O machado caiu na mesma medida de força da machadada anterior, separou o toco de lenha em duas achas que pularam para fora do cepo de madeira.
Yuri esfregou o suor da testa e ajustou novamente as luvas, posicionou uma das achas de lenha novamente no cepo e golpeou, a madeira mais uma vez dividida em duas pulou.
Ele sentia o vento gelado tentando se infiltrar por baixo do casaco, mas o corpo estava quente, o exercício contínuo de rachar lenha o mantinha aquecido. Continuou na mesma labuta por mais meia hora e por fim se permitiu esticar os músculos das costas doloridas e olhar ao redor.
A vila quase era bonita assim coberta pela neve, o branco cegante dominando todos os espaços, do poço no centro da praça aos telhados da pequena igreja, agora aveludados de neve, a transparência das estalactites de gelo dos beirais, o brilho da neve recém caída no chão.
Quase.
Yuri se abaixou para recolher a lenha que havia cortado. Metódico, recolheu cada lasca de madeira, cada estilhaço. A madeira era preciosa e estava acabando, logo ele teria que se aventurar pelos pinheiros e procurar uma nova árvore, uma que já estivesse morta e seca, lenha nova não queimava bem, produzia muita fumaça.
Se fosse sortudo o suficiente de encontrar uma árvore em condições assim, ainda havia a questão de todo o trabalho pesado. Cortar ao menos um mês de lenha era trabalho por no mínimo três dias.
Estava cansado, não sabia se teria forças para derrubar uma nova árvore… fez uma oração silenciosa pedindo por mais força enquanto amarrava a lenha e a colocava nas costas, respirou fundo e começou a penosa tarefa de voltar para casa.
Não que fosse longe. O depósito de lenha ficava a menos de dez metros da porta, mas andar com neve pouco acima do joelho fazia de cada metro uma conquista.
Entrou dentro da pequena cozinha mais cansado do que estivera nas últimas horas de exercício. A mulher foi ajudá-lo, tirando o feixe de lenha de suas costas. Com os esforços de ambos, conseguiram colocar a lenha ao lado do velho fogão. A esposa já colocando achas novas de madeira para queimar.
A temperatura logo se elevou, as duas meninas vieram se sentar mais próximas ao fogo, esticando as pequenas mãos em direção a chama, a palidez dos rostos infantis sumindo por um momento, um pouco de sangue circulando nas pequenas maçãs dos rostos jovens. A mãe satisfeita voltou para sua cadeira de balanço e novamente se debruçou sobre a costura. Yuri atiçou o fogo por um momento e murmurou:
—Medovyy, vi a filha mais nova de Novikov bater em nossa porta, o que queria?
A mulher respondeu sem deixar de costurar a colcha de retalhos na qual trabalhava:
—Da, Novikov pegou dois coelhos, ela veio trazer um como agradecimento pela lenha da semana passada… teremos carne para o ensopado.
—Isso é bom! O homem é um bom vizinho… tem notícia dos pescadores?
Os dedos que agilmente brandiam a agulha pararam.
—Não, ainda nada.
Yuri deu de ombros tentando transmitir uma calma que não sentia:
—Talvez tiveram que mudar de local mais de uma vez, isso geralmente atrasa a pesca, o gelo é grosso e cada mudança pede novos buracos.
Ele percebe as meninas aproximando demais as mãozinhas do fogão quente, apenas murmura:
—Anya e Yelena Yurievna, se quiserem conservar os dedos ainda grudados nas mãos, se afastem um pouco.
As duas o olharam, os mesmos olhos azuis do pai em uma muda interrogação, Yuri se abaixou e segurou as quatro mãozinhas entre as suas calejadas e grandes. Soprou sobre elas as aquecendo com o hálito, sua voz era terna:
—Quando estamos com frio a pele engana, ainda parece frio e chegamos mais perto do fogo o que acaba queimando a palma e os dedos… Gosto dos seus dedos aí onde estão Uvazhayemyye.
Ambas afastaram as mãos com risadinhas, serem chamadas de queridas era um deleite para as duas e Yuri novamente pensou no quanto se pareciam apesar de Anya ser dois anos mais velha.
Se levantou, o olhar passeou pela cozinha, viu a tigela contendo o coelho já eviscerado e sem pele em cima da mesa.
Se aproximou da tigela, um coelho de bom tamanho, parecendo saudável, exceto por uma mancha grande na coxa traseira, a carne ali não era rosada como o resto, era mais avermelhada, mais estriada, parecia tecido cicatrizado.
Uma aversão instantânea o tomou, algo instintivo. Murmurou para a mulher:
—Não sei Svetlana, isso aqui parece doente. Talvez fosse melhor jogar fora.
Pela segunda vez as mãos que costuravam pararam e os olhos femininos encaram o marido.
—Podemos cortar fora a parte estranha.
—Foi você que o limpou?
—Net, Olga já o trouxe limpo.
—Olga explicou como o pai pegou os coelhos?
Com um suspiro a esposa deixou o trabalho no colo, sem nunca deixar de encarar o marido:
—Ela disse que foram presentes de Deus, o pai estava tentando encontrar alguma batata que tenha sobrevivido na horta, quando os dois coelhos vieram pulando na direção dele.
A aversão de Yuri aumentou.
—Uma vez na escola quando eu era ainda um menino, aprendi sobre uma doença que fazia os bichos infectados pularem na direção de seus predadores, eu tinha muito medo daquilo.
—Yuri, o coelho não tem toxoplasmose.
—Quem garante Medovyy? são todos roedores.
Antes que a mulher se erguesse, o lenhador pegou a tigela e saiu novamente.
Ele andou pelo quintal e passou pela precária cerca, a neve novamente atrapalhando seu progresso, mas continuou andando até o que considerou uma distância segura da casa.
Olhou ao redor.
Estava próximo a alguns pinheiros mirrados, mais a frente muito ao longe o Lago Baikal brilhava em seu sono congelado.
Olhou novamente para a tigela pensativo. Estava privando sua família da primeira carne em mais de duas semanas.
O outono geralmente era generoso com eles, havia a colheita das pequenas hortas, a caça de antílopes pesados se preparando para o inverno e os peixes do lago.
Neste ano os peixes e a caça desapareceram.
Os moradores da vila olhavam descrentes a falta das fileiras e mais fileiras do peixe Omul colocados no varal para secar, não haviam os grandes esturjões de carne rica e gorda.
Ao lembrar do gosto do esturjão, da gordura quente nos lábios, a boca de Yuri aguou. Novamente pensou nas filhas e no quanto aquele inverno prometia ser o pior.
Seu asco ao olhar o coelho não diminuiu.
Cavou um buraco na neve usando as mãos até chegar ao solo congelado e colocou o coelho lá com tigela e tudo, enterrando a coisa com cuidado. Respirou fundo com a sensação de dever cumprido e voltou para casa.
Mais tarde sentados à mesa do jantar ele quase voltou para pegar o coelho, o olhar de Svetlana para ele por cima do prato de sopa de nabo com repolho era magoado e doloroso.
No dia seguinte toda a família de Novikov caiu doente. Algo que parecia sarna, mas não era, pareciam tumores, mas não eram. Os membros de toda uma família doentes e choramingando abateu o ânimo dos outros moradores. Quando a morte veio para todos os membros da família em menos de algumas horas os aldeões suspiraram em alívio… com o peito oprimido pela culpa? Com certeza.
Mas ainda sim, havia alívio quando os corpos foram guardados no porão, era impossível cavar a terra dura e congelada… era preciso esperar a primavera para fazer os ritos.
Naquela noite Svetlana chorou abraçada ao marido.
—Olga tinha só 7 anos Yuri… nossa pequena Anya é apenas um ano mais velha… não consigo parar de imaginar nossa menina morta… que o inferno carregue aquele coelho.
Yuri a confortou como pode, pensou na família do vizinho agora jazendo do porão da casa ao lado… estava quase adormecido quando pediu encarecidamente em oração que qualquer deus nas alturas guardasse suas meninas.
Os animais contaminados com aquela doença começaram a surgir pela vila: renas, coelhos, e lobos, todos com pedaços de carne pulsante e estranha saindo do pelo, os moradores abatiam esses animais e os olhavam no mesmo horror fascinado. As bocas salivavam pela fome, as mãos tremiam pelo medo.
O inverno avançou e a carestia estendeu seus dedos descarnados para a pequena vila.
A boa e velha Galina, uma senhora de cinquenta anos matou um alce de bom tamanho com um tiro direto na testa, era um animal gordo e bem preparado para o inverno, com protuberâncias que pareciam tumores do tamanho de xícaras. O povo se reuniu curioso. Galina se sentou na neve, colocou o avental sobre os olhos e chorou silenciosamente. O marido havia morrido a dois invernos, e agora seu tempo era dividido entre a própria casa e a casa dos netos.
Os vizinhos acudiram, levantando Galina da neve com palavras de conforto, ela ainda soluçava olhando o alce:
—Eu poderia fazer tanta coisa com essa carne! Almôndegas, fritar e guardar, picar para um gostoso ensopado… tanta coisa!
Dyatlov, um dos caçadores, e talvez um dos mais confiáveis homens de fé que Yuri já havia conhecido comentou:
—Da, Galina…, mas você protegeu os seus dessa praga, um alce contaminado morto é menos mortes em nossa vila… alegre seu coração.
O alce berrou e moveu as pernas chutando a neve, o corpo se moveu até cair deitado do outro lado. Em profundo horror as pessoas viram uma segunda cabeça de alce crescida na linha do pescoço da criatura.
Descarnada e mal formada, mas era uma cabeça.
A coisa ergueu o focinho deformado para o ar e começou a berrar.
Homens e mulheres se afastaram em pânico, Galina colocou o avental na boca para sufocar um grito e correu para a própria casa. As pessoas sussurravam que alguém desse um tiro e acabasse com o sofrimento daquilo.
Ninguém teve coragem de fazê-lo.
A cabeça gritou por horas até o frio a silenciar.
O tempo seguiu seu rumo.
Os frutos secos acabaram, o riso aos poucos foi silenciando dentro de todas as casas da vila. A voz mais alta a ser ouvida era o brandir do sino da igreja chamando para a missa aos domingos. As orações eram fervorosas e os sermões esperançosos…, mas não havia assovios das crianças, ou a risada de suas mães enquanto conversavam.
E o inverno estava apenas começando.
Por fim os pescadores voltaram. Yuri foi recebê-los junto com toda a vila na praça do poço. Os olhos brilhantes de esperança encontraram o olhar cabisbaixo dos homens que vinham do lago, tão famintos quanto eles e com pouquíssimos peixes.
A escuridão da estação veio.
Na penumbra que agora habitava os dias e as noites era possível ver famílias inteiras arrastando os animais contaminados para suas casas. Houveram tentativas de ferver a carne até que se desfizesse. Estas famílias morreram em dois dias. Suas casas abandonadas acabavam pertencendo a neve e ao gelo, havia uma tristeza profunda em observar berços esquecidos, fogões que nunca mais seriam acesos e ferramentas de trabalho para sempre abandonadas nessas casas sem esperança, seus bens úteis e comida divididos entre os vizinhos. Os corpos, deixados nos porões agora escuros e frios.
A pequena igreja reuniu o povo da vila para uma assembleia, gente simples vivia às margens do Baikal, simples, mas observadora dos fatos ao redor. Trocaram conhecimentos enquanto a xaveca de chá de espinheiro era passada entre os moradores. Notaram que a doença se espalhava pelo toque, por isso ficou acertado que ninguém deveria tocar nos animais contaminados sem luvas. E os rostos esquálidos concordaram em silêncio.
Era trabalhoso falar.
Na escuridão das semanas que se arrastaram a vila viu horrorizada o corpo de Dimitri Novikov sair da própria casa e se mover.
As dimensões do homem haviam crescido, as roupas se rasgaram no processo, a carne havia explodido para fora do tronco em uma série de tiras que se moviam de forma espasmódica. Arrastava cambaleante o braço direito que havia crescido cerca de um metro e meio, como as raízes da hera venenosa. Pequenos tentáculos de carne se erguiam do arremedo de mão tentando não tocar na neve. Enquanto a mandíbula dependurada emitia sons de engasgo e assobios.
Não havia pele em nenhuma parte… tudo era carne vermelha deformada e pulsante.
Yelena Yurievna viu a forma andando pela vila através da janela e gritou até perder os sentidos.
A coisa que um dia havia sido Novikov ouviu os gritos, ou pareceu ouvir e andou mais rapidamente até a casa de Yuri. O lenhador foi rápido, fechando a porta de madeira maciça e passando o trinco. A esposa olhou para ele desvairada enquanto segurava uma filha chorosa em um braço e a outra desmaiada no outro.
Por fim arrastou as duas filhas para baixo da mesa e lá ficou, protegendo as meninas como um escudo humano embora tremesse como se tivesse uma febre maligna.
O primeiro baque quase arrebentou a porta, Yuri apoiou seu peso nela e segurou com toda a força. Os baques continuaram por muito tempo até se tornarem indecisos e fracos, novamente a coisa vagou pela vila como se tivesse perdido o interesse. Andou sem rumo até cair no poço do centro da praça.
A vila entendeu que a morte não era para sempre para todos contaminados com a praga, portanto mudaram a tática de armazenamento dos corpos. Não podiam queimá-los porque a lenha era preciosa como comida.
Quando uma família morria os corpos eram jogados no porão, a escada de acesso era destruída e o buraco preenchido com a neve. Os animais eram jogados no poço e a própria mãe natureza os enterrava em neve fresca. Como a doença não gostava do frio, ficariam seguros até a primavera quando poderiam finalmente ser queimados.
O povo voltou a respirar aliviado, agora só tinham que travar a guerra contra a fome, uma velha conhecida.
Os homens se uniram em um mutirão. Até o padre, um senhor idoso se uniu a eles. Munidos de machados e serras, puxando um trenó e usando sapatos para neve com Yuri a frente vagaram para a parte mais profunda da floresta procurando árvores mortas a fim garantir mais lenha.
Duas renas magrelas pularam para longe dos homens. O primeiro pensamento a cruzar a mente de Yuri foi: Não estão se aproximando de nós… estão fugindo.
Pochenko em sua experiência de caçador, chegou à mesma conclusão muito mais rápido que os outros homens. Tirou a carabina das costas rapidamente, mirou e atirou com a perícia de longos anos de caça.
Uma das renas caiu e por um momento a outra parou olhando para trás as orelhas empinadas esperando a companheira. Dyatlov baleou a outra, mas não a matou.
Yuri correu pela neve, e sem pensar duas vezes jogou o machado com ambas as mãos. A ferramenta se cravou no pescoço da rena ferida que tombou sem fazer ruído.
Extenuado por ter corrido, o lenhador se sentou no chão, a respiração aos arrancos e os homens começaram a sorrir e a lhe dar tapinhas nos ombros. Alguns passando as mãos sobre a boca, outros andando em círculos ao redor dos animais, olhando mais de perto, procurando com olhos sôfregos qualquer marca ou mancha da doença. Se estavam fugindo poderiam estar saudáveis.
As renas estavam limpas.
Um curioso ar de animosidade percorreu o grupo, agora olhavam uns para os outros com desconfiança, duas renas não bastariam para toda vila, não havia carne suficiente para todos e a fome transformava o coração os homens em corações vorazes… já havia acontecido antes… havia a sombra da crueldade quando a fome devorava os vivos.
A voz suave do padre quebrou a tensão em um murmuro trêmulo de emoção:
—As mulheres e crianças comerão um bom caldo essa noite. Deus não nos abandonou.
Os homens olharam uns para os outros cada um pensando em suas famílias, pensando nos sorrisos perdidos, nas faces coradas diante de um caldo quente.
Um sorriso de esperança riscou os rostos cansados. Não haveria carne suficiente se cada um buscasse seu pedaço, mas unidos… poderiam picar os animais para produzir caldo quente e nutritivo para todos.
Os ossos poderiam ser quebrados e moídos. Sim seus filhos comeriam a sopa gorda da carne das renas. Ainda tinham trigo e aveia, ainda tinham tubérculos guardados em suas despensas… as crianças iam sorrir de novo, havia esperança.
Bolsas de água foram esvaziadas para recolher o sangue das renas, até a neve manchada de vermelho foi recolhida e guardada. As renas foram colocadas sobre o trenó com muito esforço e voltaram para a vila no meio da escuridão e do frio.
Mas havia luz em seus corações.
Quando chegaram a vila, ouviram os uivos descontrolados de uma mulher e o choro das demais. Dyatlov reconheceu de imediato a voz da mulher naqueles gritos desesperados, correu para sua casa, onde uma multidão de mulheres chorava na porta. Entrou esbaforido e a visão que tinha à sua frente o fez cair ainda na porta, segurando o batente.
Sua mulher segurava o pequeno bebê de menos de um ano e urrava enquanto o embalava, a criança também chorava e se contorcia, em sua bochecha direita, riscada pelas lágrimas estava a marca vermelha da carne contaminada.
Yuri chegou à porta e parou olhando para o homem no chão, tocou o ombro do caçador em uma tentativa de conforto, mesmo que seus dedos estivessem trêmulos:
—Venha meu bom amigo.
Dyatlov se ergueu do chão e olhou para o lenhador, os olhos de alguém que acabou de morrer, mas ainda caminhava… lá estava, o olhar perdido de mil milhas.
Lentamente Yuri retirou a mão. A voz do amigo era ausente:
—Mas nós trouxemos a carne.
—Sim trouxemos.
—Haverá caldo quente para as crianças.
—Sim haverá, em nome de Deus haverá.
—Yuri… Deus não existe.
Com passos de um adormecido Dyatlov se abaixou atrás da esposa e a abraçou, unindo seu choro ao da mulher.
As semanas passaram no estupor do inverno, a carne foi consumida, os grãos foram consumidos e Yuri passou a cozinhar o couro das antigas bolsas de pesca, o cheiro do peixe conservado no couro fazia as filhas sorrirem enquanto suas maçãs do rosto definhavam.
No dia que sua menina mais velha amanheceu tossindo até ficar exausta o lenhador se desesperou. Olhou com os novos olhos do medo as mulheres da sua vida. Svetlana mexia a sopa sobre o fogão, a última cebola misturada aos bulbos de lírio e uma beterraba que encontrara no jardim, parte do cabelo havia caído por causa da desnutrição, os olhos fundos dentro do crânio olharam para ele e tentaram sorrir, ele pensou por um momento de ternura em como era valente a mulher com quem havia se casado.
A voz dela ainda era suave e firme:
—Teremos Borscht para o almoço.
A filha mais nova estava sentada à mesa, a cabeça apoiada sobre os braços finos, dormia a sono solto em uma respiração profunda. Podia ouvir Anya tossindo de sua cama. Criando aquela coragem baseada no desespero, colocou o gorro e saiu.
Na igreja pediu que o padre chamasse os homens que ainda estivessem fortes e organizou uma última equipe de pesca, talvez os esturjões tivessem subido agora que o gelo do lago isolou boa parte da água e a escuridão havia descido.
E então partiram… os últimos homens que podiam andar desceram da vila em direção ao lago que ficava a um dia de caminhada em boas condições.
Por dois dias os homens andaram, se escorando uns aos outros e levando o equipamento de pesca no gelo.
Furaram o gelo com as brocas e lançaram as linhas, pegando pequenos peixes mais próximos da superfície, comeram apenas o suficiente para ficarem em pé e continuaram com o trabalho árduo e frio.
Yuri na margem passou a cortar a madeira necessária para manter os homens vivos, trabalhou diligentemente, garantindo um fogo bom toda vez que alguém voltava do gelo para aquecer os dedos azulados.
Ao final de uma quinzena o esforço deu lucros, haviam esturjões em boa quantidade, o suficiente para mitigar a fome de muitas famílias.
O abençoado peixe seria dividido de acordo com o costume da vila em invernos assim rigorosos: seriam entregues na igreja e divididos para os habitantes. Os Siberianos sabiam, apenas as comunidades fortes e unidas sobreviviam aos zimniye vetry, os ventos do inverno.
Yuri estava na margem com mais dois companheiros arrumando as pilhas de peixe secos pelo frio quando ouviu o estalo que se propagou com eco, em um rugido surdo e ritmado.
O gorgolejar do gelo se quebrando.
Olhou o lago onde tanto companheiros ainda pescavam e todos os pelos de sua nuca se arrepiaram, em desespero começou a gritar e a agitar os braços:
—Led treska yet sya! O gelo está rachando!
O som subiu novamente e os homens ouviram, deixaram seus equipamentos de pesca para trás e deslizaram o mais rápido que podiam sem comprometer a camada congelada de água.
O som do rosnado surdo passou abaixo deles novamente, o gelo formou uma teia de rachaduras, conectando os buracos de pesca, presos em um horror petrificado os que estavam na margem viram o gelo eriçar nas bordas, estalar como se fosse o fim dos tempos e simplesmente se quebrar em todas as direções em um último rugido final.
Dos dez homens que desceram com Yuri para tentar a pesca mais uma vez na escuridão do inverno apenas quatro sobreviveram. Os gritos dos que caíram na água se misturaram ao som do gelo se movendo, uma sinfonia medonha e cruel.
Não durou mais de cinco minutos, uma eternidade de horror e gritos para os sobreviventes que olhavam incrédulos.
Em um momento estavam felizes e cantarolando, agradecendo a Deus pelos belos esturjões, no outro, eram apenas o silêncio da noite e o açoite do vento.
O homem ao lado de Yuri murmurou ainda descrente, o rosto cheio de lagrimas derramadas em vão:
—Minha família pesca no gelo do Baikal a pyatʹ pokoleniy… Da… cinco gerações… nunca, nunca o gelo havia rachado em pleno inverno.
Yuri retirou o capuz da cabeça e olhou para o céu, não havia percebido antes porque estava trabalhando, mas o clima estava mais quente.
—Está esquentando, tire as luvas e sinta.
Sua voz tremia enquanto o lenhador baixava a cabeça e cobria os olhos com as mãos. A dor de perder tantos obliterando um pensamento lógico por alguns momentos.
“Porque está esquentando?”
Ele olhou para o caminho que se abria até a serra e que levaria de volta a vila, uma nova inquietação tomando conta de sua pele.
—Temos que subir até a vila agora… algo está mudando…
Com toda a pressa que puderam desmontaram o acampamento, pegaram o que conseguiam levar dos peixes, acomodaram tudo em cestos e partiram. Yuri caminhava depressa, as forças restabelecidas com a riqueza dos peixes, o coração inquieto.
Forçou a caminhada em passos rápidos, ofegando e tropeçando sob o peso da carga. O coração martelando enquanto os mais loucos cenários se passavam por sua cabeça.
Conforme os homens andavam a temperatura subia ao redor… logo tiveram que tirar os casacos e os sapatos para neve, caminharam por toda a noite e ao amanhecer, que na verdade era apenas um leve clarear, Yuri tirou a camisa de lã… suava em bicas por baixo dela.
Não muito tempo depois avistaram uma estranha estrutura, feita de carne plantada no meio da trilha, parecia um mourão de cerca, porém era alta, próxima dos três metros de altura e cheio de buracos, a coisa se movia como se respirasse inspirando e expirando. a temperatura era quente e agradável conforme se aproximavam dela.
O lenhador parou confuso, a mesma sensação de repugnância que sentiu ao ver o coelho morto a tantas e tantas semanas atrás:
—Não se aproximem dessa coisa… é a doença.
Ele olhou ao redor onde pequenas plantas começavam a aproveitar o clima quente e a crescer, algumas até possuíam botões.
Yuri parou, um de seus companheiros não foi prudente o suficiente e tocou a superfície da coisa.
O pobre homem gritou olhando para a mão que começou a estourar em manchas e protuberâncias, as protuberâncias subiram pelo corpo enquanto ele gritava e se coçava, arrancando a pele por onde suas unhas passavam.
Estava morto em menos de três minutos.
Yuri se afastou de costas, firmemente agarrado as correias da cesta e murmurou para os homens que restaram:
—Corram… corram pelo bem das suas vidas!
Os três começaram a correr no terreno lamacento onde musgos e plantas das mais variadas brotavam, o lenhador gritava enquanto corria:
—A carne! A carne aprendeu que o frio lhe faz mal! Ela aqueceu o ambiente! É rápida e muda os homens em pouco tempo! Corram ou nosso camarada vai nos perseguir e nos tocar a qualquer momento!
Um dos homens parou e se abaixou tomando fôlego:
—Não pode ter certeza disso!
Yuri se virou e parou também:
—Não se lembra dos animais? Os infectados pulam para cima de mais criaturas para infectar, o objetivo dessa coisa é se espalhar! Ela nos odeia!
Um tentáculo de carne saiu detrás de um pinheiro e tocou o rosto do homem que havia parado e se abaixado. Yuri não esperou para olhar o que aconteceria, se virou e novamente correu como se o diabo estivesse lambendo seus calcanhares.
E de certa forma estava.
A carga de peixe caindo conforme se sacudia pela trilha, ouviu o grito desesperado do último companheiro, mas não se virou para trás.
Por fim, o lenhador soltou os laços e deixou a cesta cair enquanto corria, ainda ouviu o baque pesado da cesta, ouviu os peixes congelados se espalharem atrás de si, enquanto corria, seus olhos se encheram de lágrimas não derramadas… todo aquele esforço sobre humano para pescar, todos os companheiros perdidos para o gelo… toda aquela preciosa comida.
Correu enquanto os pulmões buscavam ar, correu até a fisgada no lado virar uma ferroada constante, correu até a vista ficar embaçada pela falta de ar.
Finalmente se aproximou da vila. Assustado com o que seus olhos viam, se escondeu atrás de uma moita perfumada.
A vila floresceu em pleno inverno, a vegetação se espalhava com força e a grama crescia viçosa. As casas por outro lado pareciam estar abandonadas a anos, portas derrubadas, janelas quebradas e móveis destroçados jogados para fora.
Contornou as casas usando a escuridão das pequenas plantas ao redor, encontrou mais dois ou três dos mourões de carne, aquecendo o ar. O coração em saltos de terror as pupilas dilatadas em puro medo e repugnância a cada coisa nova que descobria.
Pessoas que não eram mais pessoas andavam de um lado para o outro, membros extras cresciam nos troncos e nas cabeças, olhos que desapareciam e davam lugar a bocas, bocas que sumiam para dar lugar a tentáculos e novos braços… pareciam pacíficos e desinteressados, Yuri reconhecia alguns pelos restos das roupas.
Lá ia Galina, a única coisa que a identificava era o avental, a cabeça havia sido substituída por uma papoula de carne, atrás dela caminhavam duas pequenas monstruosidades, estendendo seus tentáculos e segurando o que deveriam ser mãos da mulher de carne, uma avó apenas passeando com os netos.
No centro da vila, sobre o poço, uma bola de carne humana e de animais respirava lentamente, olhos desapareciam para dar lugar a bocas e bocas sumiam para dar lugar a tentáculos.
Sua alma afundou enquanto ele terminava de dar a volta até chegar a seu depósito de lenha. Olhou a casa escura e com a porta destroçada, ficou um momento olhando para sua própria casa, as lágrimas finalmente caindo silenciosas pelo rosto cansado.
Havia lutado e havia perdido. Chorou em silêncio por todas as pessoas que se foram. Olhou ao redor e encontrou o machado menor de separar madeira em pequenos gravetos.
Ciente de que havia uma última coisa a fazer, tirou o machado do suporte e caminhou pesadamente até a casa.
Anya correu até ele de braços abertos.
Ele a reconheceu pelos laços vermelhos amarrados no que havia sobrado dos cabelos, e era apenas isso.
Uma boca completamente disforme e em forma de fenda havia se aberto exatamente no meio do rosto da menina desfigurando os traços, em um dos lados da cabeça três olhos giravam loucamente nas órbitas e agora haviam três pernas cambaleando em sua direção… onde quer que olhasse, havia carne se repuxando e estremecendo.
Ele ergueu o machado… estava preso por um ódio violento quando o pequeno monstro o abraçou.
Yuri olhou para baixo e mirou naquele crânio infantil, os olhos do lado da cabeça o olhando agora.
Tão azuis quanto os seus.
O machado caiu de sua mão e Yuri aceitou o abraço que o pequeno monstro lhe oferecia.
Sentindo a pele empolar onde a criança o tocava, Yuri experimentou algo entre a aceitação e a loucura.
Enlaçou o que havia sobrado do ombro da menina e caminhou com ela para casa. Em completo silêncio entrou na cozinha.
Agora que a vermelhidão e a coceira se espalharam pelo corpo, os outros dois integrantes da cozinha não tentaram pegá-lo, devagar se sentou à mesa posta e olhou para a filha mais nova também sentada. Dedos surgiam do crânio desnudo da criança enquanto tentáculos de carne pulsando desciam pelos braços e transformavam as mãos em finos e delicados fios como raízes de capim.
O que havia sobrado de sua boa mulher havia se convertido em uma forma delicada e fina de músculos estriados, a coluna se dividira em duas e a parte livre chicoteava de um lado para o outro enquanto ela o encarava, as costelas se abriam para o lado como asas enquanto novas costelas protegendo os órgãos que trabalham à vista. Ele podia ver o coração batendo, os pulmões inflando e esvaziando… Os olhos eram quase os mesmos.
Yuri examinou a mulher por um longo minuto enquanto o próprio cabelo caía.
—Estou em casa Svetlana, eu trouxe muita comida, mas perdi tudo na corrida até aqui querida… pode me perdoar?
A mulher de carne enfiou uma das mãos de dedos tortos e grandes garras no próprio antebraço arrancando um pedaço considerável de carne que colocou no prato de Yelena, repetiu a operação até que os quatro pratos postos à mesa estivessem cheios de carne vermelha e rica. A criatura se sentou à mesa e novamente encarou Yuri.
Ele tocou a carne em seu prato ainda sangrenta e sorriu, a pele dos dedos descolando a partir das digitais, se enrolando e rasgando como papel antigo.
—Nada de fome… nem frio… nada de morte… Isso é bom.
Ele deitou a cabeça no móvel se sentindo fraco e cansado, a filha mais nova pegou a sua mão, os pequenos e delicados tentáculos se enrolando em seus dedos, ele olhou aquilo por um momento.
—Essa coisa nos odeia…, mas não me importo mais, acabou a fome e o frio, é o que basta… acho que em alguns minutos vou jantar com vocês… só vou descansar um momento.
Yuri deixou de ser humano exatamente nessa posição enquanto os monstros jantavam a carne que havia em seus pratos, com sua mão direita havia escrito uma última frase com o próprio sangue que fluiu por um momento das pontas dos dedos descarnados.
My privet·stvuyem plotʹ kotoraya nenavidit.
Essa frase seria usada pelos membros da Fundação para nomear a doença quando a primavera viesse e os encontrasse:
“Damos as boas-vindas a Carne que Odeia.”





