Entrevistadora: Dra. Álvarez
Entrevistada: Sra. Ramos
Prefácio: Afim de coletar resultados de efeitos -3 em indivíduos sem atividade ilícita prévia, pesquisadores 011-PT foram autorizados a anunciar descontos para hidroterapias experimentais (como uma empresa de fachada) em classificados, afim de recrutar cobaias a participarem de experimentos voluntariamente. Informações e documentação relevante podem ser encontradas no documento Operação: OpenAqua Amazônia.
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Dra. Álvarez: Você sente que teve alguma mudança geral ou significativa na sua vida, nos últimos anos desde que viajou para a Amazônia?
Sra. Ramos: Menina, faz tanto tempo, acho que minha vida mudou completamente. Você – você pode me ajudar? Perguntar algo mais exato, sobre emprego, casa. Só para fluir melhor a memória.
Dra. Álvarez: Teve algum ponto, assim, algum momento que pode apontar como o início da ‘mudança completa’ que ocorreu na sua vida?
Sra. Ramos: Deixa eu pensar…// [pausa]// Acho que foi quando… [pausa] Não, foi antes, se for pensar direito. Acho que quando eu comecei pensar bastante sobre uma pintura que vi em um brechó.
Dra. Álvarez: Pintura?
Sra. Ramos: Era um quadro meio Rococó, sabe, com duas moças… não dá para ver o rosto delas, mas são moças. Uma delas, na frente do quadro, estava de lado com o rosto virado para trás, com uma mão dela aparecendo no quadro, cortando o próprio cabelo bem curtinho, na orelha. Então, enquanto ela faz isso, a outra moça — ela beija a outra moça, na frente dela, enquanto ela bota a mão no rosto da primeira. Não dá pra ver exatamente esse beijo, mas assim, aquela postura toda não é de alguém beijando a bochecha, pra mim.
Sra. Ramos: Essas moças, elas eram bonitas. As duas eram escuras como eu e você, mas a de trás tinha uma aura, uma luz branca saindo da cabeça como aquelas imagens de santa. A da frente vestia um terno com um efeito meio brilhante, parecia estrelas. Não aparecia o rosto de nenhuma delas direito, mas eu sentia que elas estavam sorrindo.
Dra. Álvarez: É uma pintura bem bonita, imagino.
Sra. Ramos: É. Eu acho que vi esse quadro quando eu tinha lá por uns 15, por aí , mas só nesses anos depois da viagem que eu lembrei como ele era lindo. Teve um senhor muito simpático que me disse uma vez que arte boa é aquela que inspira, que toca o ser humano… isso que eu sinto por esse quadro é assim, parece que ele, sabe, falou comigo. [pausa] Ele me disse que moças podem fazer essas coisas, sabe, que podem se gostar assim.
Sra. Ramos: Você sabia disso, doutora? Acho que tem muita gente que nem pensa nisso, pelo menos não as pessoas com quem falei, de primeira.
Dra. Álvarez: Creio que ainda existe um certo taboo sobre relacionamentos deste tipo, infelizmente. Você quer falar sobre essas conversas, com essas pessoas?
Sra. Ramos: Eu posso tentar, não sei se vai compreender mesmo porque tem umas coisas que contextualizam, a história toda, pelo menos o meu motivo particular de pensar assim. E eu não sei se você não — não quer ouvir sobre isso. Muita gente com quem eu falei meio que só ficou me olhando como se eu fosse doida, então não sei se devia falar, mesmo você sendo profissional, e tudo mais.
Dra. Álvarez: Bem, você pode confiar que lidarei com qualquer informação delicada da forma mais profissional e compreensiva possível.
Sra. Ramos: Então tá, vou tentar. [pausa] Eu fui abusada quando eu era mais jovem, quando tinha uns 7. Meu padrasto, um homem desgraçado, nojento, bêbado, que batia em mulher sem dó, ele que abusou de mim. Ele não fez o ato diretamente, sabe. Mas ele me tocou, doutora. Ele fedia, nunca deixou de feder. Eu juro, te juro, que nunca vou me esquecer daquele homem hediondo, ele era a pura essência de satanás, mas na época eu não tinha consciência disso. Eu achava que eu que tinha feito algo de errado pra ele fazer aquilo comigo. Que eu era uma moça suja, que tava sendo punida pelo Senhor.
Sra. Ramos: Então eu falei com mamãe. Falei mamãe, eu me sinto suja, mamãe. Eu não quero mais ver seu marido, mamãe, eu quero ficar trancada. Não quero olhem pra mim, mamãe, eu vou virar freira, vou me dedicar só ao Senhor. Mamãe me ouviu naquele dia, graças a Deus e ela arranjou da gente morar em uma casinha alugada pela minha tia de parte de pai. Eu me sentia um pouquinho melhor assim, mas ainda passei muito sufoco pessoal, passei a dormir sentada pra parar de acordar no meio do sono com demônio na minha cabeça.
Dra. Álvarez: Eu sinto muito que tenha passado por isso. Aceita um copo d’água?
Sra. Ramos: Não, doutora, tá tudo bem, essa é minha vida. Eu aprendi a aceitar que essa é minha história. Só tenho que aceitar e não deixar isso ficar no meu caminho mais.
Sra. Ramos: Então tá, né, a vida foi indo, eu fui crescendo na igreja com os outros dizendo que um dia eu ia arranjar um moço que ia me tirar a tristeza do coração, mas — eu tinha muito medo de me casar, de deitar com um homem. A um ano atrás, acho, eu acho que cansei de ficar prendendo esse sentimento na cabeça e fui falar com outras moças, né, da igreja, pra saber se mais alguém se sentia encurralada assim, no fundo, e se casamento realmente ajudou.
Sra. Ramos: Duas moças que eu falei disseram que ah, é assim mesmo, a gente aceita essas coisas pelo marido porque é o certo, ser uma boa mulher. Mas teve duas outras moças – minhas amigas Claudete e Luana — elas disseram não, eu tenho medo também porque eu vi minha mãe passar aperto e não quero isso pra mim, porque eu não quero ficar cuidando de casa. Mas a gente não queria se afastar do Senhor.
Sra. Ramos: Eu disse pra elas, sabe, eu vi uma pintura muito bonita a muito tempo atrás, com umas moças juntas. Não seria bom se a gente pudesse se amar, se casar sem precisar desses homens podres na nossa vida? Ah doutora, elas ficaram rindo, mas, eu falei sério. Elas ficaram dizendo "Ih eu não, Gisele, isso aí é esquisito, não tem isso de mulher com mulher não, sai pra lá". Eu fiquei tão zangada com elas rindo de mim que eu fui falar com mamãe no mesmo dia.
Sra. Ramos: Eu contei da conversa e falei: então, eu vi a pintura assim e tal, não quer dizer que pode? E ela respondeu, não, Deus não planejou isso pra você, a gente vai conversar com o pastor. E, sabe, eu fiquei extremamente indignada porque, como assim? Foi me dito a vida toda que — que eu era amada pelo Senhor, eu segui a palavra até meus 22 anos e agora mamãe dizia na minha frente que eu não estava fazendo o que Ele planejou pra mim? Ah não. Eu tomei coragem e disse assim: “ah, mãe, eu tenho certeza que meu Deus me ama e é isso que ele quer pra mim sim e se eu só conseguir deitar com moça esse é o plano dele pra minha vida!”
Sra. Ramos: Olha, doutora, você devia ver a cara dela quando eu disse isso, acho que foi a primeira vez que eu levante minha voz pra ela na minha vida. Ela gritou logo em seguida: "então se é assim tu podes tirar seus pertences dessa casa que eu não quero filha minha se enroscando com mulher não!" [risos] eu não sei, doutora, deu uma vontade assim, de desafiar ela, que eu disse "então tá" e pus-me a fazer minhas malas.
Sra. Ramos: Sabe, naquela hora eu nem pensava se aquilo era verdade mesmo, se eu realmente queria me enroscar porque nem sabia o que isso significava, mas eu sentia que tinha que fazer aquilo por amor ao Senhor. Eu tinha cada vez mais certeza de que era isso que ele tava querendo que eu fizesse, ser dona da minha própria vida.
Sra. Ramos: Fora de casa eu arranjei rapidinho um emprego tomando conta de uma senhoria da igreja que ainda gostava de mim e ela me deixou morar na casa dela pra ajudar. Mamãe espalhou notícia de que não tinha mais filha, me afastou da igreja, mas eu ainda conversava com a Claudete e a Luana pelo telefone e a gente tentava se ver no fim de semana na pracinha lá perto.
Sra. Ramos: Enquanto eu morei na dona Célia ela me deixava usar o computador dela pra passar o tempo, estudar alguma coisa e eu procurei mais sobre isso tudo, achar mais gente que gostava de moça pra ter certeza que eu tava certa mesmo. [risos] Eu ficava com os olhos todo arregalado com as coisas que eu apertava sem querer, mas eu no fundo tinha muita curiosidade de aprender sobre essas coisas porque poxa, olha minha idade!
Sra. Ramos: Eu comentei dessas coisas com minhas amigas e elas ficavam assustadas, às vezes até diziam que eu tinha era que me benzê mas eu dizia “não, o mundo é assim mesmo gente, e eu acho que sou assim também e eu não vou deitar com homem nenhum, tô decidida”. Eu sabia que elas me achavam estranha demais por causa desses papos todos mas tinham a mesma curiosidade que eu tinha no fundo e por isso que não paravam de conversar. Enfim, um dia a Luana deu de me beijar, dizendo que queria ver se era bom mesmo.
Sra. Ramos: Eu não contei pra ela mas aquele foi meu primeiro beijo com mulher e eu senti um pouco de medo. Ela meio que parou de falar comigo depois disso, acho que ela percebeu que aquilo não era pra ela…eu chorei bastante durante dias até ter coragem de tentar participar num desses fóruns que eu fuçava e, sabe, desabafar. As moças que eu encontrei me ajudaram muito.
Sra. Ramos: Elas me ajudaram a aprender mais da vida, como se fossem segundas mães. Com elas eu tirei minha carteira, trabalhei em um hotel e depois num restaurante, arranjei uma casinha de aluguel. Conheci pessoalmente umas moças de uns bares na cidade grande que eram de igreja igual a mim, nos tornamos amigas e até fizemos nosso grupinho de reza particular. Começamos a nos vestir diferente, cortando cabelo, usando calça, bermuda, nos divertimos bastante com coisas que a igreja dizia que não podia mas que a gente sabia que Deus ia aceitar a gente do jeito que gente fosse feliz.
Sra. Ramos: Aí uns 3 meses atrás mamãe me achou e quis se desculpar. Eu a perdoei, claro, mas não voltei pra casa… agora eu me sentia livre de verdade, entende?
Sra. Ramos: No passado, acho que até aquele momento que eu saí de casa e segui meu caminho com minha própria fé, eu não senti que estava próxima do Senhor. Agora eu sentia isso no fundo do meu coração, me vestindo com roupa de homem, tendo intimidade com mulher igual a mim. Eu não queria me afastar do meu Deus de novo, me sentir suja. Então eu sigo esse rumo agora e…estou feliz, por mais que tenha gente que me veja com olho torto, xingando, cuspindo em mim. Eu me amo e sei que meu Deus me ama também.
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