Não Beije a Cabra
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Ao longe pode-se ouvir gritos estridentes vindos de um castelo.

Diabolus captus est

Em conjunto uma canção é ressoada para abafar os berros da criatura.

Não vamos temer a Súcubo

Pois nosso Valor é maior que este mundo.

Os gritos logo se transformam em frases desconexas de um idioma antigo.

O diabo não possui compaixão.

Irá cair por sua devassidão.

Sobre os corredores da edificação uma caixa rígida de metal é carregada por quatro homens, sons de algo querendo se libertar ecoam entre as paredes.

Devemos impor respeito.

Não a deixe seduzir pelo defeito.

No entorno da caixa monges oravam em silêncio para proteger os cavaleiros da tentação.

Temos que fazer jus à castidade.

Esse é o poder de nossa tenacidade.

Olhando para tal cena perplexo, Frei Davi arrepiou-se. Em toda a sua duas décadas de vida na ordem jamais havia testemunhado tamanha selvageria.
— Como pode um filho de Deus agir assim?
— Não é um filho de Deus.
— Comandante Caneca!

O comandante dos irmãos portava sua armadura inundada em Valor. Em sua cintura uma espada dourada se destacava entre os ornamentos.

— Como foi a missão? Sei que ficou bastante tempo fora.
— Foi complicada, principalmente por ter que capturar aquilo — Aponta para a caixa. — Que como bem dizia não é filho de Deus. Aquele ser é cria do demônio, uma Súcubo.
— Súcubo?
— Sim, devoradora de homens. Mais uma forma do diabo nos tentar. A cabra dentro da caixa seduz os homens e os devora por seu pecado.
— Por que homens se deitariam a uma cabra? Isso viola as leis da natureza.
— Por que a cabra pode ser tão pecaminosa quanto a mulher. Quando uma mulher entra em um caminho de devassidão ela deixa de ser uma filha de Deus e vira uma cabra. Os pobres homens caem por seu desejo. Sabe que as mulheres são mais influenciadas pelo pecado do que nós homens.
— Não considera que todos temos a mesma capacidade de pecar? Afinal todos somos filhos de Deus, capazes de cometer inúmeros erros.
— Frei Davi, esta vendo alguma mulher neste castelo?
— Não.
— Exatamente. As mulheres estão mais suscetíveis a influência do diabo do que nós homens. Olhe o pecado original por exemplo. Adão só foi expulso do paraíso por que Eva o tentou. Se Eva estivesse escutado os apelos de Nosso Senhor ainda estaríamos no Éden. Esse fato pecaminoso se repete ao longo da história. Se recorda das filhas de Ló?
— Sim, Levíticos 18. — O comandante lança um olhar torto.

— Sempre esqueço que você é mestre quando se trata do livro sagrado. Não é a toa que será nosso emissário um dia. Como ia dizendo, as filhas de Ló que influenciadas por Sodoma embriagaram e se deitaram com o próprio pai. Existem seres como as mulheres que são receptáculos para a maldade. — O comandante coloca a mão sobre o ombro do frade.
— Frater! É por isso que estamos aqui. Nossa ordem tem as armas necessárias para proteger todos os homens e mulheres do pecado. Temos Valor um dom dado por Deus através das três virtudes: Respeito, Tenacidade e Compaixão. Teu dever como frade é rezar por todos os escondidos da imagem do Criador, sobretudo as moças que são mais suscetíveis a influência do diabo.

Comandante Caneca deixa o local para observar a prisão da criatura. De mesmo modo Frei Davi se retira. Já em seus aposentos o frade reza constantemente. Dúvidas estão fixadas em sua mente. Não parava de pensar em Gênesis 1:27-28

Criou Deus o homem à sua imagem,

à imagem de Deus o criou;

homem e mulher os criou. Deus os abençoou e lhes disse: "Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra".

Se ambos homem e mulher foram criados sobre a imagem de Deus todo poderoso. Por que apenas a mulher tem mais capacidade de pecar?
Caminhou pelo castelo procurando a resposta quando viu dois guardas protegendo uma porta de madeira. Eles pareciam estar conversando sobre algo.

— Cale sua boca cabra!
— Por favor, sou inocente! — Disse a voz feminina que saia da porta.
— Preciso ir para casa por favor, meu irmão deve estar preocupado.
— Já mandei calar a boca!
— Um dos guardas bate na porta.
— Será que preciso cortar tua língua para nos deixar em paz. — O mesmo guarda avança para a porta quando é impedido pelo parceiro.
— Não sejas tolo. Se atravessar a barreira nada impede que vire um escravo da criatura. Será que não ouviu nada do comandante? Ela escraviza os homens e os devora. Apenas não dê atenção.
— Por favor me liberte! Socorro!

Mais uma vez Frei Davi permanece perplexo. O comandante tinha dito que se tratava de uma aberração. Por que o monstro do outro lado da porta se comporta como um humano aflito. Com intuito de afastar seus questionamentos para com a ordem, se afastou do castelo. A fortaleza era sustentada sobre as rochas que se encontravam no mar, ondas violentas batiam contra as pedras abaixo do castelo. A maresia misturada ao sol quente se desfaziam em um conjunto doce e sereno. Observou a lateral do castelo constatando que ali existia um carro estacionado.
— Então já chegou.
Andando um pouco mais adiante o Frade decide repousar sobre a sombra de um juazeiro. Fica a observar as nuvens por um tempo. As formas variavam entre personagens bíblicos e coisas do dia a dia, contudo uma forma específica chamou sua atenção. Uma figura de crânio grotesco portando dois grandes chifres. O vento muda de forma repentina, assim alterando o formato das nuvens. O monstro expresso ali se transforma em uma figura feminina. Frei Davi olha fixamente para a nuvem em forma de mulher. A imagem no céu se move como se estivesse olhando fixamente para o Frade. Ele conseguia ouvir:

Adjuvandum me festina

— Ei! Ei!
— Alguém balança Frei Davi.
— Acorde homem, já está muito velho para ficar cochilando. — Davi abre os olhos de forma sonolenta e observa o Comandante Caneca.
— Desculpe estava descansando e acabei pegando no sono.
— Sem problemas frater. O Emissário está pedindo o livro das Bestas. Aparentemente é uma daquelas visitas especiais.
— Claro, ele especificou o volume?
— Não, ele só disse que queria algo que contasse sobre o Íncubo.
— Íncubo?
— Sim, é um nome estranho. Nunca tinha ouvido falar. Se não for segredo talvez você possa me explicar o que é.
— Nunca fui letrado nesse tipo de estudo. Até onde sei, Íncubo é um ser das trevas regido pelo pecado da luxúria. Possivelmente deve estar no volume sobre os filhos do mal. Irei averiguar isso obrigado por acordar-me.

Assim o frade se dirige a biblioteca do castelo, cumprimentou os guardas e se enfiou entre os corredores soterrados em poeira.

— Por que será que ninguém limpa esse lugar.
Passando o indicador sobre as prateleiras ele finalmente achou a categoria que desejava. Apesar de concentrado, o sonho que teve roubava seu foco. Por que a cabra transmutada na mulher pediu ajuda? Será que por fora ela tenha aparência demoníaca mas por dentro haja a forma pura de uma irmã? Ele não tinha tempo de pensar nisso agora. Deveria jogar toda a sua atenção para a prateleira empoeirada.
— Bestiário Extraordinário, não. Bestiário Ateu, não. Bestiário Cruzado:Os Filhos do Mal, achei.

Retirando o livro e assoprando todo o pó, tenta procurar por informações sobre o tau Íncubo.
"Nascidos do sangue pecador misturado aos furacões no segundo círculo do inferno. O Íncubo é um dos três filhos de Asmodeus sendo o representante de sua cabeça de carneiro no mundo dos homens. Sua aparência consiste em um homem peludo com cascos e cabeça de bode, considerado de extrema beleza quando observado por mulheres. Dificilmente o Íncubo se retira de seu plano espiritual, sendo assim a única forma de destruí-lo é…"

Acho melhor entregar logo o livro.

O Frade segue sua jornada até a sala de emissário, antes de entrar pode ouvir uma conversa entre o emissário e mais um homem.
— Santo Graal. Eles possuem o Santo Graal.
— Então os Ateus estão em posse do Graal? O que mais eles possuem, a lança do destino?
— Não tenho essa informação ainda, porém sei que os Ateus de Londres tem uma Súcubo em prisão. Ouvi boatos que é um demônio não desenvolvido completamente. — Faz uma pausa.
— Algo que não entendi por completo foi o fato da ordem não ter executado o demônio. — Frei Davi bate na porta.
— Entre por favor. — Falou o emissário.

Entrando naquele local qualquer um poderia ficar abismado com a quantidade de adornos religiosos presentes. O homem que Davi não conhecia usava um terno preto, gravata vermelha e um crucifixo.
— Boa tarde Vossa Excelência, trouxe o livro que fora requisitado.
— Muito bem, frater. Frei Davi gostaria que conhecesse nosso irmão. Este é o irmão Hermes. — Davi e o homem apertam as mãos.
— É sempre bom ter estudiosos entre nós. — Hermes sorri.
— Um bom conhecedor de monstros.
— Na realidade tenho preferência pelo estudo litúrgico, mas conhecimento nunca é demais.
— Frater, poderia por favor colocar na página do Íncubo?
— Sim,senhor. — Colocando na página. Todos dão uma folheada no conteúdo.
— Consegue entender agora senhor Hermes? O motivo de não termos matado a criatura ainda.
— Não, ainda não faz sentido para mim. Os eventos anteriores de captura do monstro se mostraram um fracasso, por que agora seria diferente? Não é perigoso atrair o demônio para uma das casas de Deus?
— Frei Davi poderia ler esse último parágrafo para mim?
— Como deseja. "Dificilmente o Íncubo se retira de seu plano espiritual, sendo assim a única forma de destruí-lo é o atraindo para o plano físico. Íncubo é a derivação da palavra incubare(Deitar por cima) enquanto Súcubo é derivado da palavra succubare(Deitar por baixo) ambos estão unidos pela ação, conectados por sua origem e pecado capital. Deste modo, a única forma de atrair o Íncubo para o reino dos homens é ter uma Súcubo sobre custódia…"
— Já pode parar. — O Emissário interrompe a leitura.
— Isto indica para nós que não precisamos mais caçar o Íncubo ele que virá nos caçar. Assim podemos nos preparar quando este chegar.
— Enquanto ao Caçador? Ele atrapalhou as operações da ordem da última vez.
— Na realidade nós que acabamos atrapalhando o homem. Ele estava com a mira sobre a cabeça da criatura quando nossos homens chegaram gritando cânticos antigos. Nossa presa se desfez em espírito e acabamos por perder o monstro. Como forma de pedir perdão pelo infortúnio, convidamos o homem para nos ajudar a caçar a criatura.
— Está convidando alguém de fora da Ordem para matar o monstro? Sinceramente Emissário Tomás.
— Caso não se recorde. — Emissário Tomás interrompe Hermes.
— Uma de nossas virtudes é o respeito. Nós desrespeitamos o caçador quando espantamos sua presa. O mínimo que podemos fazer é lhe dar uma nova oportunidade de pegar o Íncubo.
— Ainda assim ele é de fora da ordem.
— Não se preocupe, mandei nossos detetives investigarem. Até onde se sabe não faz parte dos Ateus, dos Hereges mecânicos, dos Hereges de Carne, dos Profanos e nem mesmo dos Criminosos. Conseguimos informações que o homem pertence a uma congregação de caçadores. Seu objetivo é apenas caçar por esporte.
— Um belo desperdício de tempo.
— Aí que você se engana. Ele se propôs a fazer um acordo conosco, vir aqui e discutir pessoalmente. Se aceitar nossos termos é menos vidas gastas em nome de nossa vontade. Gostaria que informasse os irmãos da cidade a situação. Sim, já falei com nosso comendador sobre o plano e o mesmo aprovou.
— Se isso agrada o Comendador então me agrada também. Informarei aos demais irmãos. Que o Valor guie teu caminho irmão.— Hermes se retira da sala deixando o emissário e o frade para trás.
— Belo plano não?
— Vão usar o sangue do Íncubo para produzir armas mais potentes contra as aberrações?
— Também, porém o Íncubo possui propriedades especiais sobretudo seu coração. O coração do Íncubo é uma massa negra e oca que expele fumaça. Até o momento não compreendemos por completo tal coração.
— Para isso que precisam da criatura, estudo.
— Exato. Frade como bem sabe somos os únicos homens letrados deste castelo. Os demais se contentam a servir pelos músculos. Por esse motivo que será meu sucessor e como meu sucessor é necessário estudar sobre as bestas também. Sei que não se sente confortável em se separar de seus textos litúrgicos, mas as vezes é necessário conhecer o inimigo. Agora trate de descansar.
— Creio que tenha dormido mais que o necessário.

O frade se despede do mentor e anda rumo a seus aposentos. Passando sobre os corredores do castelo ele observa a cela da besta. Um dos guardas está segurando uma espécie de abutre morto.
— Hora do Jantar!
— Joga a carcaça do animal na escotilha.
— Irei morrer de fome aqui. Como vou comer isso?
— Passou muito tempo se alimentando de humanos. Pode muito bem comer um pássaro morto.

Frustrado com o que acaba de testemunhar Frei Davi se afasta do local. Não conseguia entender o porquê deste tratamento para com um ser. Optou por se dirigir até o convento central, aquele que tinha a cruz de pigmentação dourada. Esse era o melhor local para conversar com o salvador. Estava vazio naquele horário, geralmente os soldados só visitavam o convento antes de alguma missão de suma importância. Ajoelhando-se sobre o altar o frade se coloca a meditar.
— Senhor, seria isto certo? Maltratar uma pobre alma pelos pecados que este cometera? Não consigo entender como a violência fará jus à teu nome Senhor. Gostaria apenas de ter uma resposta.

Deixando a paz entrar em sua mente que estava repleta de conflitos, algo veio rapidamente diante daquele ser. Uma consciência que outrora era tomada pelos questionamentos, agora andava de acordo com os ensinamentos que outrora leu.

Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo.

— Por que Senhor? Sou incapaz de entender tamanho ódio.

Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus;

— Eureka! — Frei Davi arregala os olhos. Sabia exatamente o que deveria fazer.

Com o cair da noite uma figura pode ser observada perambulando pelo interior da edificação sagrada. Essa figura portava uma tangerina entre os dedos e uma Bíblia de bolso em suas vestes. A Figura perambulou até a cela da besta. Embora tentasse se manter imponente o pequeno tinha medo em seu coração.
— Você aí! Pare!
— Os guardas observam de perto.
— Frei Davi? Desculpa por gritar. Pensamos que pudesse ser algum invasor. O que faz aqui tão tarde da noite?
— Estou estudando sobre os inimigos de Deus. Vejo que estão cansados, por que não se retiram por hora.
— Não é perigoso deixar o senhor sozinho com a Cabra?
— Deus me protegerá. Vocês têm fé no Criador?
— Sim nós temos! — Ambos os guardas falaram em uníssono e trataram de se retirar.

Frei Davi agora estava sozinho com a criatura. O silêncio era grande. Olhando para a tangerina em sua mão, abre a escotilha anexada a porta e joga a fruta abaixo. O Frade permanece imóvel, quando uma doce voz feminina ressoa sobre a porta de metal.
— Obrigado.
— Não há de que.
— O silêncio novamente toma o local. Frei Davi já estava se preparando para sair quando a prisioneira novamente fala.
— Por quê? Por que ajudar uma prisioneira? Aquela a qual chamam de cabra.
— Porque tenho que amar meus inimigos, bendizer aqueles que falam mal de mim, fazer o bem aos que me odeiam.
— Orar pelos que vos maltratam e vos perseguem.
— O Frade gela a espinha. Como poderia um demônio conhecer os ensinamentos do Senhor? Mesmo confuso termina a citação.
— Para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus.
— Mateus 5:43,44. É um bom versículo. Me faz pensar no que o mundo poderia se tornar.
— Você conhece as escrituras? — Fala surpreso.
— Como qualquer mulher que segue os passos do Senhor, se faz necessário conhecer a história do bem.
— Difícil acreditar que um demônio complete um versículo.
— Talvez porque eu não seja um demônio.
— Não foi o que ouvi quando te levaram para esta cela.
— Tente ser raptado por homens estranhos enquanto esta rezando. Eles te xingam e te batem de forma violenta. Tudo que fiz foi em resposta a agressão.
— Meus irmãos tendem a discordar.
— Teus irmãos são os homens que chamam a ovelha de cabra e o pastor de diabo.
— Deus escreve certo por linhas tortas.
— Então por que está aqui?
— Também não sei. Já está amanhecendo. Preciso voltar para meus estudos.
— Como disse antes. Obrigado, sei que não é tua obrigação.
— Apenas sigo o caminho do Senhor.

Frei Davi se afasta retornando a seus aposentos e tomando nota do ocorrido.

"Pai não entendo o que está moça representa para a ordem. O tal monstro possui evidentes conhecimentos litúrgicos. Isso pode ser uma forma de sedução, porém creio que eu possa descobrir mais amanhã."
Na noite seguinte o Frade vai novamente de encontro com a criatura. Neste momento ele já estava se questionando se era realmente uma criatura.
— Você voltou!
— O chamado repentino assusta Davi.
— Como sabia que era eu.
— É o único homem neste castelo que anda ao invés de marchar.
— Isso é comum entre os soldados. Os irmãos se sentem mais fortes andando desse modo.
— Fazendo barulho e interrompendo quem está meditando. — Tentando desconversar pois concordava com a afirmação diz:

—Trouxe maçãs. Espero que não se importe.
— Joga o alimento pela escotilha.
— Novamente obrigado. Era apenas um fruto agora são 7. Isso me faz recordar de Marcos 6:30-56. Quando Cristo tinha em mãos apenas cinco pães e dois peixes, um total de sete alimentos.
— Não fiz nenhum milagre. Apenas peguei mais frutos na cozinha.
— Para mim isto é um milagre. Assim como eu, diversas pessoas estavam famintas e foram agraciadas pela multiplicação dos alimentos. Eu estava faminta esperando um milagre e ele veio através de ti frade. És um frade, certo? Ouvi os guardas falando contigo.
— Sim sou um frade, um servo do Senhor. Acho que está me bajulando.
— Não! Assim como o povo de Genesaré, eu estava doente. Quando comi este fruto me senti bem melhor. Pode não aceitar Frade. Porém, saiba que fez uma alma atormentada sentir um pouco de paz.
— A fala da "Súcubo" o fez ter uma sensação paradoxal. De um lado estava feliz por poder confortar um espírito aflito com uma boa ação. Por outro estava preocupado com seus superiores e como o veriam tendo compaixão para com um demônio, um ser vil devorador de homens.
— Creio que já está amanhecendo. Terei que me retirar.
— Espere frade. Qual o teu nome?
— Por que quer saber?
— Porque quero agradecer. Preciso saber quem, apesar de todos os preconceitos tem se importado comigo.
— Pois bem. Meu nome é Davi. Pode me chamar de Frei Davi.
— Nesse caso muito obrigado Davi.

O Frade novamente se retira para seus aposentos. Dentro de seu diário escreve.

"Pai é difícil de acreditar que um ser das trevas saiba com tamanha exatidão os versículos que cita. Não apenas a história descrita, mas a representação do milagre na vida dos homens. O que estou sentindo pai? Será que estou tendo compaixão com o inimigo? Irei continuar meus estudos com a criatura. Tenho que saber em que circunstância fora levada."

Já na hora do jantar um dos guardas de nome Francisco questiona Frei Davi.
— Vejo que o Senhor não tem jantado conosco. Será que já está dando uma de emissário. — Comandante Caneca bate na cabeça de Francisco e diz:
"Mais respeito com o Frade em breve ele se tornará o chefe deste castelo. O Emissário me disse que estava pesquisando sobre bestas."
— Sim, estou pesquisando sobre nossa prisioneira.
— Quer dizer a Cabra? — Outro guarda de nome Bento interrompeu.
— Bento cale sua boca e deixe o Frade falar! Prossiga, por favor, Frei Davi.
— Como ia dizendo, estou pesquisando sobre a Súcubo. Poderiam me descrever a captura da criatura.
— Comandante Caneca coça o queixo e conta sua história.

— A Ordem já havia sido reportada sobre um vilarejo no qual os homens vieram a falecer de forma misteriosa durante o sono. Os cadáveres sempre tinham a mesma aparência, aparentavam ter sido sugados como laranjas. Após algum tempo os homens deste mesmo vilarejo começaram a desaparecer. Relatos de uma mulher loira misteriosa vagando pelas ruas eram constantes.
— Mulher Loira? O comandante Leão disse ter visto uma mulher de cabelos castanhos.
— Você deve ter confundido as palavras do comandante. Eu vi uma moça loira com meus próprios olhos. Onde eu estava? A sim, sobre os relatos. Nós encontramos a tau mulher vestida de Freira dentro de uma igreja. Ela estava fingindo estar rezando para nos enganar, porém nós sabemos que o diabo é o pai da mentira.
— Ela possuía os chifres e as asas?
— Perguntou o frade.
— No começo não, parecia com uma mulher bonita. Meu sensor de monstros apitou e este não costuma falhar. Quando ficou agressiva as asas apareceram, só que não pude ver com clareza. Colocamos ela em uma caixa selada com nossos irmãos rezando em volta. O resto acho que já sabe.

Frei Davi agradece, se retira levando consigo pães e um pouco de vinho. Quando apenas a luz da lua ilumina aquele escuro corredor vazio nos confins do castelo, o Frade joga os alimentos pela escotilha.
— Vinho e Pão. Sempre é bom ter algo para beber.
— O pão é muito seco para se comer sozinho.
— Quando saiu fiquei pensando em 1 Samuel 17:45-47
— Só por causa de meu nome?
— Não, você realmente se parece com o Rei Davi. — Uma risada pode ser escutada através da porta. Para os ouvidos de Davi aquilo era como uma brisa serena de primavera. Ele coça a cabeça meio corado e diz:
"O que seria tão engraçado?"

— Como aquele que lhe dá o nome, você está lutando contra um gigante.
— Não vejo Golias algum por aqui.
— Não? Este Golias é violento e repressivo. Esse Golias possui armas de metal e tu só está armado com a palavra do Senhor. O teu Golias Davi é a ordem que me pôs prisioneira.
—Isso é opinião sua. A Ordem faz o bem para a humanidade.
— Prendendo e degolando os inocentes.
— Isso é mentira!
— Grita indignado.
— Só você é incapaz de ver. Aqueles a quem chama de irmãos me tiraram de minhas preces, xingaram-me de incontáveis nomes e prenderam-me como um animal.
— Eles fizeram o necessário para proteger os homens e mulheres de bem!
— Tente olhar para si. Você não precisa de armas forjadas por artefatos mágicos para provar seu Valor. Possui a lâmina mais afiada que existe dentro de teu peito.
— Ótimo! Que tal lâmina seria esta?
— A palavra de Deus.
— Davi sente seu corpo tremer. Era como se as palavras da prisioneira atravessassem como flechas seu coração. Pela primeira vez sentiu que sua ordem poderia ter cometido algum engano. Talvez capturado a moça errada. Ou talvez estivesse tendo compaixão com a criatura. Para afastar o silêncio Frei Davi pergunta.
— Você aparenta saber muito sobre meu nome. Notei que ainda não sei o seu.
— Meu nome é Sabrina.
— Não acho nenhuma referência bíblica sobre esse nome.
— Tem diversas origens, mas para este lugar essa palavra não tem mais sentido. Meu nome agora é Cabra.
— Não diga isso!
— O Frade protesta.
— Nomes são o que nos difere dos monstros. Enquanto o demônio possui muitos nomes, você possui apenas um. Te chamarei de Sabrina a partir de agora. Sei que vai se sentir melhor.
— Obrigado Davi.

Se retira novamente para seus aposentos. Com a mão trêmula escreve em seu diário.
"Pai tenho minhas dúvidas. A violência desenfreada causada pela ordem é a forma correta de agir? Lembro-me dos artefatos que os irmãos trouxeram para cá, me pergunto se trataram com respeito os antigos donos. Amanhã conversarei com o Emissário. Essas dúvidas e questionamentos estão me matando por dentro. Será que é pecado ter compaixão para com o inimigo."

O Emissário estava de costas para o frade. Balança a mão e diz.
— Diga suas dúvidas meu filho. Tentarei responde-las de forma clara.
— Sobre a ordem, seria pecado ter compaixão com o inimigo?
— Você sabe quais são nossas virtudes certo?
— Sim, respeito, tenacidade e compaixão.
— Esta última sabe o que significa?
— Ternura para com o sofredor?
— Todo pecador é um sofredor silencioso. Nossos inimigos em geral estão tomados pelo pecado. Logo, eles estão sofrendo. Nenhum pecador é feliz de verdade, só encontrará paz e felicidade ouvindo a palavra do Senhor.
— O Emissário se vira olhando diretamente para o frade.
— Nossos inimigos sofrem. Você não deve ter ódio de uma alma atormentada. João Batista disse uma vez:
"Se alguém diz que ama a Deus, mas não ama seu semelhante, é mentiroso."
— 1 João 4:20.
— Você ainda é uma enciclopédia quando se trata de versículos. Acho que nunca conheci ninguém que guarda-se com exatidão cada parte da Bíblia. O que o Apóstolo São João afirma é uma grande verdade. Como bem sabe Deus esta dentro de todas as criaturas. Então, se temos raiva de alguém isso atinge o próprio Deus que nele habita. Por isso tente demonstrar teu amor para com aqueles que estão perdidos na escuridão.
— Até os ateus e hereges?
— O Emissário se aproxima do frade apertando seus braços.
— Até eles meu filho. Um dia conhecerá o Grão Mestre de nossa ordem. Quando nossos objetivos se tornarem realidade todos eles entenderão a palavra do Salvador.

Frei Davi estava mais alegre que de costume. Estava convencido de que Sabrina poderia ser curada com a palavra de Deus. Seu ato de compaixão seria recompensado pelo exorcismo da criatura. Se dirigiu até o local de costume junto a um cobertor, pois disseram que as noites seguintes seriam frias. Esperou, esperou e nenhuma fala da Súcubo.
— Sabrina, você está aí? — Nenhum sinal. O Frade esperou por mais um tempo e chamou.
— Sabrina! Por que ela não responde? — Por algum motivo estava preocupado com a prisioneira.
— Sabrina! — Sabia que a moça não fora movida de sua cela. Ela estava lá dentro e a dúvida o matava.
— O que eu faço? — Sabia que se entrasse na cela poderia ser o fim dele e de todos os seus irmãos. Porém ele não era tão insensível a ponto de deixar pra lá.
— Não me importa.

Ele beija o crucifixo e tenta abrir a porta. Esta trancada. Ele escuta um grito do outro lado. Sabia que era a voz da prisioneira. Talvez fossem os sentidos animalescos despertados pela súcubo. Talvez fosse a preocupação para com seu semelhante. Talvez fosse a vontade de Deus. Ele estava com medo, não de ser degolado ou violado. Tinha medo da incerteza do que havia do outro lado.
— Não posso ficar indiferente.

Parado sobre a porta ele ressoa as seguintes palavras.

"O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará."

Uma energia mística cobre todo seu corpo.

"Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas."

A paz dentro de seu interior passa a criar uma aura.

"Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome."

Ele sabia que existia algo do outro lado. Se fosse maligno ele tinha o poder necessário para purificar.

"Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam."

Nesse momento o medo não pairava em sua mente. Ele tinha o Valor necessário para destruir montanhas.

"Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda."

Cada vez mais seu Valor aumentava, junto a seu desejo de ver aquela porta em frangalhos.

"Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias."

No momento em que finaliza o cântico Frei Davi esmurra a porta, esta se desfaz. Pedaços de madeira e metal podem ser vistos dançando sobre a luz da lua, que sorrateiramente entrava pelas frestas.
O Frade nada escuta, sua atenção está toda voltada para uma figura feminina deitada sangrando. Ele a abraça e a cobre com o cobertor. Se lamentando por ver uma cena tão decadente acaba pondo as lágrimas para fora. Se culpando por não ter impedido o destino cruel que tomou conta da prisioneira.

— Salmo 23. — Ele escuta uma voz vinda diante do corpo que está em seus braços. Era uma voz tão doce quanto a brisa que o cercava. Enxugando os olhos e se afastando da moça ele observa o quão bela era aquela mulher. Deveria ser um ano mais nova que ele, tinha pele alva e cabelos negros. Sim cabelos negros, a descrição do comandante não batia com o que estava diante de si. Aquela garota era como um presente dos céus, portadora de uma beleza esplêndida mesmo estando coberta por farrapos monásticos ensanguentados. Olhando fixamente para os olhos verdes da moça.
— Mesmo atirada em sangue você reconheceu o Salmo.
— Mesmo sendo perigoso você colocou seu medo de lado e entrou para ver se eu estava bem.
— Ela aperta as costas em gesto de dor.
— O que houve contigo?
— Teus irmãos vieram a mim enquanto dormia perguntando onde estavam minhas asas. Eu respondi que não tinha, então eles cravaram suas espadas sobre minhas costas com o intuito de achar algum apêndice demoníaco.
— Deixe-me cuidar de teus ferimentos.
— Por quê? Por que entrou?
— Não sei. Senti que era a coisa certa a se fazer. Não poderia suportar saber que minha próxima estava sofrendo. Além disso, estou convencido. A ordem pegou a pessoa errada.
— Por que diz isso?
— O mais óbvio seria que você teria me atacado assim que eu entrei. Outro fato é que as descrições não batem, você tem cabelo preto. Já a súcubo possui cabelo loiro.
— Fico feliz que acredite em mim. Acredito também que não poderá contar para seus irmãos sobre a descoberta.
— De forma alguma. Vão achar que eu enlouqueci por estar duvidando da ordem. Preciso te tirar daqui o mais rápido possível.
— Não vai ser fácil.
— Não mesmo, tem patrulhas de guardas por toda parte.
— Falando em guardas, como ficará a questão da porta?
— Irei conserta-la usando de minhas habilidades. Agora preciso ir, amanhã voltarei para discutirmos o plano a fundo.
— Te esperarei aqui.
— O Frade se retira, quando este está saindo Sabrina segura sua mão.
— Obrigado. Obrigado por tudo que fez por mim.
— Aquele singelo toque foi o suficiente para esquentar o coração do Frade. Nunca havia tido aquele sentimento antes, não sabia o que era. Uma coisa ele tinha certeza, estava aliviado por ver a prisioneira bem.
— Eu que tenho que me desculpar por meus irmãos. Espero que um dia você possa nos perdoar.

O Frade se retira de seus aposentos. Agora estava mais confiante, tendo a pena em mãos começou a redigir.
"Pai, a ordem errou. Tenho plena convicção de que pegamos a prisioneira errada. Soube que é da natureza das súcubos roubar a energia vital dos homens para se alimentar. Tendo ficado dias sem comer possivelmente eu seria mais uma de suas vítimas. Um fato incontestável é que Sabrina não se pôs a fugir, mesmo tendo oportunidade para tau ato. Além de outras comprovações como o alto conhecimento litúrgico. Farei da tua vontade realidade pai."

Na manhã seguinte ele pergunta para os guardas responsáveis se alguém havia entrado na cela do monstro, porém eles disseram que ninguém entrou ou saiu da cela. Davi logo deduziu que algum membro da ordem com cede de vingança deve ter entrado antes dele para punir a criatura.

— Você se lembra de quem fez isso com você?
— Importa? Esses soldados fazem isso diariamente em todos os cantos que vão levar a "paz". Esse lugar precisa de uma reforma.
— Quando for o emissário responsável mudarei os moldes de nossa ordem. Até lá tentarei ajudar a ti. Já criei um plano para te tirar daqui. Em cerca de duas semanas haverá um dia de penitência, durante a lua cheia todos os habitantes do castelo estarão rezando. Não tem como notarem nossa fuga.
— Como pode garantir que eu dure duas semanas?
— Irei me responsabilizar por sua segurança e cuidados. Passarei as noites aqui, isso impedirá que você tenha convidados indesejados.
— Acho que teremos muito o que conversar.
— Será uma boa forma de te distrair.

Durante dias os dois confidentes trocaram histórias e admirações mútuas. O Frade ensinou a freira sobre o Valor e o código das três virtudes. A Freira ensinou ao frade sobre os ritos das irmãs além de domínios das artes da natureza. Debateram sobre os apóstolos, Jesus Cristo e o papel de Maria perante a fé. Cada vez que conversava mais Davi se impressionava com a irmã. Eles se tornaram amigos próximos, era como se ambos fossem parte de um quebra cabeça prestes a se completar. Quando faltava apenas um dia para fuga Davi veio mais cedo que de costume.

— Ei, vamos dar uma volta.
— Ainda é cedo, acho que não é meia noite.
— Dispensei os guardas mais cedo hoje, venha tenho uma surpresa para ti.
— Não acho que é uma boa ideia. Se alguém nos vir?
— Não deixarei isso acontecer. — Ambos andam pelo corredor até pararem de frente para uma parede de pedra lisa.
— Eu não vejo nada.
— Não vê ainda. As pedras se separam mostrando uma passagem secreta que dava para uma escada em espiral. — Sabrina cruza os braços e da um leve sorriso.
— Êxodo 14:21?
— Movi as pedras não o mar.
— Ainda sim faz sentido. Podem falar o que quiserem de tua ordem, mas é inegável que possuem vários truques.
— Já disse que não são truques.
— Eu sei, é Valor.
— Ambos riem enquanto caminham para o outro lado subindo sobre as escadas.
— Sabe isso é estranho.
— O que? Escadas em espiral?
— Não, depois de ficar tanto tempo trancafiada é estranho voltar a liberdade. Todos os xingamentos, as agressões e o isolamento por qual passei. Agora tudo vai acabar certo?
— Você tem liberdade sobre o que mais prende os homens. Você está livre do pecado, posso confirmar.
— Como pode ter tanta certeza sobre tudo?
— Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça.
— Romanos 6:14. De mesmo modo posso citar 8:1,2. "Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus".
— Porque por meio de Cristo Jesus a lei do Espírito de vida me libertou da lei do pecado e da morte.

Eles trocam olhares sorridentes, adoravam completar versículos um do outro. O Frade pede para Sabrina fechar os olhos. Ele abre a escotilha, levando a freira cuidadosamente até o topo da torre.

— Pode abrir os olhos.
— É lindo!
— Os olhos verdes de Sabrina ficam vidrados sobre a lua. O mar refletia as pequenas luzes solitárias vindas do céu. Ambos observam o mar por uma das extremidades da torre lado a lado.
— Isso tudo vai acabar. Tudo que você passou vai acabar. Voltará para seu convento e darei ordem para que nenhum homem neste castelo pise em sua vila novamente.
— Nenhum homem?
— Sim, não quero te causar mais problemas. — Sabrina demonstra um olhar triste.
— Até mesmo você frade? Gostaria que pudesse me visitar.
— Não consigo compreender. Eu serei o líder desta fortaleza, o lugar que passou os piores momentos de sua vida. Por que gostaria de ter alguma lembrança daqui?
— Nem tudo tem um lado negativo. Eu sofri aqui? Sim, sofri muito. Só que teve algo que fez valer a pena essa experiência.
— O que exatamente?
— Você!
— Ela se aproxima de Davi. Seus rostos ficam em paralelo, olhos se encontram em um ar estranho. A face da moça está a poucos lábios do frade. Suas pernas tremem e um sentimento de confusão preenche seu intimo. Antes que um possível beijo aconteça Sabrina vira o rosto.
— Foi difícil o tempo que passei aqui, porém eu passaria por tudo de novo só para ver você. Esse sentimento, versículo nenhum pode explicar.

A garota que um dia foi chamada de Cabra se conforta nos ombros de Davi. Novamente aquele sentimento inundava seu peito, ele não sabia explicar o que era. Será que nutria sentimentos além da compaixão e amizade? Não queria pensar naquilo, queria apenas pensar nos últimos momentos que teria com seu moça. Os confidentes observaram o amanhecer até Sabrina ser colocada em sua cela. Indo para seus aposentos coloca as últimas informações em seu diário.

"Pai, não sou capaz de entender esse sentimento. Esse sentimento é parecido com o fogo que arde em minha alma. Não é um fogo ruim que destrói, aparenta ser um fogo que purifica. Não consigo parar de pensar na freira. Isso seria pecado? Será que é pecado fazer diferenciações no amor que se sente pelo próximo? Não sei o que dizer. Sim eu sei ,me apeguei demais a Sabrina. Na Ordem da Torre e do Valor é necessário fazer sacrifícios.
Amanhã será do dia que libertarei a prisioneira. Amanhã será o dia que redimirei minha ordem. Tive compaixão com o pecador, tive respeito com o erro e hoje terei tenacidade para com meus sentimentos pela moça. Farei isso por ti pai, farei isso pela ordem."

Sobre as flâmulas do anoitecer a fortaleza permanecia deserta, com corredores vazios e salas trancafiadas. O convento dentro do castelo estava lotado, todos estavam ajoelhados sobre a imagem de Jesus Cristo. Entre os valorosos um frade permanecia de joelhos, este se levanta cuidadosamente e se retira ao encontro de sua amiga. Ficou refletindo o quanto a ordem precisaria mudar daqui pra frente. Como a violência desenfreada não refletia os ensinamentos do livro sagrado. A porta da cela se abre lentamente, eles se abraçam pois sabem que esse será o ultimo momento. Em silencio ambos saem entre os corredores. Correndo em direção a luz da lua que banhava a saída, esperavam finalmente dar fim a aquele pesadelo. Uma figura grande e corpulenta para sobre os dois.

— Frater! — A figura congela ao ver seu protegido junto a Súcubo.
— Comandante Caneca!
— A freira entra na frente de Davi. O comandante cai no chão, era como se algo o puxasse. A freira segura forte a mão de seu amigo.
— Frater! Por favor não faça isso!
— Ele tenta se levantar no entanto é impossível.
— Não podemos ficar muito tempo aqui. Ele irá alertar os outros. — Davi estava confuso sobre o que faria um homem de tanto Valor como o comandante cair de joelhos. Nesse momento nada mais importava, ele só tinha olhos para a segurança de Sabrina.
— In malam partem, capri!

Fazendo um grande esforço, o comandante retira a espada e acerta a perna de Sabrina. Ele cai deitado no chão logo em seguida. Davi sabia que se ele voltasse atrás existiria uma chance de se redimir perante a ordem. Ele balança a cabeça e com uma grande força pega Sabrina em seus braços e corre em direção a saída. Ao fundo pode-se ver o comandante caído com a mão estendida gritando desesperadamente o nome de Davi. Davi então deixa a fortaleza correndo com sua amada entre os braços, sim era sua amada ele se importava com a freira como nunca se importou com ninguém.
Correu por muito tempo até parar sobre pastos verdejantes que eram banhados pelo luar. Ele corta uma parte de pano de suas vestes e faz um curativo improvisado sobre o machucado da amiga.

— Finalmente acabou, você está livre. — Ele aponta para a pequena estrada de terra.
— Seguindo por esse caminho encontrará o convento de Santa Rosa, não é muito distante. Diga que é uma freira e que foi sequestrada por homens terríveis. Elas costumam aceitar os necessitados.
— Enquanto a ti frade?
— Voltarei para meus irmãos e explicarei a situação.
— Não será perigoso?
— Tenho meu pai a meu lado. Por isso não tenho nada a temer. Isso também impedira que cheguem até ti. — Sabrina olha pra baixo de forma triste, Davi sabia que aquilo significaria a despedida dos dois.
— Creio que isso seja um adeus. Você não me respondeu quando disse que queria que me visitasse.
— Nessa vida sacrifícios devem ser feitos. Gosto muito de ti, porém tenho um compromisso com minha ordem. Tenho muito trabalho a fazer para impedir que novos inocentes sejam tratados desta maneira. — Ele fica de frente para Sabrina, seus dedos se entrelaçam com os dela enquanto o vento uiva em madrugada.
— Poderia me conceder um ultimo desejo? Sei que já fez muito por mim, porém eu gostaria de uma ultima coisa.
— Qualquer coisa por ti. — Ele sorri de forma calma, ela cora um pouco em seu estado de tristeza.
— Ontem tive vontade de beijar-te, me senti culpada pois uma freira deve se manter casta. Só que é algo que não consigo suportar. Deus irá me punir por te dar um primeiro e ultimo beijo?
— Acho que não. Visto que não poderemos mais nos ver, essa será nossa forma de despedida. Esse será nosso elo e nosso segredo. Deus será testemunha do que se passou e tudo que enfrentamos para chegar até aqui.

Sobre o sereno da noite os dois amantes se beijam. Para Davi era como estar flutuando em um espaço desprovido de cor e sentido, similar a estar completamente conectado com aquela a quem ama. Era uma sensação maravilhosa. O homem passa a sentir a linga de Sabrina se tornando áspera, sua face outrora macia começou a formar pelos cinzentos e seu crânio fora convertido no mesmo formato grotesco que havia observado no céu em seus sonhos. A cabeça de Sabrina havia se transformado em uma cabeça de Cabra. Davi se solta e cai no chão assustado perante a forma monstruosa que sua amada se tornara.
— Finalmente! — Grunhiu o monstro.
— O que? Isso não faz sentido. — Davi tenta usar seu Valor, mas não consegue. Seus sentimentos estavam misturados e confusos demais para tomar qualquer iniciativa.
— O que você não entende?
— As descrições não batiam. Você deveria ter cabelo loiro e não preto. — A Cabra solta uma gargalhada estridente.
— Súcubos assim como os Íncubos podem se transmutar em aparência, não é uma licantropia.
— Então por que não me atacou quando quebrei a porta? Tudo que passamos foi mentira? — Com o coração em frangalhos o frade grita.
— Tente se acalmar, você é um dos poucos homens vivos a me ver nesta forma.
— Foi mentira? — Davi grita mais uma vez.
— Você foi o primeiro e único homem que não quis deitar sobre mim. Talvez não saiba, mas as súcubos possuem a habilidade de despertar a tentação em todos os homens. Por isso teu comandante caiu de joelhos, ele estava em uma luta interna contra tentação. Eu permaneci ao seu lado para te induzir ao pecado.
— Por que se arriscar?
— Porque a história se repete. O Rei que leva teu nome e você são em muito semelhantes. Você assim como o Rei você traiu seus amigos pela figura feminina. Davi traiu Urias por Bate-Seba e você traiu a ordem por mim. Foi incapaz de confiar no conjunto que cuidou de ti por toda a vida. Agora eu te pergunto, quem é que tem mais propensão a pecar? O homem ou a mulher?
— Você ouviu minha conversa?
— Sim, mas não esperava que as coisas ocorressem deste modo. Agora você sabe que ninguém está isento do pecado inclusive você frade, aquele que jurou ser fiel a seus irmãos por toda a vida. Quebraste teus votos monásticos por decidir me amar mais que a Deus. — Davi se quebra em vergonha, jogou tudo fora por um demônio.
— Não se culpe por ter se apaixonado por uma filha do mal. Seu pecado seria tão grave se eu fosse humana como ti. Você não foi o único que cometeu um pecado, eu também cometi.
— Já está envolta no pecado um a mais e um a menos não faz diferença.
— Eu pequei contra meu mestre e contra meu pai. Eu me apaixonei por ti frade. Fui seduzida pelos seus atos de bondade e benevolência. Essa é uma relação que vai contra a natureza, nosso amor é algo que viola os paradigmas do bem e do mal.
— O que fará agora então?
— Não temos forças para lutar um contra o outro. Estamos em impasse. Como bem sabe estou a muito tempo sem me alimentar, não possuindo nenhum homem perto. Irei me deitar com ti frade não somente para repor minhas energias, mas por amor. Pois te amo meu amor. — A cabra se aproxima.
— Nos tornaremos um em carne e espírito.

Venha até mim amor. Venha beijar a cabra.

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