Créditos
Artigo: SCP-065-PT — Tatu Difícil de Matar
Autor:
lulatred
Imagem: Imagem criada pelo usuário
Rammal.
Mais Informações:
Gostaria de agradecer a todos que ajudaram a criticar esse artigo lá no Discord e ao Lammar pelo lindo desenho.
Item nº: SCP-065-PT
Classe de Objeto: Seguro
Nível de Ameaça: Branco ●
Procedimentos Especiais de Contenção: Todas as instâncias de SCP-065-PT devem ser mantidas no Habitat Artificial 065-A, localizado no Centro de Vivário do Sítio PT10. O local possui 200 m² de área, com altura de 4,5 m, e pode ser acessado somente pelos integrantes do Grupo 065-PT-10.
O habitat procura replicar as condições climáticas da área central da Região Centro-Oeste do Brasil, onde as entidades foram inicialmente encontradas, e também deve conter espécies vegetais nativas da região anteriormente mencionada, além de apresentar uma fonte de água corrente potável e colônias de formigas e cupins, para a alimentação das instâncias. Uma vez a cada três dias, frutos variados devem ser introduzidos no habitat para contribuir na manutenção de uma dieta balanceada de todas as entidades.
Semanalmente, o habitat deve ser analisado com o fim de identificar qualquer problema nos equipamentos que mantêm o funcionamento do local, como o sistema de iluminação, de filtragem da água corrente, de regulação da temperatura, etc. Além disso, a mesma análise deve verificar a proliferação das colônias de formigas e cupins pelo habitat, além de verificar a condição geral das espécies vegetais do mesmo. Dada a autossuficiência do sistema presente no habitat, sua limpeza deve ser feita apenas para garantir a manutenção dos equipamentos presentes no local.
O grupo diretamente relacionado ao objeto, designado 065-PT-10, é atualmente formado por três destacamentos independentes, sendo cada um deles necessário para a pesquisa, contenção e/ou manutenção da contenção das instâncias de SCP-065-PT.
065-PT-10-A é responsável pela pesquisa, testagem e análise das características anômalas de todas as entidades atualmente registradas e contidas no Sítio PT10, além de serem responsáveis pelo estudo das carapaças individuais, também contidas no mesmo local, e do Documento ZKA-065-A.
065-PT-10-B é dividido em dois subgrupos, ambos voltados para a manutenção do bem-estar das instâncias. O primeiro, B-1, visa a manutenção das espécimes em si, realizando quaisquer procedimentos veterinários com as mesmas, quando necessário, e possuindo uma ala própria no Centro Veterinário do Sítio PT10 para efetuar tais procedimentos. O segundo, B-2, tem a função de manutenir os sistemas encontrados no interior do Habitat Artificial 065-A, a fim de preservar o ambiente onde as espécimes estão contidas.
065-PT-10-C é voltado para a localização, asseguração e contenção de instâncias de SCP-065-PT ainda não contidas em território brasileiro. Este destacamento possui subgrupos na grande maioria dos sítios da Fundação Lusófona, trabalhando em conjunto com funcionários infiltrados nas mais diversas instituições privadas e públicas de preservação ambiental. 065-PT-10-C também visa estabelecer contato com membros do Clube de Caça da Fauna e Flora dispostos a auxiliarem em buscas pelas entidades, seguindo as diretrizes do Tratado de Cooperação Eventual CCFF-FL 026.
Quando um total de quinze instâncias de SCP-065-PT estiverem contidas no Sítio PT10, e consequentemente ocupando o Habitat Artificial 065-A, o Protocolo 065-HA-02 deverá entrar em efeito, possibilitando a construção de um habitat artificial idêntico ao anteriormente mencionado, podendo também suportar apenas quinze espécimes em seu interior.
As carapaças individuais devem ser mantidas na Sala de Contenção Leve 06, no Sítio PT10. Dadas as pesquisas sendo realizadas com os objetos, estes não devem ser limpos, e as espécies vegetais e fúngicas encontradas nos mesmos não devem ser retiradas. Na mesma sala, em um arquivo metálico padrão, deve ser mantido o Documento ZKA-065-A. Apenas integrantes do Grupo 065-PT-10 possuem acesso à sala de contenção.
O Documento ZKA-065-A foi digitalizado e pode ser encontrado nos sistemas dos terminais encontrados na sala de observação do Habitat Artificial 065-A, que podem ser acessados por integrantes do Grupo 065-PT-10. Qualquer tentativa de copiar e/ou exportar os arquivos do documento para algum outro terminal ou servidor não autorizado será automaticamente registrada e reprimida.
Ilustração de SCP-065-PT-K, produzida pela PdI 13921, retirada do Documento ZKA-065-A.
Descrição: SCP-065-PT é a designação dada a uma espécie anômala do gênero Priodontes, fisicamente semelhante à espécie Priodontes Maximus (Tatu-Canastra). Atualmente estão registradas treze espécimes que compõem SCP-065-PT, denominadas de SCP-065-PT-A a SCP-065-PT-M. Todas as instâncias apresentam as mesmas características anômalas, sendo estas a presença de uma carapaça de composição ainda desconhecida, que se mostrou ser indestrutível, e apresentarem uma longevidade ainda indeterminada. As instâncias também aparentam desenvolver seus organismos por tempo indeterminado, sendo que a maior espécime registrada mede 1,59 m de altura e 2,13 m de comprimento, enquanto apresenta massa de 975 Kg.
As instâncias de SCP-065-PT utilizam suas carapaças como mecanismos de defesa. Dado o formato destas, as espécimes se abaixam e retraem suas cabeças ao se sentirem ameaçadas, protegendo seus organismos quase completamente, porém o resto de seus corpos ainda é vulnerável a quaisquer tipos de danos. O mesmo material que compõe suas carapaças parece ser o mesmo que se encontra na parte superior de suas cabeças e em seus rabos, porém essa teoria ainda não foi confirmada.
As instâncias de SCP-065-PT-E a SCP-065-PT-M apresentam diversas marcas em suas carapaças, além de algumas apresentarem espécies vegetais e fúngicas, que teoricamente desenvolveram uma relação de mutualismo com as instâncias. As marcas anteriormente mencionadas envolvem descolorações de certas áreas, pinturas de diferentes períodos e composições e marcas de dano. Espécimes presentes nas carapaças aparentam se desenvolver normalmente, mesmo não tendo acesso aos nutrientes do solo. Estudos estão sendo realizados tanto nas instâncias vivas quanto nas carapaças individuais para determinar como tal processo ocorre.
Além das espécimes vivas, por meio de buscas na região, foram encontradas quatro carapaças separadas, possivelmente de instâncias falecidas ao longo do tempo, designadas de SCP-065-PT-1 a SCP-065-PT-4. Tais objetos mostram que mesmo após o falecimento das espécimes, as carapaças mantêm suas características anômalas. Dadas as marcas de danos encontradas em três instâncias vivas, uma extensa série de testes foi realizada com estes objetos a fim de tentar encontrar um meio de danificar as mesmas. Todos os testes conduzidos até o momento não foram capazes de danificar a estrutura dos objetos por meios convencionais. Caso seja possível realizar tal feito, este documento será devidamente atualizado.
Descoberta/História: As primeiras três instâncias de SCP-065-PT foram recuperadas após registros de acidentes de trânsito próximos do quilômetro 568 da rodovia BR-163, localizada no estado do Mato Grosso, no dia 27/01/1998. Tais registros apresentavam causas distintas para os acidentes, porém todas eram consistentes na afirmação de que foram observados "tatus gigantes" no momento. Funcionários da Fundação infiltrados na Polícia Rodoviária na região não foram capazes de localizar os objetos no mesmo dia do acidente, porém equipes de contenção encontraram os mesmos no dia seguinte nas margens do Rio Arinos, que cruza a rodovia anteriormente mencionada.
A extração dos primeiros três espécimes foi realizada sem nenhuma complicação, sendo sucedida por uma extensa busca na região por mais instâncias. No dia 11/03/1998, durante uma das buscas pelo Rio Arinos, entre os municípios de Itanhangá e Brianorte, funcionários da Fundação identificaram membros do Grupo de Interesse "Clube de Caça da Fauna e Flora" disparando contra duas instâncias de SCP-065-PT. O contato inicial com os membros do CCFF foi realizado no mesmo momento, sem nenhum conflito.
Após a asseguração e contenção dos dois espécimes, contato entre o conselho administrativo regional do Clube de Caça da Fauna e Flora e representantes do Departamento de Assuntos Externos do Sítio PT10 estabeleceu no dia 06/04/1998 o Tratado de Cooperação Eventual CCFF-FL 026. Tal tratado determinou que o CCFF auxiliaria funcionários da Fundação na busca e contenção de instâncias de SCP-065-PT e de carapaças individuais, sob a condição de que membros do clube pudessem neutralizar apenas uma das entidades.
No dia 25/04/1998, o CCFF revogou sua condição para contribuir com o tratado anteriormente mencionado, porém ainda auxiliando a Fundação na contenção das instâncias. Membros do CCFF afirmaram que "[…] o gasto excessivo de equipamento, observado na caça dos animais, ainda se mostrou ineficaz contra os mesmos. A invulnerabilidade das espécimes os fazem irrelevantes para o Clube e tem sido motivo de conflitos internos com nossos membros, portanto o Conselho Administrativo tomou a decisão de interromper completamente a caça de ditos animais." De tal forma os termos do Tratado de Cooperação Eventual CCFF-FL 026 foram atualizados, simplesmente determinando os esforços conjuntos da Fundação e do Clube de Caça da Fauna e Flora para conter as instâncias de SCP-065-PT.
Do dia 15/02/2000 até o dia 23/05/2002 foram recuperadas um total de cinco instâncias de SCP-065-PT, todas pela região do Rio Arinos, no estado do Mato Grosso, com auxílio do CCFF. No dia 29/05/2002 o CCFF destacou a existência de um dos membros que havia deixado o clube por conta de conflitos envolvendo as instâncias de SCP-065-PT, e que possivelmente poderia estar com espécimes sob sua posse. O clube afirmou não ter conhecimento do paradeiro exato do ex-membro, registrado como PdI 13921, portanto buscas foram realizadas pela região para determinar a localização do mesmo.
O cadáver da PdI 13921 foi encontrado no dia 03/07/2002 nas margens do Rio Arinos, a menos de um quilômetro de sua residência, onde foram encontradas três instâncias de SCP-065-PT e o Documento ZKA-065-A.
Adendo: Documento recuperado após contenção das instâncias encontradas na residência abandonada da PdI 13921, localizada próxima ao Rio Arinos, Mato Grosso. O documento transcrito é um registro da interação da PdI 13921 com as instâncias anteriormente mencionadas, além de conter outras informações pessoais da mesma. Abaixo estão transcritas as partes de maior relevância para o estudo de SCP-065-PT, porém o documento completo pode ser consultado nos terminais da sala de observação do Habitat Artificial 065-A, podendo ser acessado por integrantes do Grupo 065-PT-10.
15/12/97
O Evângelo me disse hoje que ele achou uma presa nova pela região, perto do rio. Parece que são mais de uma também, o que é sempre bom. Ele encontrou elas junto do Maurélio e da Sandra, que chegaram com uma cara que eu nunca vi eles fazerem antes. Ainda não sei os detalhes, mas parece que eles voltaram com nenhuma azeitona sobrando, mas também sem nenhuma cabeça na mão. Pelo menos não voltaram com nenhum pedaço do rosto faltando, também. O que você acha que é? Talvez uma tartaruga gigante, ou quem sabe um caracol feito de pedra? Pode ser minha chance de conseguir pendurar alguma coisa na minha parede, mas pelo estado que os outros chegaram, tenho certeza de que não vai ser fácil.
16/12/97
São tatus. Lembra daqueles que apareciam de vez em quando no quintal de casa? Para pegar as mangas do chão? Esses são bem parecidos. Só que maiores. Muito maiores. Do tamanho de um boi, pelo que eu vi na foto. E não só isso, eles também têm arbustos crescendo nas costas, e uns cogumelos imensos e de diferentes cores. Mas tem um problema: eles param qualquer azeitona. Sim, pelo visto nenhum dos tiros atravessou os bichos, e eles atiraram bastante. Um pessoal vai ver se encontra eles amanhã, para saber se são tão duros de matar assim mesmo, e eu acho que vou junto.
17/12/97
Realmente, não vai ser fácil. Eles não só param qualquer bala, como eles também não mostram a barriga muito. Pelo que nós vimos hoje, eles passam a maior parte do tempo deitados, comendo ou dormindo até. Parece que as cabeças também tem a mesma questão, pelo menos na parte de cima. Acho que para acabar com eles você tem que ser muito paciente ou ter muita sorte. E eu não sou nem um pouco paciente ou sortudo. O Maurélio sugeriu levar um machado para tentar quebrar o casco dos bichos na marra amanhã, mas eu acho que não vai dar em nada.
18/12/97
Não deu em nada. Eu não pude deixar de rir da cara do Maurélio quando o cabo do machado se partiu em dois, mas nenhum de nós teve mais sorte que ele. Acho que ele vai desistir. Eu sinto que se esperar algum dos bichos levantar a cabeça para qualquer coisa, eu consigo dar um tiro certeiro. O Evângelo queria tentar alguma coisa essa semana, mas ele não me disse o que era. Lembra do dia que você matou um dos tatus que apareciam lá em casa? E chegou com o casco dele na mão? Como você fez aquilo? Você me disse que foi com suas mãos e um galho, mas até hoje eu não acredito.
21/12/97
O Evângelo levou uma motosserra hoje para tentar cortar os cascos dos bichos. Não foi nada bom, já que a correia quebrou e no meio do caminho cortou todo o braço dele. Acho que o Evângelo também vai deixar isso de lado agora. Por outro lado eu acho que quase acertei um tiro hoje, ou pelo menos cheguei muito perto de acertar, porque o bicho tomou um baita susto. Eu tentei fazer a mesma coisa depois, mas não tive tanto sucesso.
27/12/97
Veio um pessoal de outra sede hoje, para tentar caçar os tatus, um deles trouxe um lançador de arpões até. Eu continuo fazendo a mesma coisa de antes, mas ainda sem deixar nenhum arranhão no casco deles. Acho que eu vou dar um tempo, eu preciso pensar melhor no que fazer para derrubar esses bichos. O Conselho está começando a se irritar com essa história, já que estamos gastando muita bala com os tatus. Será que sobrou alguma coisa na casa da vó? Você me dizia que deixava tudo de importante por lá. Acho que vou dar uma olhada mês que vem.
13/01/98
Fiquei surpreso quando eu cheguei lá, parece que o tempo não fez tanto estrago na casa. Além disso, eu encontrei a sua escopeta, além de vários pacotes com azeitonas. Eu devo ir na cidade amanhã, para saber se ela está funcionando ou se precisa consertar alguma coisa. Eu devo aproveitar para visitar a mãe no centro, faz tempo que eu não falo com ela.
06/02/98
Hoje eu voltei para o clube. Parece que ninguém esqueceu dos tatus até agora, mas ninguém conseguiu derrubar nenhum deles também. Está tendo uma discussão também, um dos membros de São Paulo está sugerindo usar uma mina terrestre para acabar com os bichos. Uma mina terrestre? Por que não chamamos o exército logo para matar um tatu? Ou que tal jogá-lo num vulcão? Que ideia estúpida. Qual é a graça disso? Qual é o prazer disso? Esse pessoal quer que tudo seja moleza. Vou ver se encontro o Evângelo para saber o que ele anda fazendo.
18/02/98
Fizeram uma aposta hoje. Não uma aposta, mas uma espécie de prêmio para quem conseguir matar os tatus com alguma arma de fogo ou branca. Sem explosivos, sem venenos, sem ácidos ou essas maluquices que o pessoal de fora sugeriu. Acho que é dinheiro, mas não está definido. O Maurélio que fez isso, ele me disse que com certeza ninguém vai conseguir. Eu estou determinado, eu sei que consigo, só preciso esperar o momento certo. Lembra do que você sempre me dizia? "Com um facão você pode cortar galhos, folhas e arbustos. Tudo com um único golpe. Mas uma árvore é impossível de derrubar com apenas um golpe de um facão, ou dois, ou três, mas você sabe que é possível derrubar a árvore. Pode levar dias, semanas ou até meses, mas você sabe que em algum momento a árvore vai cair." Persistência. Persistência é tudo. Eu vou provar para eles e vou colocar o casco desses bichos no meio da sala. Eu sei que consigo.
26/02/98
Todo dia aparece mais gente de fora tentando derrubar os tatus. Acho que encontraram mais alguns deles pelo rio também. Eu tenho ficado horas deitado, só esperando eles darem uma brecha, mas parece que eles não são tão bobos assim. O Conselho continua irritado com essa história, mas eles não fizeram nada além de pedir para a gente deixar os bichos de lado.
11/03/98
Eu tinha me esquecido deles. É claro que não iria demorar muito para que a galera do Zoológico aparecesse por aqui. Eles conversaram com um pessoal de fora que estava com dois tatus e levaram os bichos embora. Eles não podem levar todos. Ou podem? Eu vou conversar com o Evângelo sobre isso, ele está aqui a mais tempo que eu, ele deve saber o que esses caras fazem.
24/03/98
Eles têm voltado aqui de vez em quando, acho que estão falando com o Conselho sobre a situação. Que droga, como eles viram os bichos em primeiro lugar? O pessoal de fora está tentando esconder eles, não sei onde, mas eles também parecem bem determinados em ganhar o prêmio. Eu não vou desistir. Eu não posso desistir. Não era isso que você queria?
06/04/98
Como o Evângelo disse, parece que o Conselho e o Zoológico fizeram um acordo. A gente só pode caçar um dos tatus agora. Que merda. Esse pessoal de fora ainda não desistiu, e com só um dos bichos isso vai virar uma bagunça imensa. O que eu faço? Será que eu desisto? Mas eu sinto que estou tão perto. Não, eu não vou. Tenho que pensar no que fazer agora.
17/04/98
Mais gente de fora continua vindo todo dia. E parece que todos eles tiveram a mesma ideia que eu, todo mundo está escondendo os bichos. O Maurélio e o Evângelo estão me ajudando a levar eles para a casa da vó, enquanto o Conselho fica cada vez mais irritado. Acho que o Zoológico pegou mais um dos tatus hoje, mas não tenho certeza. Eu só espero que eles não me encontrem.
25/04/98
O Maurélio me contou que o Conselho vai estar proibindo a caça dos tatus. Parece que o pessoal de fora está começando a sair, e que eles deram mais dois pro Zoológico. Ele me prometeu não dizer para ninguém que eu estou aqui, e me disse que o Evângelo também não vai falar nada. Eu devo passar amanhã lá para entregar o meu cartão e nunca mais dar as caras pelo clube. Nunca mais. Não era isso que você queria? Eu estou indo até o fim. Eu vou provar para todo mundo que eu fui até o fim.
13/05/98
Eles parecem bem tranquilos, como se soubessem que nada pode passar por esse casco. Eu continuo fazendo a mesma coisa de antes, dando cinco tiros em cada um deles por dia. Acho que hoje consegui restaurar um terço da casa, mais ou menos, e aquele pedaço do telhado que caiu ainda é um problema bem grande. Comecei a horta, mas acho que vou na cidade comprar mais algumas sementes, e mais balas também. E mais coisas para a casa. Persistência. Eu me pergunto como o Maurélio e o Evângelo estão indo, mas eu só volto lá com a cabeça desses bichos na mão. E com um furo nesses malditos cascos.
29/07/98
Finalmente acabei. Bom, pelo menos a casa em si, mais tarde eu tenho que pensar em restaurar o galpão. No meio das coisas eu encontrei uma foto sua, de quando você era pequeno. Eu usei a foto para esquentar o fogão no almoço de hoje. Ainda sobrou muita tinta, acho que vou tentar fazer alguma coisa com os bichos. Eu andei vendo se as plantas nas costas deles têm alguma coisa de diferente, mas parece que não. Vou ver se consigo dar um jeito de colocar alguma coisa lá, quem sabe um morango ou amoras.
04/08/98
Eu pintei alguns alvos no lado dos cascos dos bichos, talvez se eu acertar várias vezes no mesmo lugar eles furem. Como sobrou um pouco mais de tinta eu fiz alguns desenhos neles. No maior eu fiz aquele boneco que tinha no livro que você me deu. Kilroy, eu acho. É, acho que vou chamar ele de Kilroy. Estou tentando plantar amoras no menor deles, espero que funcione. Falando nisso a horta está indo muito bem, mas eu devo acabar voltando na cidade todo fim de semana para comprar mais balas e comida. Você acha que eu devo falar com a mãe de novo? Eu não acho que foi muito boa a última vez que eu fui lá.
13/09/98
Só hoje eu fui perceber que as balas voltam. Uma acertou a vidraça do segundo andar e quebrou ela toda. Tenho que tomar mais cuidado. As amoras começaram a crescer nas costas da Lina, e eu estou fazendo mais alguns desenhos no casco do Manco. Eu pensei que tinha conseguido furar o casco do Kilroy, mas foi só impressão minha, o barulho deve ter sido um graveto ou algo assim, mas eu sinto que estou perto. Eu tenho que estar.
25/12/98
Feliz Natal. Acho que eu vou ver a Helena hoje, eu tinha me esquecido completamente de que ela pediu para passar o ano novo comigo. Eu devia dar um jeito de colocar um telefone nessa casa ou algo assim, não acho que ficar tanto tempo sozinho está me fazendo bem. Mas e se o Zoológico puder ouvir as ligações? Não, nada de telefones. Eu só vou lá na virada do ano e vou voltar, só isso.
02/01/99
Eu falei para a Helena dos tatus, mas quem realmente gostou da notícia foram os filhos dela. Você sempre disse que queria netos, eu imagino o que você diria daqueles dois. A Helena está meio abalada depois de tudo que aconteceu com ela ano passado, então achei uma boa ideia chamar ela e os meus sobrinhos para passarem um mês ou dois aqui. Amanhã eu vou começar a consertar o galpão também, e eu devo arranjar uma canoa ou algo assim para o rio. Será que vale a pena? Você nunca me ensinou a remar, então acho que seria algo legal de aprender a fazer.
14/01/99
A Helena e as crianças chegaram hoje. Você tinha que ver a cara deles quando eles viram os bichos. Acho que o Kilroy ficou bem feliz, ele até se levantou quando as crianças subiram nas costas dele. A Helena disse que não estava muito surpresa, mas eu sei que ela adorou também. Acho que vou dar um tempo no tiro ao alvo enquanto eles estiverem aqui. As amoras da Lina já cresceram bastante, agora é só esperar a época de dar fruto. Que droga, eu nem pensei em limpar os quartos onde eles vão ficar, tenho que fazer isso agora.
26/01/99
Hoje eu deixei as crianças darem frutas para os tatus, parece que elas gostaram muito de fazer isso. A Helena parece mais tranquila também, acho que trazer ela para cá foi uma boa ideia. Eu encontrei mais algumas coisas suas enquanto dava uma olhada no galpão, e nós fizemos uma fogueira com tudo pouco tempo atrás. Eu imagino o que você diria. Enfim, vou ver se compro a canoa amanhã, acho que as crianças vão gostar disso.
18/02/99
Eu conversei sobre a mãe com a Helena hoje, enquanto as crianças brincavam com os tatus. Não sabemos o que fazer, mas ela não pode continuar do jeito que está. Ela diz poder se virar sozinha, mas nós duvidamos muito. Lembra da vez que nós quatro fomos naquela lagoa, onde você tentou me ensinar a pescar? Eu sei que eu deveria sentir falta desses momentos, mas eu não consigo. Talvez tenha sido por sua causa. Talvez seja porque eu prefiro as coisas como elas estão agora.
26/02/99
As crianças pintaram um pouco as costas do Manco hoje. Achei que ficou lindo. A Helena vai voltar para a cidade semana que vem, já que as crianças precisam voltar para a escola e ela precisa voltar ao trabalho. Foi bom ter esse momento com eles, e espero que eles possam voltar algum dia. Nós concordamos sobre o que fazer com a mãe, a Helena disse que iria ligar para o asilo assim que chegasse em casa. Não é o que nós queríamos, mas é o mais seguro para ela. Não acha?
13/04/99
Estou quase acabando de consertar o galpão, e estou pensando em pintar ele de azul também. Ou que tal branco? Não faço ideia. Hoje começaram a brotar as amoras nas costas da Lina, mas o machucado na pata do Manco parece estar piorando. Eu sei que é por causa do caco de vidro preso ali, mas eu não tenho como tirar isso agora. Quando eu for para a cidade esse fim de semana tenho que lembrar de comprar os remédios para ele. Acabei de me lembrar que preciso voltar a praticar meu tiro ao alvo. Imagino quantas balas estão sobrando, tenho que ver isso antes de sair.
21/05/99
Acho que o curativo está dando certo, o Manco parece melhor. Acho que as amoras estão quase maduras, também. Eu te falei que minha perna nem treme mais? Esse lugar me dá uma baita paz. Será que eu deveria ter vindo para cá antes? Estou pensando em aumentar a horta, e talvez até fazer um galinheiro no espaço perto das pedras. Semana que vem eu vou me despedir da mãe antes da Helena levar ela para o asilo.
29/05/99
A mãe nem se lembrava mais de mim. Ela me chamou de Paulo. Paulo? Quem era Paulo? Não importa. Ela não quis minha ajuda quando eu ofereci, mas mesmo assim fez de tudo para que eu não entrasse no clube. Mas eu não posso ficar irritado com ela. Ela nem lembra mais do meu nome. Eu acho que deveria estar sentindo alguma coisa, como raiva ou tristeza, mas eu não consigo. Isso está certo?
17/08/99
Abriu um buraco imenso no fundo da canoa hoje. Eu não sei como. Eu estava indo pegar mangas mais para frente do rio quando essa merda começou a afundar. E eu vou te contar, não é tão fácil consertar essas coisas. Será que eu levo para a cidade? Não sei. Vou começar a fazer o galinheiro amanhã, aproveitando o que sobrou da obra do galpão e da casa. As amoras que eu colhi das costas da Lina estavam deliciosas. Mais do que o normal talvez. Do que eu estou falando? Eu nunca comi amoras antes.
03/09/99
Enquanto eu acabava o galinheiro eu percebi a quantidade de balas espalhadas pelo chão. Será que vale a pena dar um jeito de derreter tudo isso? Que nem aquele pessoal dos livros fazia? Não sei, talvez seja melhor vender no ferro-velho mesmo. Isso é outro problema, eu ainda tenho bastante, mas não sei quanto tempo vai durar. Tenho que encontrar as galinhas com alguém da região rápido. Quem sabe ter cabras também? Talvez isso seja trabalho demais para uma pessoa só.
05/10/99
É engraçado, sabe? Quando você joga uma pedra numa janela, você sabe que ela vai quebrar. Quando você acerta um tiro em um bicho, você sabe que ele vai cair. O máximo que eu consegui foi descascar a tinta dos alvos. Eu tentei dar ovos para eles hoje, mas parece que eles não gostaram tanto. Acho que o machucado do Manco sumiu completamente, mas agora o nome dele não faz sentido nenhum. O dinheiro das balas não serviu de quase nada, talvez isso tenha coberto as compras de duas semanas, no máximo. Tenho que pensar no que fazer. Será que posso vender os ovos que sobram?
19/11/99
Eu visitei a Helena hoje, as crianças querem muito voltar para cá. Sugeri que eles passem o ano novo aqui, acho que vai ser divertido. Ela parece bem melhor que antes, a mãe ficaria feliz. Me pergunto como a mãe está por lá. Estou pensando em retocar a tinta do Kilroy e do Manco, e acho que vou tentar plantar morangos nas costas da Lina também.
04/01/00
É uma pena ter que ver eles saírem, mas a Helena disse que depois dela resolver os problemas do trabalho ela voltaria aqui. Talvez até mesmo no recesso do meio do ano. Falando nisso, estamos no ano 2000. Quem diria, a virada do milênio. Digo, nada mudou realmente, mas mesmo assim, é um momento histórico. Eu acho. Os primeiros ramos dos morangos estão crescendo, o que é um bom sinal. Acho que o Kilroy está ficando mais gordinho também, especialmente nas patas. Será que eu estou dando muitas frutas para eles?
13/03/00
O Maurélio veio me visitar hoje. Eu pensei que eles já teriam se esquecido de mim a essa altura. Ele disse que o Zoológico levou sete tatus no total, e ele está com medo de que o Conselho se lembre de que eu saí exatamente no mesmo momento em que as brigas estavam rolando. Ele quer que eu volte para o clube. Eu disse que não posso. Não antes de fazer isso. Eu me lembrei porque eu vim para cá em primeiro lugar. Persistência. Eu preciso acabar.
22/05/00
Eu juro que consegui. Eu não sei como, mas consegui. É um arranhão minúsculo, quase invisível, mas está lá, eu senti com meu dedo. Bem no meio do alvo do Kilroy. Eu estou quase lá, acho que essa maldita árvore vai finalmente cair.
04/07/00
O buraco está ficando mais fundo. Estranho que nos outros ainda não tem nada, acho que vou começar a atirar só no Kilroy. Tenho que falar para a Helena não vir aqui nessas férias. Eu preciso acabar com isso. Eu estou tão perto.
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Está começando a rachar. Eu vi. Eu consigo ver a cabeça desse bicho empalhada na parede, e o casco dele na sala. Talvez eu possa usar o casco como uma casinha de cachorro. Minhas balas estão acabando, preciso ver quanto sobrou.
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Eles vão cortar a luz mês que vem se eu não pagar. E eu não tenho mais nada. Quando as galinhas morreram? Eu comi todas? Ou foi uma raposa ou um bicho qualquer? Eu vou dar os últimos tiros e vou começar a usar a faca da cozinha, ou talvez a foice do galpão.
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As balas acabaram. Eu errei alguns tiros, mas mesmo assim. Vou começar a usar a foice.
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Acho que eles cortaram a luz hoje. As noites estão bem frias. Ou será que sou só eu? A foice quebrou. Isso me lembra de quando o Maurélio quebrou o machado dele nesses bichos. Só me resta usar as facas da cozinha. Eu estou quase lá. Persistência. É tudo que eu tenho.
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Eu não acho que a horta e as frutas vão me sustentar por muito tempo. Só falta usar uma faca daqui. Se isso não funcionar vou tentar um martelo. Ou pedras mesmo. Nem que eu tenha que usar os meus próprios dentes, eu vou furar essa merda.
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Eu consegui. Eu finalmente consegui. A faca passou pelo casco e furou as costas dele. O bicho se debateu e correu pela área da cerca. No meio disso ele me deu uma cabeçada bem forte, mas nada demais. Falta muito pouco. Persistência.
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O Maurélio e o Evângelo vieram hoje. O Conselho falou de mim para o Zoológico. As buscas devem começar amanhã. Eles falaram que vão tentar impedir que eles cheguem aqui o máximo que puderem, mas eu sei como essas coisas terminam.
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O Kilroy está com muito medo de mim. Ele passou o dia todo encolhido no casco. O sangue dele secou na faca. Eu vou na cidade hoje. Tenho que avisar a Helena que o Zoológico vai atrás dela. Eu sei que eles vão. E eu preciso ser mais rápido que eles.
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Lembra de quando você me levou para caçar pela primeira vez? Com essa mesma escopeta aqui? Eu estava morrendo de medo, porque eu odiava o barulho das armas, mas mesmo assim você colocou essa merda na minha mão. Você me colocou de frente para o coelho e me mandou atirar. Eu lembro do gosto do sangue que respingou na minha boca até hoje. Lembra de quando você me fez entrar no clube? Lembra do que você me disse no primeiro dia? Você disse que tinha que caçar as "bestas". Você disse que tínhamos que matar todas as "bestas". Não importava o tamanho, a cor, o formato, nada. Toda a minha vida você me disse que eu não seria nada. Que eu não conseguiria nada. Que eu nunca fui nada. Porque eu não era "persistente". Eu não matei suas "bestas" porque eu nunca quis ser como você. Eu corri atrás de persistência todos esses anos por nada. E pensar que uma "besta" foi o bastante para me fazer perceber isso. Que a única besta de verdade era você. Eu consegui tudo que eu queria e mais. Minha perna não treme. Eu tenho três tatus gigantes no meu quintal. E o que você teve? Nada. Deixou a Helena e eu para trás. Deixou a mãe para trás. E morreu como ninguém em lugar nenhum. Mas eu também vou morrer como ninguém em lugar nenhum. Será que eu acabo com isso? Será que eu provo que eu consigo? Provar. Eu tenho que provar algo para alguém? Eles já não ligam mais para isso. Eu mesmo já não quero mais colocar a cabeça dele na minha parede. Você? Será que eu tenho que provar algo para você? Você nem está mais aqui para reclamar. Eu não posso acabar nas jaulas do Zoológico, e o clube nunca me aceitaria de volta. Eu vou soltar o Kilroy, o Manco e a Lina. Eu também vou queimar a casa. E eu espero que você e tudo que você já foi queime com ela. Essa merda da sua escopeta vai ser a última coisa que eu vou ver.
Mas acho que no fim você estava certo, pai. Parece que eu não sou tão persistente, afinal.