vou continuar andando, essa coisa está me dando energia ruim."
Ao virar a esquina, porém, as narinas de Jai foram subitamente bombardeadas por uma enxurrada de aromas que ele reconheceu imediatamente. Os olhos de Jai se arregalaram enquanto ele corria pelo corredor, seu nariz o conduzindo pelo centro de uma passagem em formato de T que levava a outra sala grande.
"Que diabos é isso?" Ele olhou para a porta de onde o aroma parecia vir. "Você sente esse cheiro, Mira? É como se… eu pudesse sentir o cheiro da minha casa, da comida da minha mãe, da selva, da morte…"
"Você está sentindo esse cheiro?" Mira torceu o nariz enquanto cheirava. "Tudo o que sinto é cheiro de madeira, baunilha e grama cortada."
Os dois se entreolharam por um momento e depois para o corredor de onde vieram. Eles viram Whiplash e Richards se aproximando, este último avançando desajeitadamente.
Com uma pausa dramática, Richards gesticulou para a porta. "Isso… seria a SUBMAL."
Jai inclinou a cabeça antes de perguntar, sem cerimônia, "Que porra é SUBMAL?"
"Substância Memetoamnéstica Alucinógena," Explicou o homem magricela. "Essencialmente um amnéstico reverso—um mnéstico, se você preferir—ahn, que os membros originais da Força-Tarefa Móvel Alpha-1 usavam para 'melhorar a consciência situacional,' veja bem. A razão pela qual você está se lembrando de cheiros do passado é porque os mnésticos alvejam diretamente as memórias do usuário, ahn, dando-lhe uma memória quase total e uma percepção muito além da capacidade humana."
"Subs— Português, por favor?" Pediu Jai. É certo que ele era estúpido demais para adivinhar o que isso significava.
"Na época em que a Insurgência se separou da Fundação, alguns de nossos fundadores roubaram a substância que vocês estão cheirando agora," Explicou Whiplash. "Eles não só perceberam que o SUBMAL nos dá a capacidade de perceber com clareza o passado, mas também o presente. Na dosagem certa, o SUBMAL melhora a retenção de informações de indivíduos, induz a clarividência e até mesmo a presciência."
"Você está me dizendo que posso ver o futuro com isso?" Disse Jai. "Por que não temos usado isso, então?"
"Porque ela foi descontinuada e não a fazemos mais. Ela é perigosa e cara." Acrescentou Whiplash. "Ser exposto a um risco cognitivo sob influência do SUBMAL alterará irreversivelmente seu estado mental, deixando você totalmente comprometido. Sem mencionar que um grama dessa coisa custa uma fortuna para ser desenvolvido. Há um motivo pelo qual esse negócio era um luxo primordial para os cincos e seus principais puxa-sacos."
Jai parou para pensar por um momento enquanto as partes se abriam. Parte dele queria acreditar que entrar no quarto seria uma perda de tempo com todas as supostas desvantagens do SUBMAL, mas havia algo mais tentando atraí-lo… e cheirava à casa dele.
O interior da sala parecia um cruzamento entre um laboratório e uma estufa, com uma infinidade de plantas suspensas visíveis acima das estações de trabalho. O cheiro em particular vinha de uma das estações de trabalho; uma instalação química dentro de uma capela de exaustão, onde um frasco de titulação cheio de um líquido laranja forte ficava sob uma coleção de frutas e vinhas estranhas. O líquido obviamente estava sendo fervido e o vapor subia até cobrir as folhas das plantas e as cascas dos frutos.
De cerângulo, Jai sentiu o cheiro de sua velha igreja; um odor levemente mofado e amadeirado, misturado com o perfume de sua mãe. Ele podia ouvir a voz de um pastor várias fileiras à sua frente, insistindo sobre tentações, pecados, bem e mal, ad nauseam, conectando-os às injustiças que enfrentavam no presente. O homem falava com pura emoção e vigor na voz; ele não estava lendo de um teleponto—não, ele era apaixonado pelo que fazia.
Virando-se para a direita, Jai olhou para o cabelo preto da mãe dele. "Do que ele está falando, mamãe?"
Mira imediatamente recuou alguns passos. "Do que caralhos você está falando, Jay?"
"Ah—" Jai tropeçou para trás, apoiando-se em uma das estações de trabalho. "Ah merda. Desculpe. Pénsei que você fosse—" Ele parou, como se estivesse tendo um momento de clareza. "Talvez seja exatamente disso que eu precise."
"Ou… talvez precisemos consertar a ventilação e o selante da capela." Rosnou Whiplash.
Revirando os olhos ao ouvir o coice do colega, Richards deu um longo suspiro. "Se você estiver seriamente pensando em levar o SUBMAL para esta missão, Jai, receio que eu não possa deixar você fazer isso. Você acaba de ter uma reação adversa só de inalar uma pequena quantidade dele, não foi?"
Adversa? Jai franziu a testa. "Eu me sinto bem, cara."
"Mas você nem sabia onde estava, ou quando estava… naqueles… quanto tempo foi…" Ele fez uma pausa para dar uma olhada no relógio. "…Sessenta segundos, certo? Se… se você, ahn, tomar doses maiores dele, quem sabe o que aconteceria com você?"
Whiplash franziu a testa. "Richards, você está sendo irra—"
Novamente, Jai revirou os olhos, interrompendo o homem. "Eu te disse. Estou bem."
Richards tamborilava os dedos ansiosamente, ignorando os dois. "Não. É… bem, isso é algo que ainda não foi totalmente compreendido, admito. É-é um risco de segurança, também. Isso arrisca comprometer você. Se sua mente está aqui… e seu corpo lá… chega um momento em que você não consegue controlar as duas coisas ao mesmo tempo. Você entende por que isso arrisca…"
A atenção de Jai ainda estava fixada na capela de exaustão enquanto ele abafava as vozes de Richards, Mira e Whiplash até soarem como se estivessem atrás de uma camada de drywall. Seus olhos percorreram as bordas da estação de trabalho parcialmente embutida na parede. Ela estava problemática, concluiu ele, a julgar pelos traços de vapor que escapavam de certos pontos da capela que não estavam devidamente fechados, mas essa observação não importava de fato.
Quanto mais ele observava o líquido no frasco, mais ele conseguia vê-lo começando a mudar de tonalidade, passando da cor tangerina para verde limão. A reação não fazia sentido—mesmo para alguém que não era um químico—mas, de qualquer modo, não importava. Ele identificou algo mais importante.
A maneira como o líquido borbulhava dentro do frasco, batendo violentamente no vidro—ele o lembrava dos movimentos do fogo.
Ele sentiu suas mãos segurando um dossiê pardo, olhando para o conteúdo enquanto o abria. Palavras e símbolos borrados soletravam um nome que ele jurava ter visto por uma fração de segundo: Masvingo.
Jai lentamente se virou para os outros na sala, todos olhando para ele com expressões mistas em seus rostos. Sua demanda foi curta, pontual e direta ao ponto. "Me dê um pouco."
"Puta merda." Disse Whiplash, cruzando os braços. "Você sequer sabe por quanto tempo você ficou apagado?"
"Eu não me importo. Preciso de um pouco disso."
O homem pareceu morder o interior da bochecha enquanto baixava as mãos, uma das quais tocava uma arma em seu quadril. Jai percebeu isso e pensou em pegar a sua. "Mesmo que eu pudesse dar aquilo para você, Jai, você precisaria de autorização do Comando Delta—"
"Dois anos atrás, estive numa incursão a um posto da Grande Zimbábue com os Escoteiros na Zâmbia," Começou Jai. "Peguei um dossiê da Fundação sobre a Grande Zimbábue que entreguei para Hudson. Antimemético. Ele conseguia ler ele, porque o Hudson estava sob efeito de mnésticos. Eu não."
Ele fez uma pausa. "Eu preciso me lembrar do que vi nele. É assim que posso encontrar a Grande Zimbábue. É assim que posso encontrá-lo e matá-lo."
A sala ficou em silêncio por mais um minuto desconfortável enquanto Jai sentia todos os sessenta segundos passarem. E se ele estivesse pensando demais nisso? E se Richards estivesse certo sobre os efeitos colaterais adversos? Todos reagiam de forma diferente a certas substâncias—esta era a verdade incontestável, e todos sabiam disso. Era como pegar alguma droga que ele já tivesse visto em sua vida antes e dar a ela a permutação de "altamente explosiva e perfurante." Independentemente do efeito, ela iria derrubá-lo com força.
Ele quase ridicularizou sua própria analogia horrível. "Bem? Isso é 'autorização' alta o suficiente para você?"
Whiplash olhou para Richards. "Se for a única chance dele, eu digo que o atirador deveria tentar."
Eventualmente, o "doutor" jovem cedeu e passou por Jai e Richards, vasculhando uma das mesas em busca do que parecia ser uma máscara de gás do exército, depois ele foi até a capela de exaustão. A expressão em seu rosto e o tom de sua voz revelavam pura decepção. "Tudo bem. Para que conste, não sou responsável pelo que acontecer com ele."
***

O brilho laranja profundo do sol poente derramava-se no horizonte, banhando tudo na varanda dos fundos do Clube das Armas com uma tonalidade de cor semelhante. Todos os animais do poço próximo já haviam partido, mas Jai mantinha os olhos no horizonte, observando a forma como os vermelhos e azuis do pôr do sol pareciam se misturar com as esparsas nuvens brancas.
A porta se abriu atrás dele. Jai se virou e viu Mira saindo para a varanda, caminhando até a escada. Ela deu uma olhada no isqueiro zippo nas mãos de Jai, junto com algo do tamanho de um cigarro, enrolado em um maço cilíndrico de papel branco.
Ela riu dos objetos. "De todas as maneiras que pensei que você usaria essa coisa, não esperava que você fosse fumar ela."
"Já vi caras no Exército fumando maconha com espingardas antes," Ele encolheu os ombros. "Acho que isso é muito mais simples do que só me injetar. Se não for," Ele parou, abrindo o isqueiro com o polegar. "Parece legal, eu acho. Eu não gosto de agulhas mesmo."
Enquanto ela se sentava ao lado dele, Jai encontrou outro objeto familiar em seu colo, olhando para a parte de baixo do boné de patrulha com um olhar vazio e confuso. Enfiado dentro de uma bolsa abaixo do botão do chapéu havia um pequeno saco plástico transparente com o que pareciam ser selos postais dentro dele. Olhando mais de perto, eles pareciam mais mata-borrões do que qualquer coisa.
"Que porra é essa?" Ele ergueu uma sobrancelha. "Estou aqui para encontrar o Hudson, não fractais no sol."
Ela sorriu levemente. "Não. É para o campo, Jay. Só para caso você precise de mais. Só estou aqui para ficar de olho."
"Hã. Que atencioso da sua parte." Seu tom era meio sarcástico, mas os dois se acalmaram um pouco. "Não faço ideia de como essa merda funciona, mas comecei a ver aquele documento no canto da vista quanto mais eu pensava nele. Vou tentar me concentrar nisso e nada mais."
"Só tome cuidado e não se perca." Sua voz estava baixa e tranquilizadora, quase como a de um membro de família. "Estarei com você a cada passo. Tente não mexer seu corpo—deixe sua mente se preocupar com isso."
Ele enfiou o chapéu no bolso de trás e suspirou. "Obrigado."
O polegar de Jai bateu na roda da pederneira e uma chama da cor do pôr do sol ganhou vida no topo do isqueiro.
Colocando o cigarro na boca, ele segurou a chama contra a extremidade do minúsculo cilindro, observando o papel escurecer até ficar preto queimado em segundos. Ele respirou e soprou como se fosse natural, observando as nuvens de fumaça escaparem de sua boca e narinas, antes de sangrar para o céu. Estava funcionando em segundos. Parte dele se sentia presente, enquanto a outra metade estava ausente em algum lugar.
"Ainda aqui." A voz de Mira mal era inteligível, mas ele entendeu, balançando a cabeça lentamente.
As cinzas na ponta da cigarrilha logo caíram, expondo algo dourado e ardente sob o maço que piscava a um tom branco quase ofuscante aos olhos. Ao erguer a vista, ele viu que havia apenas uma estrela vermelha visível no céu enquanto o resto emergia. Ela se destacava dentre as outras como o centro de um alvo, exigindo sua atenção.
A estrela vermelha começou como pouco mais que um ponto não maior que um ponto final, antes de se expandir, pulsando e dilatando, consumindo o céu em um tom rosa.
Seus muitos braços se estendiam para fora, formados pelas próprias nuvens. Oito deles no total curvaram-se pelo céu, prendendo a estrela vermelha no lugar enquanto ela começava a bater.
***

O chão em que ele estava era macio, como barro, suas botas afundando levemente na terra a cada passo que ele dava. A grama era mais verde do que qualquer gramado que ele já vira nos Estados Unidos, e a terra tinha um tom rico, quase ônix. Tudo ao seu redor, embora abruptamente, deu lugar a um pequeno canal de água com cerca de um pé de largura, separando um trecho de terra do outro.
Jai se ajoelhou sobre o canal e murmurou, avistando seu reflexo atordoado na água. Ele estendeu a mão para o peso de uma arma que ele sentiu pendurada nas costas. "Voltei demais, Mira. Vou avançar um tiquinho… Eu sei. Voltei demais. Eu sei."
O arrozal terminava onde começava a savana, com as silhuetas das acácias e dos arbustos de âmbar substituindo a copa megalítica e verdejante da selva. Ao longe, havia uma fogueira, o fedor da morte misturando-se com o cheiro de diesel e ferrugem. "Chegando mais perto. Posso sentir. Saí da selva."
A coronha de seu rifle parecia de madeira quando ele o pegou. Intrigado, ele puxou a arma para frente de si e a examinou, forçando a vista, confuso, diante da arma de fogo soviética que segurava em mãos. Ela tinha um cano longo demais para ser considerada uma AK, mas era inconfundivelmente um design Kalashnikov. A tipoia era de couro, possuindo a textura de um cinto velho, mas a coronha em si estava coberta de espaços em branco que sua mente lutava para preencher. Ela parecia uma massa rodopiante de estática de TV, e doía olhar para ela.
"Estou segurando uma… AK…? Nah. Parece um rifle de precisão." Ele mal conseguiu murmurar. "Não, estou quase lá. Consigo ver."
Um Unimog tombado bloqueava o caminho à frente, assim como um antigo sino de igreja parcialmente enterrado no chão. Jai saiu da estrada por um momento e contornou os bloqueios, girando a arma sobre a clareira onde acabara de entrar. Ao virar, no entanto, ele ouviu vozes, caindo de joelhos enquanto preparava sua arma.
"Eu sou um soldado sem lealdade, travando uma luta que ninguém tem coragem de liderar, e me recuso a ser deixado de lado como uma mercadoria por aqueles que me protegeram. Sou o espírito vivo daquilo que representamos."
A voz parecia familiar, a cadência do africânder identificando imediatamente um nome. "Eu vejo ele. O Hudson. Interrogando… alguém."
"Você representa entropia, assassino," Outra voz mais velha, com um sotaque nitidamente shona, cuspiu de volta para Hudson. "Aleatoriedade e desorientação. Você é a figura de nada além de calamidade e desastre."
Ao olhar para além do Unimog virado, ele viu quem Hudson estava interrogando. Um homem africano alto, coberto de piercings demais para contar e com vestes de aparência ancestral, estava no chão, com a faca de Hudson enfiada em seu esterno. Jai apoiou o rifle no caminhão e colou o dedo sobre o gatilho.
Ele antecipou que Hudson zombaria arrogantemente. "Você não me conhece."
"Então quem é você?"
Isso fez Hudson rir enquanto se levantava de uma postura ajoelhada. "Sou conhecido por muitos nomes, sua majestade: Garoto. Agente. Insurgente. Maluco. Comandante…" Em um movimento fluido, Hudson então sacou uma pistola 1911 notavelmente imaculada de seu lado, apontando-a na frente da cabeça do homem.
"Mas, esta noite, serei conhecido como Executor."
O dedo de Hudson se moveu antes que o de Jai pudesse. Ambos os homens dispararam as armas, nem sequer hesitando em fazê-lo, como se matar fosse tão natural como respirar. O rifle maior, no entanto, ocupou o centro das atenções com o quão poderoso seu chamado soou, prendendo a atenção de Jai enquanto o recuo atingia seu corpo.
Quando o clarão da boca se apagou, ele viu que o acampamento estava vazio, salvo o brilho de uma pasta de papel pardo saindo de um kit descartado. Jai estendeu a mão para pegar a pasta, colocando-a em suas mãos, "Ele está na Grande Zimbábue. Não sei onde. Estou com a pasta."
Seus olhos examinaram as letras miúdas, passando pelos procedimentos de contenção, pelo que quer que fosse "classe do objeto," até que ele viu a descrição e a leu em voz alta.
"..é um espaço extradimensional acessível através de um portal localizado em ██████, Rodésia. A localização do ponto de entrada em si está situada perto da torre cônica das ruínas histórias da Grande Zimbábue, uma cidade medieval…"
Ele parou, percebendo o erro que havia lido em voz alta para si mesmo. "Você deve estar brincando comigo."
Ding!
Jai quase se jogou no chão ao ouvir o micro-ondas apitar ao lado dele, meio que esperando uma onda de calor o tomasse naqueles poucos segundos. Se não fosse por uma mão pegando seu braço, ele já teria buscado cobertura.
Ele virou-se para a direita, sentindo como se estivesse se movendo na lua ou debaixo d'água, e puxou o braço. "Ei, Mira, vamos-"
Mira não estava o segurando. Em vez disso, um homem negro bem barbeado, de camisa branca e gravata preta, insistia para que ele se sentasse, enquanto mastigava algo. "Ei, ei. Você está apagado, garoto. Se sente e pegue um pouco de torta. Não deixe ela esfriar."
O que?
O SUBMAL lhe dera clareza a ponto de ele poder observar passivamente o número de entalhes na mira de seu rifle ou a posição da lua em relação a ele. Ele sabia o que alguém estava prestes a dizer, o que ele poderia ter dito e o que ele não teve a chance de dizer. Cada pensamento, cada ideia e memória que estava em sua mente poderia ser acessada e armazenada à vontade—o sentimento de onisciência era totalmente encantador para ele.
Porém, tudo voltou ao normal em um único segundo. Ele temia seria a ressaca.
Sem cerimônia, Jai se sentou, olhando para a área em que havia chegado. Era o interior de uma lanchonete surpreendentemente estéril, e ele e o homem diante dele eram os únicos sentados. Eles também pareciam ser os únicos de fato dentro, mas ele não conseguia ver se havia algum carro lá fora.
O principal motivo era que a janela estava um vazio preto e inexpressivo que diminuía ao chegar à porta da frente da lanchonete.
O homem sentado à sua frente pegou o garfo, um barulho de tik-tik de garfo contra prato complementando sua mastigação comovente enquanto ele pegava pedaços de fatias de torta de maçã. Jai olhou para o homem e engoliu em seco, abrindo a mandíbula ao ver todas as feições semelhantes a si próprio que conseguia identificar no rosto do homem "Você—"
"Aqui. Coma." O homem colocou o garfo na boca dele com uma fatia de torta. "Você está de volta, garoto, ou tenho que jogar água na sua cara e bagunçar esse seu uniforme?"
Enquanto engolia a torta de maçã surpreendentemente insípida, Jai olhou para si mesmo, contando o número reconhecidamente pequeno de fitas em seu uniforme de serviço cáqui. Ele voltou os olhos para o homem mais uma vez, conseguindo apenas fazer um murmúrio. "Nunca comi torta de maçã antes."
O homem ergueu ambas as sobrancelhas. "Boa observação. Você já comeu de cereja?"
"Olha— onde estou?" Ele se inclinou para frente. "Tenho que voltar para—"
"Completar sua missão. Eu sei." O homem balançou a cabeça enquanto pegava um guardanapo, limpando os lábios. "Essa também é uma boa pergunta, 'Onde estou?' Eu estaria me perguntando a mesma coisa." A forma como ele falava era autoritária, poderosa, profissional, mas estranhamente compassiva. Ele era mais velho que Jai em aproximadamente trinta e poucos anos—as rugas e manchas no rosto e o cabelo levemente grisalho eram suficientes para provar isso. Deixando tudo de lado, ele envelheceu bem.
"Todo mundo que volta para casa se pergunta a mesma coisa. Eu me fiz a mesma pergunta depois de voltar do Pacífico em 45." O homem concordou, largando o garfo. "Mas eu sei que você não está aqui para discutir guerra, não. Eu te conheço melhor."
Do que ele está falando? O homem parecia estranho, apesar de todas as suas feições e fala arrastada familiares. A maneira como ele se vestia, falava e até mesmo a maneira como comia a torta levantavam muitos sinais de alerta para ele simplesmente ignorar. Se ele sabia do Plano, isso também não era bom para ele."
"Você não me conhece." Jai recostou-se na cadeira, assumindo a defesa. "Você é de Federal. Não estou respondendo às suas perguntas. Me deixe sair daqui."
"Sou da Fundação, garoto." O homem gesticulou para si mesmo. "Você sabia disso, só não estava olhando bem o suficiente."
Seus olhos percorreram o ombro do homem até o paletó cuidadosamente dobrado ao lado dele. Havia um alfinete prateado em uma das golas; duas rodelas concêntricas eram perfuradas por três setas.
"Aham. Vou admitir, assim como você admite que você é um insurgente. Não devo minha lealdade a nenhuma bandeira. Nem voce, no momento. Somos parecidos. Contudo,"
O homem da Fundação ergueu novamente o garfo, usando-o para apontar vagamente para Jai. "Você é iniciante no que está fazendo agora, nesta… heh… viagem. Consigo sentir o cheiro da ingenuidade em você como suor."
"E daí." Jai afundou ainda mais em sua cadeira enquanto grunhia. "Eu sei que você está sob efeito do SUBMAL também. Você me pegou, mas você não pode me impedir. Já sei o que preciso fazer e para onde devo ir. Tenho meu Plano e pretendo agir segundo ele."
"Não, você não pretende." O homem apontou um dedo para Jai, balançando-o levemente para cima e para baixo. "Nem mesmo isso, você ainda está em conflito. Assim que você matar o Hudson, você terá cumprido seu propósito. Não sobrará nada para você. Não só isso, você não tem certeza se realmente quer contar a todos o que está acontecendo aqui. Partiria o coração da mamãe—e sua mente—saber o que você está fazendo, não é?"
Jai abriu a boca para falar em protesto, fechando-a quando o homem enfiou a mão no paletó e deslizou uma pasta para perto. Abrindo-a, revelavam-se documentos cheios de letras miúdas indefinidas, com uma fotografia dele em preto e branco na Ilha de Parris, presa no topo de tudo.
"Eu te conheço como conheço a palma da mão, Jai Perryman—assim como conheço Hudson Croix, e um pouco sobre essa tal de Mira. Mas não estou aqui para me gabar, é fora do meu caráter. Estou aqui para averiguar motivos e lealdades."
Jai sabia que o homem estava tentando mexer com ele, puxando cordas que seria melhor deixar intocadas. Algo na maneira como ele se sentava e falava, sem falar no fato que ele tinha a torta, estava-lhe dizendo que essa não era a conversa dele.
"Eu sou da Insurgência, tá?" Ele falou como se fosse um adolescente sendo julgado por seu pai. "Tenho uma missão—que a confidencialidade se foda. Como você já parece saber dela, vou dizê-la. Eu vou para a Grande Zimbábue e eu vou matar o Hudson."
"Você nem sabe onde fica a Grande Zimbábue!" O homem respondeu quase imediatamente, um tom de condescendência em sua voz. "Você sabia, pelo menos por um momento, mas essa memória sumiu para sempre. Isso porque mantemos isso em segredo, apenas para aqueles que precisam saber."
Ele bateu o dedo na mesa. "Seu chefe aprendeu bem conosco, Jai, foi assim que ele passou pelo antimeme."
"Eu sei que ele foi da Fundação," Começou Jai, "Mas por que—"
"Eu sei tanto sobre ele, você, a Grande Zimbábue e a Insurgência?" Começou o homem, tirando as palavras da boca de Jai. "É porque nós fizemos vocês. A Insurgência não se separou da Fundação depois que um punhado de operativos e agentes decidiram se rebelar um dia—absolutamente não."
Ele sacudiu a cabeça. "Nós, supervisores, formamos a Insurgência como um grupo de operações secretas, para coletar anomalias de alto risco e fazer o que precisava ser feito com negação plausível se vocês fossem pegos. Claro, alguns elementos, bem, se 'rebelaram,' " Ele levantou os dedos enquanto fazia aspas no ar. "Na medida que eles ainda estavam no esquema no final das contas."
As sobrancelhas de Jai franziram. "Você está mentindo. Eu não trabalho para vocês. Nenhum de nós trabalha."
"De certo modo, vocês na verdade trabalham." O supervisor o corrigiu. "Eventualmente, aquele micro-ondas Casaba-Howitzer que você quase quebrou e esse SUBMAL que você consumiu vão voltar para nós, seja por um pacote que você deixou no local errado, um homem que foi morto em um Sítio durante sua pausa para fumar… ou uma emboscada cronometrada perfeitamente."
Jai ficou em silêncio enquanto processava as palavras, compreendendo simultaneamente quem ele era e o que havia feito. Ele viu o homem se levantar e colocar o prato no balcão, antes de retornar à mesa simultaneamente.
Ambos os homens trocaram olhares por um minuto antes de Jai se levantar em seu assento. "Por que eu?"
O supervisor colocou as duas mãos sobre a mesa, juntando-as enquanto se inclinava para frente. "Somos todos como… peças, Jai, tentando nos forçar a entrar nas partes mais íntimas de um grande motor—para um carro, digamos. Algumas pessoas se encaixam perfeitamente. Outras vezes, se nós não nos encaixamos, estragamos as coisas. Uma engrenagem ou parafuso errado estraga todo o motor—deixa as pessoas malucas. Temos pessoas que—furiosas por não conseguirem se encaixar nessa máquina—arrancam velas de ignição e molas do nosso motor para usarem no seu próprio. E daí temos as pessoas realmente malucas, que vão surtar e explodir o motor todo em raiva."
Ele fez uma pausa de meio segundo pra deixar Jai digerir a metáfora. "No entnato, algumas engrenagens e pistões podem ser forçados, se você martelá-los ou aparafusá-los com força suficiente, mas você corre o risco de estragar a coisa toda."
Jai observou o supervisor apontar para ele mais uma vez, mantendo sua postura. "Você está tentando se encaixar em algo que não te diz respeito, nem se importa com você. Essa é a Insurgência, Jai. Uma máquina pequena e complexa demais. Você não foi feito para ela."
O ex-fuzileiro naval olhou para a cara do supervisor e depois para a mesa. Quaisquer que fossem os pensamentos que estavam se movendo em sua mente naquele momento, eram totalmente incapazes de serem formulados, nublando seu julgamento em uma névoa de guerra. Ele fungou, sentindo cheiros insignificantes de madeira e óleo de arma em meio ao cheiro um tanto estéril e polido do restaurante.
"Então você está tentando me colocar na sua máquina, depois que eu matar o Hudson." Ele falou. "Você acha que eu me encaixo na sua. É isso."
Jai viu o supervisor enfiar a mão no bolso do paletó, colocar um cartão na mesa e empurrá-lo para frente. Ele examinou os números no cartão em branco, gravando as coordenadas em suas memórias.
"Conversaremos mais pessoalmente." O Supervisor pegou o cartão da mesa, se levantou e foi até a porta. Ao abri-la—
—Jai se levantou na varanda, assustando Mira enquanto ela se afastava dele em alguns passos. Seus olhos pareciam em pânico e arregalados, maiores do que ele jamais tinha visto. "Jay! Você apagou por… horas. Você está bem, né? O que você viu?"
Ele não respondeu imediatamente. Em vez disso, ele enfiou a mão no bolso de trás e desdobrou o boné de patrulha da Mira com um balançar do pulso.
Ele colocou o boné na cabeça, mas não tirou a mão da aba. "A verdade."
Ele removeu a mão do chapéu, se afastou dela e começou a marchar para o mato.