O calor do fogo, a textura da madeira, o som da indústria. Todos já eram familiares para o peão, uma parte de si tanto quanto do seu dia. Ainda assim ele não podia eliminar sua inquietação recente. Não haviam motivos racionais para tal; ele tinha trabalho e um teto, tudo que faltava ao homem no seu nascimento.
Durante o almoço (arroz, feijão, carne cozida com batata, salada de alface com tomate, macarrão, farinha e, como não podia faltar, molho de pimenta), enquanto mastigava, deixou uma pergunta escapar:
— Pra onde cês acha que vai as coisas que a gente faz aqui?
Sua pergunta foi prontamente censurada pelos outros peões, que temiam a represália comum que essa classe de pergunta tinha na fábrica: demissão.
É claro que ele estava ciente do fato, não era bobo afinal. Percebia o quão estranho a chefia era, com seus muitos ternos e muitas palavras. E não eram apenas os seus superiores, o homem tinha certeza que o chefe do sindicato não era o que dizia. Da onde se viu sindicalista que não é petista? Mas ele se lembrava dos dias na roça e calava sua curiosidade, a fábrica era melhor.
O dia foi até mais tarde para todo mundo, tiveram que limpar todas as máquinas para o dia seguinte. Ouvira que os culpados eram uns inspetores que iam aparecer para observar a produção. Não era incomum esse tipo de coisa, não era incomum a chateação dos homens também.
Seu dia se tornou um novo dia quando chegou na metalúrgica, haviam já ordens de esperar os inspetores para começarem os trabalhos. Os sujeitos chegaram meia hora depois do último peão, um bando de esquisitões com roupa de médico que mal pisaram no chão da fábrica e já estavam encardidos para dar graça ao dia dos trabalhadores. O peão como sempre começava a trabalhar antes do restante, era dele que dependia o trabalho dos outros afinal. A esse trabalho foi adicionado a tarefa de apoiar a lenha para um inspetor, que ia desenhar uns rabiscos nela, e depois mostrar para o colega dele, que anotava numa folha. Foi assim com todas as lenhas, das que eram basicamente gravetos até troncos pesados. Quando o metal derreteu ele foi ordenado a parada para que os homens na frente da linha de produção fizessem uma de vinte peças especiais, hoje o dia prometia acabar tarde de novo para todos.
E assim foi indo a lida. Lenha, rabisco, mostrar, fogo, lenha, rabisco, mostrar, fogo, lenha, rabisco, mostrar, fogo, lenha, mostrar, fogo, lenha, rabisco, mostrar, fogo.
Quando se deu conta sentia sua boca seca e a pressão de algo muito pesado no seu corpo, via apenas o escuro, se lembrava apenas de uma explosão e ouvia incessantes vozes raivosas junto de um zumbido:
— …táumica! Você é responsável por essa merda, entendeu?
— E o que a gente vai fazer?
O segundo homem era uma voz familiar: o encarregado geral da fábrica.
— Tá de sacanagem? É o seu primeiro dia de trabalho?
A sua mente começava a vacilar, o peão estava com sono.
— …amnesticizar todo mundo, mandar eles para longe, reconstruir a porra da metalúrgica…
O homem não conseguiria mais manter a consciência, já sentia o corpo escorrer para o vazio, mas antes que pudesse partir conseguiu ouvir uma última exclamação raivosa do sujeito desconhecido.
— …E VAI VOLTAR À PRODUÇÃO!