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Cinco de nós fazem tocaia pelo cerrado: monstros, rastejando para cima e para baixo na encosta da montanha Koh-i-Baba, esperando e observando um exército de zumbis expulsar um homem com fogo nos olhos. Ele está escondido na base das montanhas, uma vila com a qual ninguém se importa no meio de uma guerra que ninguém conhece. Aposto que era um bom lugar para morar. Calmo, confortável, tranquilo. Um lugar onde todo mundo sabia seu nome.
Ela está vazia agora: uma coleção de casas e ruas espreitadas por cadáveres soviéticos que desenterramos do deserto. O único nome que importa pertence a Anwar. Seu apoio — uma força dos melhores contra-atiradores que os mujahidin conseguiram reunir — está sendo rasgado por abutres do outro lado da montanha.
O céu está cinza, mas seco demais para qualquer coisa senão poeira. Raios de calor riscam o céu e se espatifam no deserto. Meu suor está me escaldando dentro de meu traje ghillie e não como nada há quase uma semana. Estou coberto de picadas de mosquito e esqueci de tomar minhas pílulas anti-malária. A metralhadora Browning é tão pesada que meus braços doem mesmo com o tripé. E ainda por cima, meu capacete está abafado. Todo esse orichalcum no forro para manter os pensamentos de Anwar fora. Infelizmente, ele também mantém os meus dentro.
Harriet vê como meus dedos se fecham em torno do rifle e se aproxima de minha forma deitada, colocando um pedaço de tabaco de mascar em minha boca. A mastigação libera minha energia nervosa e a nicotina faz o resto. Meus dedos amolecem e minha cabeça clareia. Eu aperto a mão dela e ela aperta de volta.
Expire. Eu ajusto a Browning ligeiramente e centralizo minha mira em um pequeno raio de luz sob uma saliência castanha empoeirada do outro lado da montanha. Pode ser uma miragem de calor ou um lutador da liberdade com minha equipe na mira. Tenho certeza de que matamos todos eles… quero fazer essa aposta?
Puta que pariu. A nicotina perfura a bola de ódio em minhas entranhas; sua carga cáustica me inunda com uma sensação de raiva justa. Falsamente justa, mas de que outra forma você mata por motivos falsos? Todo mundo tem seus caminhos. Mann bebe; Konddraki é racista; Clef só gosta de matar pessoas. Pelo menos Harriet —
Um estalo agudo descarrilha minha linha de pensamento, pegando amplitude e distorção conforme salta ao redor da cratera: a fonte, um rifle Lee Enfield em algum lugar do outro lado da montanha. Harriet empurra minha mira para baixo até destacar uma coisa irregular com formato de homem no meio da rua da vila — um cadáver soviético mumificado que retiramos das areias do deserto na samana passada, sem o braço e a maior parte da barriga. O zumbi dá mais um passo cambaleante pela rua da vila antes de cair de costas, um buraco de bala onde deveria estar um de seus olhos. Cortesia de um dos mujahidin sobreviventes.
Harriet range os dentes e respira fundo. O rosto de minha esposa se fragmenta em pedaços estáticos, emitindo sílabas de uma língua morta-viva que rasteja sobre minha pele, infesta as linhas de comunicação e rasteja pelo espaço até a orelha do cadáver, ameaçando-o até levantar e apontar um dedo em decomposição em direção ao seu assassino. Satisfeita com a resposta, o rosto de Harriet se recompõe enquanto ela termina o cântico infernal. O soviético continua apontando, esperando por ordens que nunca virão.
“A bala atingiu do norte,” Harriet diz em seu fone de ouvido. “Com base no ângulo, eu estimaria um quilômetro para cima. Vê alguma coisa?”
“Tem uma saliência naquele lado que eu estava examinando,” eu digo. “Mann, pode dar uma olhada?”
Uma metralhadora Browning pesada late uma vez em resposta. Um momento depois, Mann fala. “Morte confirmada. Sobrou alguém?”
Harriet se concentra novamente, recitando uma canção curta em uma linguagem crucificada que morde em nossos ouvidos e espera.
“Só o alvo,” diz ela depois de um momento.
Clef segue logo atrás. “O terceiro olho iluminou o quadrante noroeste da vila. A escola. todos os pontos, confirmem olhos no alvo.”
Eu olho para a saliência por mais um segundo, então aponto minha mira para a escola. O brilho é metafórico, mas se o terceiro olho do homem do ukulele está vendo algo, provavelmente é Anwar.
“Olhos no alvo,” todos nós repetimos.
“Harriet? Manda ver.”
Nós todos prendemos a respiração enquanto meia dúzia de cadáveres armados se reúnem fora da escola. Cinco deles correm para as janelas; um se arrasta até a porta da frente. A poeira gira em torno deles.
Silêncio absoluto.
Seis corpos mortos vivos se chocam contra o edifício. Em resposta, seu telhado se transmuta espontaneamente em fogo e fumaça. Pairando sobre ele está um homem com um turbante branco imaculado, colete bordado e fogo nos olhos.
“Fogo!” late Kondraki.
Quatro dedos puxam seus gatilhos. Quatro canhões eletromagnéticos experimentais gritam. Quatro explosões hipersônicas ressoam no ar enquanto nossa balas de bronze-berílio perfuram o corpo de Anwar em Mach-26, explodindo-o em um fogo de artifício de osso e sangue. Os sons ricocheteiam pela cratera, sobrepujando todos os outros em uma forma perversa de camuflagem. Enquanto o som se dissipa, nós expiramos.
Anwar reaparece imaculado em minha mira.
Clef só tem tempo suficiente para dizer: “Ele está vivo —” antes de se tornar bidimensional em uma explosão de sangue. O punho de Anwar se estende do espaço entre suas palavras e esmaga Mann como um inseto. Kondraki tem ele na mira — puxa o gatilho — morre gritando. Mas uma bala BMG de bronze-berílio perfura o tronco cerebral de Anwar enquanto ele aparata entre eles. Anwar titubeia, grita, irrompe em uma imagem residual enquanto tenta estender a mão para Harriet.
Nós não respiramos. Um milhão e meio de pensamentos passam pela minha cabeça antes de uma explosão abaixo descarrilhar eles. É Anwar, pairando sobre a vila: estilhaçando-se no ar, segurando a cabeça a cada poucos segundos antes de seus membros e a cabeça se desprenderem de seu torso e então se reconectarem.
“Clef? Mann? Kon?” Harriet sussurra apressadamente no comunicador. Sem resposta. Ela recita uma pequena canção em uma linguagem crucificada que morde em nossos ouvidos e espera.
Sem resposta.
“Porra!” diz Harriet. “Ele esmagou eles. Não tem nem mesmo o suficiente para controlar!”
Ela aperta minha mão. “Somos só nós.”
Eu sinto antes de ouvir — algo quebrando meu capacete e sacudindo meu cérebro, então o grunhido reflexivo de Harriet enquanto algo bate em seu peito, e então o latido distorcido da Lee Enfield proclamando a morte dela. O cerrado morde nossas roupas a cada solavanco enquanto rolamos ladeira abaixo em direção à segurança do cume.
Eu bato na pedra primeiro e então Harriet bate em mim, me enrolando com sua mochila. Minha cabeça está girando e eu não consigo respirar, mas ainda me sento e rolo Harriet de costas. O reflexo me faz inspirar; a dor atinge meu diafragma e faz minha cabeça ficar imóvel. Eu inspiro novamente e corto suas roupas para examinar o dano.
Seu traje ghillie está encharcado de sangue. O ferimento de entrada é feio; a ferida de saída é ainda mais feia. Ela agarra minha mão enquanto sua respiração fica mais tensa. Minha cabeça queima e meu estômago se embrulha. Eu não entendo. Não tinha mais ninguém para disparar. Harriet se certificou.
E mesmo assim tem um buraco em sua aorta. Ela vai morrer e não há nada que eu possa fazer a respeito. Minha respiração acelera e minha mão treme na dela. Seu aperto aumenta e ela espirra minha mão na poça pegajosa de sangue que se acumula em seu traje. Eu imediatamente entendo o significado e mergulho os dedos trêmulos na poça.
Harriet começa a cantar — baixinho, em uma linguagem martirizada, enquanto eu desenho uma série aleatória, mas intricada de pentagramas embutidos em sua testa. Sua canção se acalma conforme sua respiração desacelera, mas a letra é estável. Assim que ela termina a canção, ela aperta minha mão mais uma vez e eu aperto de volta. Então beijo sua testa enquanto ela morre.
Um choque elétrico sobe minha mandíbula até meu sistema límbico conforme a alma de Harriet Eisenberg, necromante e pianista, entra em meu hipocampo. O processo parece uma viagem agressivamente ruim de cetamina.
Minha nossa! diz Harriet em meu circuito fonológico. Não tinha certeza de que funcionaria.
Você me disse que tinha testado isso! Eu penso.
Sim! Em mim mesma.
Eu rolo sobre minhas costas, atrás de um pinheiro próximmo, e expiro em alívio.
O que diabos aconteceu? Você disse que o apoio dele estava morto!
Ele estava! Harriet parece tão frustrada quanto eu. Ninguém disse que ele conseguia ressuscitá-los.
Como você está se sentindo?
Doente, Harriet admite. Não consigo alcançar nenhum de nossos recursos terrestres.
Ai. O que fazemos com o seu corpo?
Deixe-me ver…
Sílabas em uma língua morta-viva ecoam em meu circuito fonológico. Eu fico olhando fixamente para o cadáver, esperando que ele se sente. Ele não se senta.
Por que não está funcionando?
Eu estava com medo disso. Querido, você é o homem mais engraçado, corajoso e inteligente que conheço, mas… seu cérebro está meio apertado.
Ooog. Devemos abortar?
Absolutamente não, pensa Harriet. Ele está ferido — jamais teremos uma chance melhor. Vamos. Vamos pegar aquele desgraçado e daí vamos para casa.
Eu inspeciono meu rifle com cuidado e encontro um fusível queimado na lateral. Saquear o cadáver de minha esposa por um novo me faz sentir como um idiota, mas Harriet parece entretida. Eu coloco o fusível e um novo cartucho no lugar, então caio de barriga e começo a engatinhar.
Está indo devagar. Tenho medo de espirrar e espero ser virado do avesso a qualquer momento. Enquanto subo a encosta, meus pensamentos voltam para a primeira vez que me encontrei com Anwar — em Kabul, três anos atrás.
“Charles?” Essa é a primeira coisa que ouço do homem com fogo nos olhos: homem magro e marrom em jeans e uma camiseta, com uma barba preta aparada e um topete baixo, guardando um isqueiro morto em seu bolso do lado de fora do cinema. A noite está escura e estou inclinado a compartilhar; eu o vi sair do meu auditório antes de mim. Somos amigos por bobina de filme.1
“Charless Gears?” diz ele.2
Eu acendo o cigarro dele primeiro para ser legal, em seguida, coloco a mão nos bolsos e tiro um maço de papelão vazio. Ele bufa uma vez com a minha perplexidade — antes que eu possa pensar em ficar irritado, ele oferece um cigarro. Aceito o presente e o acendo com gratidão.
Ele inspira e então fala em dari, inclinando a cabeça para o cinema. “< Você está aqui para me matar? >”3
Eu encolho os ombros. “< Minha esposa está morta. Alguém tem que pagar por isso. >”
“< Você! >” diz o homem. “< Você a trouxe aqui. A morte dela está em você. >”
“< Tentei impedi-la! Tentei arrumar outra pessoa. Ela veio para me manter seguro e você matou ela, >” eu o desafio.
“< Eu não matei ela, e você não precisa vir. >” Ele exala pelo nariz, obseravndo a fumaça subir. “< Poderia — nn — poderia ter feito outra pessoa vir colocar uma bala na minha cabeça. Pareceria menos pessoal. >”
“< Você quer que eu me desculpe? >” Eu digo. “< Porque eu vou. Anwar, sinto muito que você tenha que morrer. Lamento que minha esposa esteja morta. Eu gostaria que essas coisas não tivessem que acontecer. >”
“< Elas não teriam acontecido se você não tivesse vindo aqui, >” diz Anwar.
“< Se não fosse eu, teria sido outra pessoa! >” Fumaça de tabaco rola sobre minha língua. “< Tinha que ser eu. Você merecia isso pelo menos. >”
“< Eu me sinto — arg — honrado, >” diz o homem. Nossos cigarros acabam quase ao mesmo tempo. Ele me oferece outro. “< Que privilégio é morrer em suas mãos, meri jaan! >”
“< Você preferiria que o Kondraki fizesse isso? >” Eu digo. “< Porque ele teria chamado você de cabeça-de-toalha enquanto o fizesse. >” Eu pego meu isqueiro e o acendo. O isqueiro está indo para os meus lábios quando escorrega da minha mão e se quebra no concreto.
Eu praguejo. Anwar parece entretido. “< Você tem muito a pagar. Por sorte, eu tenho uma maneira de você se redimir. Para garantir que Harriet não tenha morrido por nada. >”
Em vez de tirar seu próprio isqueiro, ele se inclina para frente de modo que nossos bastões da morte se toquem. Estou perplexo demais para fazer qualquer coisa; ele se mantém firme por alguns segundos enquanto as brasas de seu cigarro acendem o meu.
“< Me ajude a fingir minha morte. >”
Ele se afasta enquanto eu respiro. Segundos se passam. Eu balanço a cabeça. < “Ok.” >
“< Excelente. Ach — aquele cachorro branco me pegou no jeito, Chuck. Vou precisar de sua cooperação máxima… >” diz ele enquanto gira e começa a caminhar pela noite.
Minha mão cai para meu quadril, apertando em torno da coronha de uma Makarov. Nesta distância, não terei problemas em acabar com você. Eu respiro fundo, olhando sua nuca. Ele faz uma pausa, parado na calçada, iluminado por um poste de luz.
“< Chuck? >” ele chama.
Meus lábios sugam um cigarro que não está lá enquanto uma dor aguda irradia pelo meu braço e um sol inesperado me cega. Quase grito, mas enterro meu rosto na terra no último segundo.
Chuck! pensa Harriet. Respire. Respire…
Eu obedeço, voltando de volta ao lugar e exalando silenciosamente enquanto limpo pedaços de grama do meu rosto. Estou quase na ponta da crista de novo — onde estava quando ela morreu.
Você não estava dizendo nada. Tive que te dar uma queimadura indiana. Você está bem, querido?
Eu — fui pego em alguns pensamentos. Antigas histórias de guerra.
Melzinho, agora não é a hora. Faça isso no avião para casa.
Desculpe, eu penso enquanto rastejo pela última jarda agonizante e olho para a cratera horrível.
Cadáveres cambaleiam cegamente pela vila, tropeçando e se espatifando. Eles rastejam sobre joelhos despedaçados e arrastam seus torsos desmembrados para a frente pelo único braço restante. Muito acima do exército disperso dos condenados, a meio caminho entre a terra e o céu, Anwar se reconstitui. Seus membros estão presos, mas agora eles estão girando em torno de seu corpo: mãos, pernas e até mesmo cabeça viajando ao redor do perímetro de seu corpo. Eu me esforço para encontrar uma razão para conter fogo —
Ugh, pensa Harriet. De jeito nenhum eu quero arriscar aquele tiro.
Concordo, eu penso.
Vamos encontrar seu —
Um gêiser de terra salpica meu rosto e me faz cambalear. Uma fração de segundo depois, ouvimos o latido distorcido ecoando de uma Lee Enfield.
Fodeu!
O último atirador. O desgraçado deve ter me visto. Sem tempo para encontrar outro lugar. Temos que nos posicionar aqui, sob este aglomerado de pinheiros.
Pelo menos ele ainda precisa puxar o ferrolho de volta.
Minha mira destaca a saliência do outro lado do cume, centrada em uma pedra grande o suficiente para alguém deitar perto dela. Há uma imprecisão em torno do espaço que pode ser refração do calor. Ou uma coleção de padrões mentais enganando meu cérebro para ignorar o homem cuja mira está centrada em minha testa.
Eu quero lançar esses dados?
Um pedaço plano de neblina na base da rocha repentinamente torna-se um branco nítido — como um feixe de luz através de uma cortina. Um reflexo, direcionado diretamente para mim.
Eu puxo o gatilho. A Browning chuta uma bala de bronze-berílio no corpo de um homem em velocidade hipersônica. Não no meu.
Ainda vivo um segundo depois de ouvir o estrondo, eu exalo de alívio. Sem dúvida, ele já estava alinhando o tiro quando o vi. Ele pode até ter puxado o gatilho primeiro — minha bala só era mais rápida.
“< Belo tiro, >” diz Anwar. “<Espetacular, a maneira como você coloca uma bala no estômago de um jovem assim. Até mesmo um novo recorde pessoal — dois quilômetros!>”
Ele se apoia no travesseiro. O sol está muito alto para ver pela janela agora e a cama está dura, com lençóis brancos como casca de ovo, mas o cobertor está quente demais para sair.4
“<Ele atirou na minha esposa!>” Eu digo em um dari grogue e quebrado. “<O que eu deveria ter feito?>”
“<Aquele ghoul?>” responde Answar. “<Você se casou com aquilo?>”
“<O nome dela,>” eu digo. “<é Harriet.>” Ela consegue controlar os mortos — e ela é extremamente boa no que faz.>”5
“<Você se relaciona com esse tipo de pessoa?>”
“<Sodomia é punível com morte, não é?>”
As sobrancelhas de Anwar se erguem. “<Nós importamos isso do Ocidente.>”
Eu me deito e espero. “<Não procure um pedido de desculpas. Aquele atirador teria me matado, caso contrário.>”
“<Ele teria, não teria?>” Anwar languidamente pega minha mão. “<Um menino de dezessete anos que queria ser cantor, recebeu uma arma quebrada mais velha que o pai e mandaram que ele atirassem em um homem invisível, tudo porque ele gostava de brincar com estilingues. Ele teria absolutamente pegado você, o agente da Fundação de rachadura com baldes de sangue e um rifle de shaytan nas mãos.>”
“< Você é o homem de Deus. Você poderia ter salvado ele, >” eu jogo, pressionando Anwar em suas costas. É muito cedo para fazer qualquer coisa, exceto colocar um queixo curioso em seu peito e envolvê-lo em meus braços.
“<Você está certo!>” diz ele, olhando para o teto. “< Talvez eu pudesse tê-lo tornado invisível. Talvez eu pudesse ter parado uma bala feita de metal intocável. Talvez eu pudesse ter dito a ele para sair correndo. >”
Ele suspira. “< Eu não poderia porque eu não posso. Gharsanay estava morto no momento em que entrou na história.>”
“< Quem? >”
“< Um adolescente. >” Anwar estica o pescoço para encontrar meu olhar. “< Como você faz isso — nos reduzir tão instantaneamente? O que faz de mim um deus e dele um alvo — mas nenhum de nós dois homens? >”
“< Você é uma arma >” eu digo. Minha mão aperta em sua pele. “<Eu tenho três camaradas mortos como prova disso.>”
“<E você não é?>” ele devolve. “< Quantos afegãos têm suas balas neles? Quantos de meus camaradas sua esposa arrancou do chão para me perseguir? Quantas mais crianças vão andar sobre minas terrestres? Por que nossas mortes são normais? >”
“<Elas não são>” Eu explodo. “< Esta é literalmente a opção de melhor cenário. Colocamos uma divisão inteira de pessoas pra ver o futuro para ter certeza! >”
“<Melhor cenário para quem?>” Anwar coloca a mão nas minhas costas e me pressiona contra ele. “<Chuck, eu só quero jogar futebol e assistir cinema. Em vez disso, tenho que me prostituir para os americanos porque não são eles que estão atirando em mim!>”
Ele me aperta com mais força e morde meu cabelo. Desgraçado. Eu cerro meus dentes e me empurro para fora de seus braços, rolando para o lado para longe dele. Sua respiração desce pelo meu pescoço enquanto ele se aproxima e me pega. “< Por favor, Charles. Eu preciso da tua ajuda. >”
“< Para forjar sua morte, >” eu respiro. Ele é quente e macio e estimulante. “< Estou dentro… com uma condição. >”
Eu posso senti-lo cerrando os olhos para mim. “<Que é…?>”
Eu rolo de modo que nossos narizes se tocam. Seus olhos são de um belo tom de avelã. “<Minha esposa. Harriet. Traga-a de volta à vida.>”
Anwar pisca e lambe os lábios. “< Eu não tenho esse poder. >”
“< Já estou na sua cama, não precisa mentir pra mim, >” eu digo. “< Você trouxe Gharsanay de volta, não trouxe? Ressuscite minha esposa e diga a ele pra deixá-la em paz. >”
“< E então você vai ajudar? >” ele pergunta esperançosamente.
“< E então nós vamos ajudar. >”
“< Você está brincando comigo? >” Anwar se senta ereto. “< Ela vai atirar na sua cara no momento em que você sugerir isso! >”
“< Ela não vai! >” Eu me apoio nos cotovelos. “< Eu apostaria minha vida nisso. Eu não faço parte do seu plano ate que ela faça. >”
No lado de fora, nuvens obscurecem o sol e escurecem a sala. Anwar passa as pernas pela beira da cama e contempla a parede.
“< Você precisa da minha ajuda, meri jaan, >” eu digo. “< Negócio fechado ou não? >”
Harriet range os dentes e respira fundo. O rosto de minha esposa se fragmenta em pedaços estáticos, emitindo sílabas de uma língua morta-viva que rasteja sobre minha pele, infesta as linhas de comunicação e rasteja pelo espaço até a orelha do cadáver, ameaçando-o até levantar e apontar um dedo em decomposição em direção ao seu assassino. Satisfeita com a resposta, o rosto de Harriet se recompõe enquanto ela termina o cântico infernal. O soviético continua apontando, esperando por ordens que nunca virão.
“Ei, querida,” eu digo.
Harriet olha para si mesma e depois para mim. Então eu a puxo colina abaixo e ela está sentada em cima de mim e nós estamos nos agarrando como adolescentes de novo. Suor enche meus olhos e mosquitos beliscam meu rosto, mas tudo que me importa é a língua dela dentro da minha boca e suas mãos mexendo nas minhas calças.
“< Charles! Faça isso outra hora, >” Anwar me repreende. Eu sacudo minha cabeça. Há uma mesa na minha frente: branca, quadrada e de metal, com um desenho filigrana intrincado embutido na parte superior. Anwar está sentado em uma cadeira de metal preto à minha esquerda. Eu me lembro deste lugar agora: um café em Kabul.6
Três anos atrás. dois auditores da Fundação sentaram-se em cadeira idênticas à nossa frente. Neste diorama roubado da memória, eles são Harriet, à minha direita — e um jovem garoto afegão na minha frente, vestindo um traje ghillie que é dois tamanhos muito grande para ele. Ele é muito jovem para o olhar distante em seu rosto.
“Gharsanay!” Anwar diz para o garoto. Ele estremece e olha para Anwar. “<Irmão! O que está acontecendo?>”
Harriet me olha de soslaio. Esqueci que ela não fala a língua.
“< Está tudo bem, >” Anwar diz a Gharsanay. “< Estou aqui. Vou cuidar disso. >”
“Eu também te salvei,” ele diz a Harriet em inglês. Quatro cafés chegam à nossa frente, em uma bandeja indefinida segurada por um homem sem rosto vestindo roupas que assumo serem estereotípicas. O café não tem gosto.7
Anwar coloca as mãos sobre a mesa. “Harriet. Eu trouxe você de volta à vida a pedido de Charles. Encare isso como uma demonstração de boa fé.”
Os olhos de Harriet piscam em minha direção. “Pra que?”
“Eu preciso da ajuda de Charles. Deixe-me forjar minha morte e… bem, por falta de um termo melhor, coabitar com ele.”
“Com licença?!” nós dois dizemos. O garoto apenas parece confuso.
“Ouçam,” diz Anwar. “Charles é especial.”
“Claro que ele é, porra,” diz Harriet. “Seus poderes apodreceram seu cérebro se você acha que vai encostar um dedo no meu marido.”
“Não. Ele é especial,” diz Anwar. “Posso ler mentes e fazer milagres — não porque sou um homem de Deus, mas porque posso vê-Lo! O ser no tear do destino, o ser tecendo os fios do destino. Eu posso puxar esses fios. Foi assim que trouxe você e Gharsanay de volta à vida. Eu mudei essas histórias.”
“O que isso tem a ver comigo?” eu pergunto.
“Há forças em camadas trabalhando aqui,” continua Anwar, “guiando as histórias que nos contam e as histórias que escrevemos. Estamos propagando seus interesses por meio de forças nas quais eles até mesmo nos tornaram avessos a pensar. Mesmo Ele não é imune a eles — eles influenciam o próprio tecido do destino. Eu só posso tocar no que já foi escrito — ajudar as pessoas que o destino escolhe nomear.”
Ele aponta para mim. “Mas Charles, essas forças trabalham para você. As forças que controlam o destino trabalham para os homens. Para homens como você.”
“Você quer se apoderar desses fios,” eu digo em voz alta. “Puxá-los de modo que eles deem às pessoas que você deseja um final feliz.”
“Para que eles deem a todos um final feliz!” diz Anwar. Ele bebe metade do café e limpa a boca. “A guerra dos soviéticos não faz sentido. A Fundação é inutilmente cruel. Vamos combinar nossas forças; Deixe-me viver em sua mente — você mantém controle de seus pensamentos, seu corpo, seu ser. Eu puxo os fios do destino para acelerar sua ascensão ao poder. Alcançamos o topo da Fundação — assumimos controle, mudamos o status quo, tornamos este mundo um lugar melhor.”
“Nossa missão é maior do que a política,” diz Harriet.
“Sua missão é política!” diz Anwar. “Temos os mesmos objetivos. A normalidade não significa estagnação. A normalidade não significa defender as estruturas de poder que agarram nossos pescoços e esfregam nossos rostos na terra. É uma ficção alimentada a todos nós por nossos mestres.”
Ele segura minhas mãos. Harriet olha entre nós. Não consigo analisar a expressão em seu rosto e isso me preocupa.
“Normal deveria ser um mundo onde esta guerra nunca aconteceu — mas também pode ser um mundo onde nenhuma guerra mais acontecerá. Por favor!”
Ele olha diretamente para Harriet.
“Eu quero o melhor para todos nós! A Fundação teria deixado você ficar morta!”
“Não,” diz Harriet. “Eles me ensinaram a ficar morta-viva.” Sua voz se aprofunda e seu rosto se estilhaça. Eu desvio o olhar enquanto ela canta em uma linguagem martirizada.
Anwar parece perplexo. “O que ela está falando?”
Marcas de mordidas aparecem em seus ombros. Então seu corpo. Ele grita.
Pisco furiosamente, lutando para me adaptar ao crepúsculo repentino. Eu escondo sob minha capa de poeira por um momento por instinto, então ouço os gritos lá debaixo. Minha mira destaca Anwar renascido — um homem com um turbante branco imaculado, colete bordado e fogo nos olhos. Corpos apodrecidos em uniformes profanados o mordem e queimam instantaneamente ao toque.
Harriet me puxa e me rola para trás dos pinheiros. Um momento depois, o rugido de um homem oblitera por completo as árvores. Deve ter sido assim para Opperheimer em Trinity — um clarão ofuscante, um calor escaldante que nos força a pressionar nossos rostos na terra em busca de alívio, e um terremoto que arranca meu dentes sisos de suas órbitas. Eu levanto meu rosto com cuidado, compartilhando um olhar com Harriet, então eu os cuspo.
Espiamos por cima do cume. Anwar está no chão, cercado por enormes pilhas de cinzas. Não sobrou nada da vila.
E então uma bala atravessa a Browning e enfia milhares de lascas de metal e vidro na minha lateral. Eu gemo de dor e rolo para baixo, segurando meu braço ferido. Gharsanay.
“Charles!” diz Harriet. Ela desliza colina abaixo e examina o ferimento. Eu tento mover meu ombro e ele me dá um tapa na cara por isso. Minha careta diz a Harriet tudo o que precisamos saber.
“Isso é normalidade?” Anwar berra, sua voz ecoando não pelo ar, mas por nossas mentes. “Vidas arruinadas, casas destruídas, uma cultura inteira destruída porque eu estava perto dela?”
Eu olho desesperadamente para Harriet. Estou sem ideias. Estamos praticamente mortos.
Hariet não responde a isso da mesma maneira. Ela se levanta e puxa um lenço branco dos bolsos do traje, subindo a colina e agitando-o.
“Harriet?” eu pergunto. Ela se vira e dá uma piscadela para mim.
“Nos rendemos!” diz Harriet. “Uma aposta. Reconstrua a cidade, funda-se com Charles. Em troca de nossas vidas.”
Posso sentir a confusão de Anwar sem nem mesmo vê-lo. A exata mesma sensação está passando por mim.
“Faça isso,” ela o convida. “Reconstrua a cidade.”
A sensação de uma chapada de cetamina, misturada com uma ressaca devastadora e uma vontade repentina de vomitar me invadiu. No momento seguinte, eu olho para uma coleção de casas e ruas espreitadas por cadáveres soviéticos que desenterramos do deserto. O único nome que importa pertence a Anwar. Seu apoio — uma força dos melhores contra-atiradores que os mujahidin conseguiram reunir — está sendo rasgado por abutres do outro lado da montanha.
O céu está cinza, mas seco demais para qualquer coisa senão poeira. Raios de calor riscam o céu e se espatifam no deserto. Meu suor está me escaldando dentro de meu traje ghillie e não como nada há quase uma semana. Estou coberto de picadas de mosquito e esqueci de tomar minhas pílulas anti-malária. A metralhadora Browning é tão pesada que meus braços doem mesmo com o tripé. E ainda por cima, meu capacete está abafado. Todo esse orichalcum no forro para manter os pensamentos de Anwar fora. Infelizmente, ele também mantém os meus dentro.
Meus braços doem. Eu tenho uma Browning funcional. E uma linha de visão para Anwar.
Harriet late uma curta frase em uma linguagem martirizada. Uma horda de monstros se aproxima do homem, pulando sobre ele e rasgando sua carne.
O estalo de uma Lee Enfield ecoa e atinge os zumbis. Só levo um momento para levar a mira para a saliência do outro lado do cume, centrada em uma pedra grande o suficiente para alguém deitar perto dela. Há uma imprecisão em torno do espaço que pode ser refração do calor.
Puxo o gatilho e olho de volta para Anwar. Seus olhos queimam enquanto ele espalha a destruição, então eu atiro no olho. Ele colapsa no ar, pairando sobre as mãos e os joelhos.
“< Por favor! >” ele geme. Minhas mãos tremem. Eu não olho para Harriet. O canhão eletromagnético grita novamente, seguido por Anwar assim que ele remove seu outro olho.
“< Charles… >” ele geme tristemente, afundando para o chão.
A horda de zumbis cai sobre ele. Harriet e eu agarramos nossos crânios enquanto a dor absoluta nos oprime: a mordida instintiva da traição e a simples queimadura física de ser comido vivo. O rosto de Anwar está distorcido em um ricto de agonia. Seu grito é inaudível sob o range de dentes. Eu não consigo suportar olhar para isso — então eu o ajudo da última maneira que posso.
O helicóptero vem nos buscar no dia seguinte, nos arredores da montanha. Nunca estive mais feliz em ver o pelicano-oliva e realmente estou ansioso para machucar meu cóccix em seus assentos. Harriet mal fala comigo desde que matei Anwar. Eu não sei o que aconteceu com Gharsanay. Espero ter errado.
Estamos no helicóptero e nos sentamos. Olho para o deserto afegão pela última vez antes de a rampa subir e nos selar no pássaro abafado.
A viagem é tranquila, mas tensa. Harriet nunca fica tão quieta. Ela está sempre me animado com os pilotos. Eu também não sei como iniciar uma conversa — ela sempre faz isso por mim. Eu tento segurá-la, mas ela empurra meu braço.
O piloto anuncia que estamos a uma hora de Kabul e anima Harriet. Ela pega minha mão, então para, olhando diretamente para a cabine.
“Harriet?” Eu pergunto, estendendo minha própria mão.
Minha esposa não responde. Eu espero, meu estômago revirando e minha cabeça latejando.
“Charles…” a voz de Harriet está baixa. “Você sempre foi aberto comigo, certo? Você sempre me diz a verdade?”
“Sempre.”
“Você dormiu com ele?”
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