Imortal é o meu p**!

avaliação: +10+x

“Nós temos mesmo que fazer isso?”

José passou a mão nos longos cabelos loiros, parando no começo do seu rabo de cavalo. Sempre fazia isso quando estava entediado. Seu avô, Arnaldo, o observava com o cenho franzido, os olhos espremidos atrás de um óculos de lentes pequenas demais para seu rosto, conferindo-lhe uma aparência ao mesmo tempo cômica e severa.

“Claro que temos, garoto. Você precisa aprender a caçar se quiser continuar fazendo parte do Clube. Depois da vergonha que você passou, precisamos de um prêmio grande para provar seu valor.” O velho, com a luz acima das poltronas refletindo em sua cabeça totalmente raspada, bateu sua bengala no chão, como que para dar ênfase na última frase.

José sentiu sua tez esquentar. Não gostava de ser lembrado de seus pequenos incidentes no Clube. Mordeu o lábio inferior e olhou pela janela do avião, de modo a desviar o rosto do olhar fulminante de seu avô. Era a primeira vez que caçavam juntos, e ele sabia que seu avô estava ali apenas por causa de seus fracassos.

Arnaldo, por sua vez, desviou o olhar do neto que tentava transformar em homem, e olhou novamente para a mesa que estava entre ambos. Seu jato particular movia-se rapidamente em direção ao centro-oeste dos Estados Unidos da América, a última localização conhecida de seu alvo.

Arnaldo havia sido notificado por um de seus colegas no Zoológico a respeito de um monstro que havia escapado de sua jaula, e que eles tentavam destruir há muitos anos, com uma recompensa grande por sua cabeça. Não era um comportamento comum da parte deles, mas uma caça é uma caça.

O velho havia dito a seus colegas no Clube o que sempre dizia em relação a quem trabalha no Zoológico: “Existem monstros que podem viver em gaiolas. Estes são os que gostam de ser admirados. Mas, na minha experiência, a maioria deles só merece admiração quando adornam a minha lareira.”

Quando a presa foi revelada a todo o clube, muitos caçadores se excitaram com a proposta feita pelo Zoológico. O prêmio era de alto valor e traria muito renome entre os membros do Clube.

Arnaldo sabia que essa seria a situação, e aproveitou que foi avisado antes de qualquer outro para tentar redimir os erros de seu neto e transformá-lo em um verdadeiro caçador. Pegou seu cachimbo, ao lado do mapa e pacientemente começou a pressionar o fumo em sua abertura.


José já havia se acostumado à sensação de “frio na barriga” durante o pouso de aviões, tendo um extenso histórico de viagens. Seu avô, no entanto, tentava demonstrar coragem, mesmo com os nós dos dedos esvaídos de cor ao redor de sua bengala.

José suprimiu um riso e olhou para seu celular e depois para seu relógio de pulso, ajustando-o para o horário atual no estado de Iowa. Nunca havia estado ali antes, mas pensou que fazia sentido que a Fundação tentaria manter um monstro desse porte em um lugar remoto.

O jato particular da família Nogueira finalmente pousou, as rodas atingindo a pista molhada com o som característico da fricção da borracha na água. Arnaldo finalmente relaxou suas mãos e soltou um longo suspiro, tentando disfarçar sua apreensão. José educadamente fingiu desatenção. Enquanto ambos tiravam seus cintos e se preparavam para sair, o piloto da aeronave, Jaime, um homem que trabalhava há muito tempo para Arnaldo, saiu da cabine.

“Boa tarde senhores, espero que o voo tenha sido de seu agrado.” Disse, para ninguém em particular. Então dirigiu sua atenção para Arnaldo. “Os oficiais já estão a caminho.” Arnaldo respondeu com um grunhido, levantando-se e pegando seus pertences espalhados pela mesa. Colocou seus óculos e pediu para José pegar suas malas, então se dirigiu ao piloto.

“Ótimo trabalho como sempre, Jaime. Você já sabe o que fazer com esse povo da alfândega.” O piloto assentiu e, com uma reverência, dirigiu-se ao compartimento de carga do avião. José e Arnaldo não haviam trazido muita bagagem, de modo que a maior parte de seus pertences estava espalhado pela cabine do jato.

Enquanto Arnaldo e José conferiam suas bagagens e andavam um pouco ao redor do avião para esticar as pernas, Jaime retornou do compartimento de carga. Com um rápido aceno de cabeça para Arnaldo, o mesmo se dirigiu à cabine do piloto. Alguns momentos depois, a porta do jato abriu-se. Jaime e Arnaldo sentaram-se novamente, já acostumados com este processo, aguardando.

Em jatos particulares, você não precisa ir até a Alfândega. Ela vem até você. Alguns minutos após a abertura da porta de saída, duas pessoas surgiram em sua abertura. Jaime introduziu-se aos agentes alfandegários, explicando que os passageiros não falavam inglês. José e Arnaldo rapidamente distraíram-se da examinação dos agentes, conversando entre si a respeito de como seria a caçada.

Arnaldo apontou para o mapa que já havia aberto novamente sobre a mesa: “De acordo com as minhas fontes, a última localização conhecida do bicho é aqui” Arnaldo apontou um de seus grossos dedos para Akron, em Iowa, traçando uma linha para Dakota, no estado vizinho de Nebraska. “Ele fugiu da jaula dele aqui em Akron e acredito que está se escondendo na fronteira, onde tem algumas florestas com mata densa. Não deve ser difícil achar o rastro dele, pela descrição é um monstro bem grande.”

José acenou positivamente com a cabeça. “Qual vai ser nosso meio de transporte? E como vamos achar armas aqui no meio do nada?” Arnaldo sorriu. “Você se preocupa demais, garoto. Tudo já foi arranjado.” Arnaldo dirigiu sua atenção para os agentes alfandegários. Jaime apresentava os passaportes de Arnaldo e José para eles. Levantou-se e fez um meneio de cabeça para o neto, indicando que deveria seguí-lo.

Ambos se dirigiram ao compartimento de carga do jato. José nunca tinha realmente prestado atenção no layout da aeronave, mas apreciava a quantidade de espaço nela. Adentrou o compartimento e seu avô fechou a porta atrás de si. O velho então apontou para o chão, uma seção específica do carpete. “Tire aquilo do caminho, sim?”

José, confuso pelas instruções, ajoelhou-se próximo ao local que o velho apontou. Foi então que viu: Examinando de perto, dava pra perceber claramente que uma parte do carpete era removível. Puxou o tecido para cima, revelando duas portas metálicas, com um grosso cadeado pendurado na tranca. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, uma chave pesada caiu ao seu lado. Sorriu e abriu o cadeado.

A voz rascante do velho ecoou no espaço revelado: "Nenhum país pode nos impedir de caçar, garoto.”


José ajudava Jaime a levantar mais uma pesada mala que seria colocada no porta-malas do veículo que os aguardava, uma BMW X5. Era a última de muitas. Seu avô realmente havia planejado tudo. José começava a se empolgar pelo que viria a seguir. Mesmo com a rigidez de seu avô, era impressionante o quanto conseguia aprender só de observar as atitudes do velho.

“Muito obrigado, Jaime. Devemos voltar em até uma semana.” disse Arnaldo. O piloto fez uma reverência e cumprimentou ambos os membros da família Nogueira, dirigindo-se de volta à aeronave. O velho então olhou para Jaime. “Você dirige, meu olhos já não são mais os mesmos para a estrada.” Jaime assentiu e abriu a porta do motorista do SUV.

José observou seu avô entrar no carro pelo assento do copiloto. Normalmente, ele se ofereceria para ajudar, mas ele sabia que o velho odiava isso. Arnaldo entrou com surpreendente agilidade, colocando a bengala a seu lado, encostada na porta. O velho estendeu sua mão para o console central. Apesar da idade, Arnaldo mantinha-se atualizado, rapidamente encontrando o menu de navegação no carro e inserindo as coordenadas necessárias. Ele então assentiu para José, que começou a dirigir.

“Normalmente, eu diria para encontrarmos uma ‘base de operações’ no primeiro dia e nos assentarmos, mas nossos amigos me disseram que esse é um alvo de alta prioridade e tem muita gente interessada nele.” Disse Arnaldo. “Iremos direto para o local onde houve primeiro contato após o escape do monstro.”

“Temos alguma informação a respeito da presa além de descrição geral?” Disse José. O velho fez uma pausa, enquanto procurava alguma coisa nos bolsos de seu casaco. Após alguns segundos, puxou seu cachimbo. “Pelo que me informaram na carta, é um ser similar a um réptil. Escamas, sangue frio. A característica principal parece ser ‘adaptação’, com registros vastos de tentativas de destruição, sem sucesso.” O velho puxou um papel amassado de outro bolso, pousando o cachimbo em sua perna esquerda.

Pigarreou e começou a ler: “Sr. Nogueira, estou entrando em contato hoje para comunicá-lo a respeito de uma potencial presa: A Fundação Lusófona foi informada que a filial Americana deixou escapar um de seus espécimes mais perigosos, o qual ela tenta destruir há muitos anos. Decidimos passar a informação para o Clube de Caça, oficialmente. Extraoficialmente, estou entrando em contato diretamente com o senhor devido à nossos negócios no passado. A última localização conhecida do objeto está em anexo. Tome cuidado e boa caçada.” Arnaldo dobrou novamente o papel. “Isso é tudo o que temos.”

José assentiu.


José havia parado o carro a cerca de 500 metros do local em que o primeiro contato havia ocorrido, para que ambos pudessem se preparar para o processo de rastreamento da presa. Como não havia um local fixo que pudessem usar como base de operações, o carro serviria.

José, então, começou a descarregar as malas no porta-malas do carro, enquanto seu avô desfazia a sua própria, que continha o equipamento que costumeiramente utilizava em caçadas. Suas vestes eram uma mistura de uniforme militar com um estereótipo de explorador de selva, desde o chapéu até a mochila exageradamente grande. Para alguém que usava uma bengala, o velho era surpreendentemente vigoroso.

José, por sua vez, preferia opções mais modernas. Utilizaria um uniforme militar com camuflagem apropriada para o clima em que estavam, com protetores ao redor do corpo e apenas o equipamento que conseguia carregar sem prejuízo à sua mobilidade. O porta malas imenso do carro servia de mesa improvisada, enquanto o mesmo abria as malas, depositava seu conteúdo na lateral do mesmo.

Arnaldo, após cerca de 15 minutos, aproximou-se do neto, agora já completamente equipado. “Ah, vejo que já está montando nossos brinquedos.” Arnaldo sorriu, pegando a caixa da Marlin 1895 Big Bore, sua arma favorita. José não pôde deixar de sorrir ao ver a alavanca presente na arma. “Eu tenho que perguntar, vô. Por que você ainda usa armas antigas? Você não é uma pessoa avessa a modernidades.” Arnaldo acariciou a caixa, como um homem acariciaria a sua própria esposa. “Essa arma nunca me deixou na mão, filho. Quando você caça há tanto tempo quanto eu, você aprende a valorizar o que funciona e a desprezar todo o resto.” José riu, enquanto montava seu próprio rifle, um Legend Heavy Sporter que comprara na Europa, carregado com o grossíssimo calibre .458.

Arnaldo também pegou seu revólver Ruger Redhawk e o colocou em sua cintura. Não tinha problema algum em carregar suas armas abertamente. “Cadê meus binóculos?” grunhiu. José simplesmente apontou para uma das malas ainda fechada. O velho pegou seus binóculos e os pendurou também no cinto.

“Anda logo garoto, quanto antes a gente examinar o local, melhor.” Disse, enquanto José agora montava o Marlin. “E tome cuidado com ela, sim?”. Circundou o carro, de modo a observar o local de contato. De onde estavam, era difícil de ver qualquer coisa fora do normal nas coordenadas que foram entregues a eles. Parecia apenas um vilarejo pequeno com menos de uma dezena de casa. Tirou seu binóculos da cintura e o apontou em direção ao local.

Com os binóculos, era possível ver algumas coisas fora do normal. As casas pareciam majoritariamente intactas, mas dava para ver que o terreno ao redor de algumas delas estava seriamente danificado, como se algo muito grande tivesse passado por cima dele várias vezes. A vegetação ao redor do local também era quase inexistente, apesar de estar próximo de uma floresta e todo o resto do terreno ser coberto de grama. Também era possível ver uma fumaça negra que se formava no que parecia ser o centro do vilarejo.

Não havia nada que saltasse ao olhar além disso, entretanto. Pelo menos não daquela distância e daquela direção. Arnaldo abaixou os binóculos, e, alguns segundos depois, seu neto se aproximou dele, com seu rifle em mãos. Arnaldo pegou o Marlin e o prendeu à sua bandoleira. “Vamos lá filho, é hora de eu te mostrar como se faz.”


Arnaldo e José se aproximaram do local com rapidez. Não era possível chegar lá sem serem vistos, já que o vilarejo era cercado apenas por vegetação rasteira, de modo que decidiram priorizar a velocidade. José surpreendeu-se com a disposição do velho. O mesmo havia deixado a bengala no carro, dizendo que “não precisaria dela durante a caçada”. José duvidou que ele seria capaz de igualar sua proeza física, mas ali estava ele, vendo o velho trotando ao seu lado, carregando muito mais equipamento do que ele, sem nem ofegar.

Chegando a cerca de 100 metros do vilarejo, ambos pararam. O velho apontou para o chão. A terra ao redor do pequeno vilarejo, agora facilmente visível, mostrava sinais claros de que havia sido incendiada. O solo enegrecido desintegrava-se sob suas botas, com um som similar ao de caminhar sobre cascalho fino.

As casas, que pareciam normais à distância, agora mostravam sinais claros de danos, com algumas paredes cobertas de fuligem. “Tudo bem, devagar agora.” disse Arnaldo. “Vamos entrar no local por entre aquelas duas casas, onde temos cobertura dos dois lados.” José acenou e deixou o velho liderar o caminho. Ambos com armas em punho aproximaram-se lentamente, dirigindo-se para o local que Arnaldo apontou.

“Mãe de Deus.” exclamou Arnaldo, ao emergir no centro do vilarejo após sair do espaço entre as duas casas. José saiu logo atrás dele, seu rosto imediatamente perdendo a cor. Não era um vilarejo pequeno de poucas casas.

O centro do vilarejo era composto apenas de uma cratera negra, com a parte frontal das casas que Arnaldo viu pelos seus binóculos completamente destruída por algo que parecia ter sido uma enorme explosão. Mas este era o lado com menos prejuízos, porque o que quer que causou aquilo aniquilou completamente o lado oposto.

Por uma distância de cerca de 300 metros, a única coisa existente era um rastro de rocha negra lisa, ainda fumegante, espalhada em um formato de cone. A cratera estava cercada por algumas dezenas de corpos enegrecidos, prováveis vítimas do evento cataclísmico que ocorrera naquele local. José sentiu a bile em sua garganta, um reflexo de vômito.

Arnaldo não conseguiu deixar de suprimir um sorriso em seu rosto. Aquilo sim era uma presa de verdade! Foi retirado de seus pensamentos pelo barulho do refluxo de seu neto ao seu lado. “Você vai se acostumar, garoto.” Disse, em voz alta, se aproximando da cratera no centro do vilarejo.

Quanto mais se aproximava do epicentro do evento, mais sentia o calor aumentando em suas botas. O que quer que tenha acontecido ali, mesmo que tenha sido há dias, ainda mantinha a superfície quente. Ali, o solo passava uma sensação diferente, tendo sido submetido a uma temperatura tão alta que retirou toda a umidade da superfície, e a sensação era similar à pisar em barro seco e quebradiço.

Arnaldo já havia visto coisas similares a isso, mas esse era um tipo novo de bicho. Aproximou-se dos cadáveres. A carbonização torna difícil a identificação de pertences ou pessoas, mas Arnaldo conseguiu identificar alguns com equipamento militar. Capacetes e armas fundidos à seus corpos pela temperatura imensa. Não dava para saber quem eram essas pessoas, entretanto.

Ajoelhado ao lado de um dos corpos, seu neto subitamente apareceu ao seu lado, ainda com o rosto pálido. “O que diabos faria algo assim?” Arnaldo grunhiu. “Acredito que vamos descobrir em breve, Zé.” Ele olhou para a cratera novamente. “Tá vendo aqueles buracos no chão?” José aproximou-se, olhando para o lado leste da cratera, onde havia vários buracos de cerca de três metros de diâmetro e confirmou que os via.

“Aquilo é o nosso rastro. Não deve ser difícil achar algo deste tamanho na floresta.” O queixo de José caiu. Os buracos daquele tamanho eram o rastro da criatura? Começou a duvidar de si mesmo. Arnaldo olhou para ele como se lesse seus pensamentos. “Coragem, garoto. Eu estou aqui, você não tem nada a temer. Aparentemente matar esse bicho não é só questão de prestígio, é questão de proteção para o povo que mora nos arredores.” Arnaldo pegou seus binóculos novamente e olhou vagamente na direção do rastro do ser, onde visualizou várias árvores derrubadas na floresta que se iniciava ao longe. Pelo menos o rastreamento seria fácil.

“Pega o carro, filho. Me encontre no lado leste do vilarejo.”


José sentia suas mãos tremerem ao adentrar na floresta. A única coisa que o impedia de bater em disparada era a presença imponente de seu avô, que ditava o ritmo lento que ambos seguiam, entre as árvores destroçadas ao seu redor.

Haviam deixado o carro a cerca de 50 metros da “entrada” da floresta, demarcada por uma imensa seção de árvores derrubadas. Quando saltaram da SUV, o velho disse para José manter-se em silêncio, e imediatamente rumou para o interior da floresta, sem hesitação, com um sorriso maníaco no rosto. José não podia fazer nada além de seguir e temer pela própria vida.

Arnaldo raramente se sentia tão vivo durante suas caçadas. Apenas o tamanho do trecho de destruição que essa criatura deixava para trás era o suficiente para o empolgar. Já havia largado seu rifle na bandoleira e andava com o .44 em suas mãos, muito mais apropriado para um possível encontro a curta distância. Quase esquecia de seu neto, que o seguia timidamente. Pelo menos o garoto aprendera a andar em silêncio.

Após alguns minutos mata a dentro, Arnaldo e José começaram a registrar sons estranhos ao longe, um deles parecia o de algo grande sendo arrancado e o outro proeminente era de uma coisa muito pesada atingindo o solo. Arnaldo rapidamente identificou isso como alguma coisa arrancando árvores pelas raízes e deixando elas caírem no solo. Alertou seu neto com um sinal, para que o mesmo caminhasse ao seu lado e então sussurrou:

“Garoto, tiramos a sorte grande. Esse bicho com certeza vai escrever seu nome nos anais do Clube por um longo tempo.” Arnaldo disse, sem esconder o entusiasmo na voz. Ouviu José engolindo em seco. “O que que há, garoto? Eu estou aqui, nada ruim vai acontecer.” Ambos caminhavam em direção aos sons que se repetiam e ficavam cada vez mais altos, mais próximos. Após alguns minutos, os sons cessaram completamente, deixando José apenas com o som do próprio coração pulsando em seus ouvidos.

Arnaldo e José chegaram na beira de um platô, que dava no que até pouco tempo deveria ser uma seção mais profunda de floresta, mas que agora era uma clareira, cheia de árvores derrubadas, a cerca de 600 metros de ambos. As árvores próximas a eles não tinham nenhuma impressão de esmagamento ou corte, elas haviam sido arrancadas pelas raízes e depositadas deliberadamente naquele local, em pilhas mais ou menos organizadas. Nenhum sinal de movimento ou de qualquer criatura viva naquele local.

Arnaldo parou por um segundo e então sinalizou para José mover-se até uma rocha próxima à borda do platô, que era grande o suficiente para cobrir a maior parte dos corpos de ambos. Ele então instruiu o neto a deitar-se de modo a cobrir a maior parte de seu corpo atrás da pedra e utilizar a mira telescópica de seu rifle.

“Serei seu observador, garoto.” A voz rascante do velho soou, enquanto o mesmo vagarosamente removia seus binóculos do cinto. José, mesmo trêmulo e com a adrenalina correndo pelo seu sangue, assumiu a posição conforme lembrava de seu treinamento, e removeu o pequeno caderno com lápis que levava em um dos bolsos de seu colete. Suava tanto que umedecia a capa do caderno, sentia suas mãos escorregando no cabo da arma, e o suor da testa pingava em seus olhos.

“Respira fundo, Zé.” Disse Arnaldo, tirando um anemômetro portátil de sua imensa mochila, com uma surpreendente fluidez. “Você está com o campeão da 22ª Competição de Tiro ao Alvo do Clube.” O velho disse, segurando a hélice do anemômetro para cima e agora removendo um barômetro do bolso.

José continuava suando frio, o medo ameaçando dominar seu coração. “Por que você já está fazendo medições se não tem nenhuma criatura próxima, vô?”, exclamou, com a voz falhando no final da frase. Arnaldo não respondeu por alguns segundos, prestando atenção no anemômetro. “5 km/h, filho.”

José anotou em uma das folhas do caderno, quase que mecanicamente, e ajustou a mira telescópica. “Você está ouvindo isso, Zé?”. José suspirou. Não ouvia absolutamente nada. “Eu também não ouço nada, filho. Isso quer dizer que não podemos fazer nada além de esperar de uma posição vantajosa. Sinto que ela vai voltar aqui, ela não teria arrancado todas essas árvores e colocado elas em pilhas sem motivo.” José prendeu sua respiração, tentando acalmar o coração acelerado. Arnaldo, que examinava atentamente seu barômetro, apenas disse: “706 mmHG.”, informação que foi prontamente anotada por José.

Ambos ficaram em silêncio por um tempo que parecia interminável, com José freneticamente alternando sua mira para diversos lugares diferentes da clareira, buscando algum movimento e Arnaldo calmamente observando o local pelos seus binóculos. Para José, parecia que horas haviam se passado. Subitamente, uma cabeça gigantesca começou a surgir diretamente do solo da clareira, como uma planta brotando em um vaso, em um dos poucos espaços que não eram ocupados por árvores.

A cabeça, de aparência reptiliana similar a um crocodiliano, era maior do que a SUV que ambos haviam utilizado neste dia. Ambos observaram a cabeça lentamente emergindo do solo, e dando lugar a um corpanzil imenso, que deveria ter mais de 30 metros. Arnaldo estava extático e José completamente boquiaberto com a escala gigantesca daquela criatura e com a forma fluída que ela se movimentava ao longo dos espaços abertos na clareira, de um modo sobrenatural e enervante, deslizando por entre as árvores caídas como uma espécie de serpente, apesar de seu corpo ser completamente incompatível com tal movimentação.

José sentiu seu avô colocando sua mãozorra em um dos seus ombros, e foi chacoalhado pelo homem mais velho, perdido em sua empolgação. Nunca havia visto seu avô com um sorriso tão largo no rosto. “Garoto, garoto! Olha isso!” o velho disse, sem disfarçar o entusiasmo em seu sussurro. José apenas deu um aceno trêmulo de cabeça. Apesar do medo, finalmente ter algo concreto, um alvo, era algo que o acalmava. E ele com certeza não erraria um alvo tão imenso.

Logo, o motivo de terem tantas árvores ali ficou claro. A criatura aproximou-se de uma das pilhas na clareira e, com um único movimento, levantou uma das imensas árvores e começou a triturá-la em sua boca enorme. Conforme consumia partes da árvore, seu tamanho aumentava visivelmente, em proporção à massa consumida.

José respirou fundo. Arnaldo, após alguns segundos de empolgação, deu as instruções: “Não sabemos como esse bicho se comporta. Um tiro de aviso pode ser uma boa ideia para vermos como ele reage. Ele não deve ser capaz de nos localizar estando distraído assim, mas, se ele chegar perto, meu revólver vai ser mais que o suficiente para pará-lo por tempo o suficiente para nós nos reposicionarmos. Concorda?” José apenas acenou com a cabeça. “Ótimo. Dispare quando quiser.”

José suspirou uma vez. Então duas. Três. Quatro. O alvo era imenso, era só escolher onde atingiria o monstro. Passou sua mira telescópica pelo corpo inteiro do ser, e decidiu que atacaria a cabeça. Já havia acertado um humanoide há 1000 metros de distância, seria muito mais fácil acertar algo equivalente a um carro a menos de 600 metros. Ajustou a mira e puxou o gatilho. Observou a criatura ser atingida logo abaixo do olho esquerdo, enquanto engolia mais uma das árvores.

E então, nada.


“Tem certeza que é ele mesmo?” O velho grunhiu, com a expressão claramente desapontada, enquanto observava o enorme ferimento deixado pelo projétil .458 do rifle de José na cabeça da criatura. Seu corpanzil estava se dissolvendo, como se não passasse de uma grande farsa, enquanto ela jazia imóvel no solo, com o líquido verde que deveria ser seu sangue se espalhando aos litros pela terra.

“Sim, Arnaldo, é isso mesmo.” respondeu a voz feminina do outro lado do telefone. José nunca havia visto seu avô com uma expressão tão triste. Arnaldo terminou a ligação, sem dizer mais nenhuma palavra.

“Uh… É sempre assim quando você caça?” José disse, de forma incerta. Ele realmente havia cometido algumas gafes no clube, mas ele havia tido mais problemas com a sua primeira presa do que com essa. Talvez a influência do velho fosse maior do que ele pensava. O velho não respondeu, apenas balançou a cabeça negativamente com o cenho franzido.

A criatura continuava a dissolver-se, diminuindo radicalmente de tamanho. O ferimento, entretanto, continuava aparente. Eventualmente, com ambos ainda embasbacados admirando o cadáver da criatura, ela chegou ao que deveria ser seu tamanho comum. Arnaldo tirou um facão de sua mochila e aproximou-se. José sabia o que vinha a seguir. Apesar de ter estado no exército, nunca lidou bem com sangue. Virou-se de costas, enquanto ouvia os sons da decapitação.

Quando os sons pararam, virou-se e viu Arnaldo segurando a cabeça da criatura no ar. Ainda era relativamente grande, com cerca de meio metro de comprimento, mas o velho a segurava no ar com facilidade. Arnaldo observou um efeito estranho. Agora que olhava a criatura a poucos centímetros da sua face, via que as paredes do ferimento em seu rosto tentavam mover-se para o centro do ferimento, como se para fechá-lo. Algo similar acontecia na base da cabeça, onde ela fora cortada, como se o tecido quisesse crescer.

Arnaldo suspirou. Então é por isso que havia sido tão fácil. O que quer que aquela criatura fosse, seus efeitos de adaptação foram completamente suprimidos pela presença de ambos. Enquanto o velho processava aquela informação, a mandíbula da criatura subitamente abriu-se, pendendo do resto da cabeça, como se zombasse das pretensões de ambos.

“Merda.” Arnaldo exclamou.


Arnaldo e José estavam sentados um do lado do outro dentro do jato particular. Jaime havia se surpreendido com a volta rápida de ambos, mas rapidamente preparara a aeronave para o retorno ao Brasil. Jaime guardou o grande volume embrulhado em um pano branco que foi trazido por Arnaldo, como de costume.

Após alguns minutos de silêncio, Arnaldo falou: “Jamais falaremos sobre essa caçada.”. José olhou para o velho. Abriu a boca como se fosse falar algo, mas desistiu. Pelo menos não teria mais que sofrer com os comentários sussurrados no clube.

Enquanto ambos se distanciavam rapidamente da América do Norte em um silêncio soturno, um esquadrão altamente equipado tentava entender o que diabos havia acontecido em uma floresta na fronteira noroeste do Nebraska.

Salvo indicação em contrário, o conteúdo desta página é licenciado sob Creative Commons Attribution-ShareAlike 3.0 License