É meio estranho para mim escrever meu dia-a-dia em um diário, mas um amigo, Daniel, falou que isso podia ajudar-me a "extravasar" um pouco por eu andar estressada. Honestamente não acho que funcione muito, mas de qualquer maneira se funcionar é lucro.
Então, sobre o meu dia, ele foi bem cansativo, tive que limpar a casa toda sozinha. Era para meu pai me ajudar, mas ele saiu para vadiar com os amigos dele, isso é extremamente irritante. Mas que saco, o cara não faz nada dentro de casa e quando tem que me ajudar ele sai fora. Pelo menos consegui fazer tudo e isso significa que amanhã não terei nada para fazer, ou seja, um bom dia de descanso, é o que eu espero.
Hoje eu vi um daqueles caras do outro lado da prisão azul observando a vila lá daquela pequena base deles, me senti desconfortável, na verdade toda vez que noto um deles observando-nos me sinto assim. E eles estão sempre lá, parados, nos olhando, construindo coisas ao nosso redor e colocando mensagens na prisão azul. Ninguém confia neles, muito menos eu, eles passam um ar estranho de mistério e aqueles corpos deformados deles… Nojento. O próprio padre disse para nos afastarmos deles e que eles seriam demônios querendo entrar aqui por aqui ser "um lugar melhor do que lá fora". Essa historinha, como tudo o que ele fala, de que esse lugar é melhor do que lá fora não cola comigo, lá fora pode ser qualquer coisa menos pior do que aqui dentro.
Sabe, eu não sei o que esses caras são, mas me preocupo com o que eles podem fazer se entrarem aqui. O que será que querem conosco?
Depois de amanhã haverá outro ritual e uma pergunta que me faço há muito tempo me vem na cabeça de novo: Por que não fazemos nada em relação a esses malditos rituais? Tá, eu sei o porquê decidimos isso, mas não há mesmo um meio? Não é possível que o destino de tudo isso seja apenas esse inferno cíclico.
Tentei conversar sobre isso com o meu pai e ele disse que não há nada a se fazer, que as coisas são assim mesmo, falou que se nós não fizéssemos o ritual poderia haver consequências. Queria dizer para ele que pode haver uma solução, algo que ainda não tentamos, mas ele não quis me ouvir. Que droga.
Queria poder conversar com Daniel sobre isso ou só com alguém que me escute mesmo, mas sei lá, tenho medo que falem ao padre ou a alguém e eu arrume problemas. Principalmente se falarem para o padre, caso ele se zangar comigo algo de ruim pode acontecer, pelo fato dele mandar por aqui e também por já ter dito publicamente que aquele era o único meio e que todos outros estavam "errados." Odeio como as pessoas engolem o que ele diz sem questionar, elas tem fé nele por ele ser um padre e representar deus, veem nele um porto seguro, mas isso não é uma questão religiosa e sim, de sobrevivência. Me sinto acuada com tudo isso.
Sabe o que eu não entendo? Qual é o método de escolha desse maldito padre nesses shows de horrores? Ele nunca nos contou como escolhe quem irá morrer e quem não irá. Ouvi falar hoje mesmo que ele escolhe quem causa problemas. Isso me dá receio, ontem eu já estava falando que tinha medo de arrumar problemas com ele e hoje já ouço rumores ruins sobre ele.
Mas eu não sei… Mesmo com tudo isso sinto algo que me impulsiona a dizer que isso e aquilo está errado e que algo deveria ser feito. Tenho medo daquela besta alada, mas tenho mais medo que tudo isso continue.
O ritual ocorreu hoje, como sempre e meu deus, fazia tempo que eu não via um ritual tão sangrento e tão horrível. O escolhido dessa vez foi a mãe do único amigo que eu tenho, Daniel.
Eu vi aquilo acontecer da janela do meu quarto. Ela nem tentou entrar na casa de alguém ou na sua própria, acho que ela não queria que ninguém acabasse sendo pego também. Jesus Cristo, aquela besta nem usou a lâmina da lança para matar, ele simplesmente usou o cabo da lança, golpeando-a com aquilo várias vezes, na cabeça, no estômago, em todo o corpo. Os gritos e gemidos de dor dela eram insuportáveis e terríveis.
Aquela coisa ainda ficou me encarando através da janela antes de desaparecer. Eu odeio esse lugar com todas as minhas forças.
Decidi hoje ir na casa de Daniel para conversar, queria dar minhas condolências pelo o que aconteceu, até porquê ele é meu único amigo e uma das pessoas mais importantes para mim, então me senti obrigada em fazer isso.
Enfim, Daniel está morando sozinho agora. Ele falou que a casa anda muito silenciosa sem sua mãe, falou também que conseguiu ouvir os gritos dela, assim como eu. Quando ele falou dos gritos começou a chorar, tentei consolar ele, mas não adiantou muito. Enquanto chorava me disse algo que me assustou: Contou que sentia ódio pelo padre e contou também que antes de sua mãe ser morta, o padre estava dando em cima dela e ela não estava gostando, sua mãe logo contou para algumas pessoas sobre isso. E bom, Daniel desconfia que o padre escolheu ela no último ritual para que sua imagem de "santo" não seja manchada. Daniel falou que não deixaria barato, não mais, quer mudar as coisas, virar nossa situação de cabeça para baixo. Disse que precisa de minha ajuda para isso e que entendia se eu não quisesse ajudar, enfim, eu aceitei e falei para ele o que eu sentia e achava sobre toda a situação que estamos. Ele sorriu e me abraçou agradecendo, parecia feliz.
Não sabia que Daniel tinha tantos amigos, ou melhor dizendo, contatos. Ele conhece a vila toda. Isso é totalmente o oposto de mim, me limito a um grupo muito pequeno de conhecidos, sempre fui distante da grande maioria do pessoal da vila. Talvez eu devesse ser mais sociável, pode ser bom.
E bem, Daniel falou que vai usar esses contatos para organizar um encontro com alguns conhecidos que também querem uma solução para os rituais. Ele quer que eu vá nesse encontro e eu vou. Apesar de tudo a data ainda não foi marcada, então tenho um certo tempo para me preparar para isso.
Acho que estou começando a ficar paranoica, tudo isso por conta do que eu e Daniel estamos fazendo. Depois de ontem, comecei a pensar e desenvolvi um certo medo de que descubram algo ou que alguém que Daniel convidou para esse encontro conte tudo. Só de pensar de alguém contando sobre isso para o padre, ele me escolhendo no ritual como castigo… E aquela besta me perfurando com a lança no meu estômago, tudo isso me trás agonia, medo e paranoia. Definitivamente tenho que parar de pensar nisso, preciso ser mais confiante.
Eu e Daniel estamos nos vendo cada vez mais frequentemente, isso é bom, não conversava muito com ele antes ou com alguém além do meu pai e eu gosto de conversar com Daniel, apesar dele me incomodar um pouco por conta de ser um cara meio esquisitinho, às vezes tem umas ideias meio loucas, mas é alguém bom.
Espero que meu pai não nos incomode muito, às vezes ele fica fazendo perguntas demais e querendo saber de assuntos pessoais que não lhe cabem. Minha paranoia colabora para piorar isso, meu pai não sabe do que estamos fazendo, espero que ele não me traga problemas.
A data do encontro foi marcada, vai ser daqui sete dias, uns dois dias depois do próximo ritual, será a noite na casa de Daniel, ele escolheu essa data para que todos tenham tempo de se preparar para o próximo ritual e para o encontro em si.
Perguntei por curiosidade o que ele falará e irá fazer naquele encontro, pois ele não me falou muito sobre isso, apenas que estava organizando o encontro não dando muitos detalhes, enfim, disse que dará um discurso dizendo sua ideia para uma solução a isto e com o discurso convidará para que as pessoas se juntem a causa. Ele não quis falar para mim sobre o conteúdo do discurso, terei de esperar. Queria que paciência fosse uma característica minha.
Daniel perguntou se eu não estaria interessada em convidar meu pai para o encontro, só dei e ainda dou risadas disso. Meu pai é a última pessoa que eu convidaria para isso, não é nem um pouco confiável, ele já naturalmente faz fofoca sobre mim com os amigos dele, imagina se eu falasse algo assim para ele! Além do meu pai claramente não apoiar essa ideia com o "conservadorismo" dele, não dá para confiar.
Dormi mal hoje. Sabe quando você acorda todo dolorido? Então, acordei assim. Ainda por cima tive um pesadelo hoje. Nesse pesadelo eu estava perto da igreja. A vila estava deserta e aquela coisa, aquele monstro estava lá em pé na minha frente. "A arte de caçar, tão nobre e revigorante…" foi o que ele disse, mesmo que ele não tenha uma boca para falar. Sentia medo, comecei a correr, mas ele conseguiu me alcançar, ele me matou em poucos segundos, atravessou minha nuca com a lança. Que horror. Me sinto meio louca por sonhar com esse tipo de coisa.
É amanhã, mais uma vez terá outro ritual. Dessa vez tentei não ficar pensando muito no ritual e no que lhe rodeia, até saí para tentar socializar conversando com algumas pessoas na rua, mas parece que todos ficam ariscos quando o dia do ritual está batendo na porta, eles não querem conversar. Não culpo-os, normalmente também fico assim em datas próximas a isso, é compreensível.
Acabei voltando para a casa. Já como não tinha nada para fazer e queria ocupar minha cabeça, vasculhei meu sótão com o intuito de arrumá-lo e descobri algumas ferramentas de pintura velhas, como quadros e pincéis, eles são de quando eu pintava, antes de tudo isso começar. Isso me lembra do que se passou… De como viemos parar aqui. Não gosto de lembrar.
O ritual aconteceu mais uma vez, mas dessa vez não foi apenas uma vida que foi levada, foram três. Um homem tinha sido escolhido era alto e parrudo. Eu não conhecia aquele cara, mas fico feliz em não conhecer, pois ele agiu como um covarde. Não vi como aconteceu, apenas fiquei sabendo depois o que ocorreu e a única coisa que eu sei é que de alguma forma ele conseguiu entrar na sua casa, pelo visto morava com sua esposa e filha. A besta fez questão de não deixar nada em pé, a casa virou um nada, assim como eles. Deu para ouvir o som da casa desabando, era assustador.
É nesses momentos que você sabe o quão nojentas são as pessoas. Após a casa desabar e tudo se "normalizar", começaram a saquear os pertences dos falecidos que não foram destruídos. Ninguém e eu repito, ninguém, fez alguma coisa para impedir, nem mesmo o padre. As pessoas perderam a noção de respeito pelos falecidos.
É amanhã o encontro, estou ansiosa para isso, quero ver o que Daniel preparou. Daniel ainda me disse que vinte pessoas irão, era para ser bem mais, literalmente 31 pessoas, fico até impressionada com ele tendo conseguido reunir todas elas, porém se fosse mais do que isso poderia levantar suspeitas do padre, não que vinte pessoas deliberadamente indo para uma localização não levantaria suspeitas, mas não podia ser convocado um grupo pequeno de pessoas, tem que ser algo grande para que alguma coisa possa ser feita. Além do mais, no próximo dia também haverá um segundo encontro, dedicado as 11 pessoas que não irão nesse primeiro, foi dito por Daniel que eu não precisava ir neste segundo se eu não quisesse, mas eu vou, quero estar lá para dar apoio a ele. Se tudo der certo, aquele ocorrido de ontem certamente será o último.
O encontro ocorreu sem problemas, nem mesmo alguém chegou a se atrasar. Eu gostei do encontro, era legal estar no meio de toda aquela galera, mas fiquei surpresa com a proposta de Daniel para acabar com isso, quero dizer, já havia pensando no que ele falou, porém, não havia um grupo formado ou algo assim na época quando cheguei a pensar nisso; a proposta é matar a besta. Claro, houveram questionamentos, perguntando coisas como que tipo de armas usaríamos para isso, Daniel respondeu que para isso usaríamos facas, algumas armas improvisadas com os destroços das casas que foram destruídas, como pedaços de pau, ferro retorcido de algumas casas em específico e outros objetos, assim como usaríamos algumas cordas para tentarmos laçar suas asas, braços, etc. Foi dito também que os ataques se concentrariam nas costas daquela coisa, por ele ter dificuldade em se virar, mesmo que ele possa usar a lança ao seu favor. Ele quer fazer tudo isso ainda no próximo ritual.
Algumas pessoas não aceitaram a ideia e pularam fora, outras até aceitaram, mas queriam repaginar o que iríamos fazer e no fim, ele conseguiu convencer a grande maioria, 17 pessoas para ser específico e óbvio, eu faço parte dessa maioria. Inclusive, durante essa repaginação foi deixado bem claro que devemos evitar ao máximo o pessoal que nos observa do outro lado da prisão azul, concordo plenamente com isso, não consigo confiar neles e seus milhares de membros anormais.
O último encontro não foi tão bom quanto o esperado, menos pessoas aceitaram, só 4. Isso é um problema, mesmo que 4 pessoas a mais seja bom, é ruim ter tantas pessoas que sabem disso e que não estão de comum acordo. Algumas pessoas disseram que isso é uma espécie de suicídio coletivo, idiotas, o que mais poderia ser feito? Matar o padre? Simplesmente não participar dos rituais? Tentar quebrar a prisão azul? Já tentaram isso antes, nunca funciona, matar o padre só faz com que o anjo venha e escolha outro padre, simplesmente não participar dos rituais só faz com que o anjo venha e mate 10 de nós, não importando se estamos ou não estamos dentro de casa e nada do que nós temos nem arranha a prisão azul.
Diferentemente do último encontro as pessoas que aceitaram ficaram um tempo a mais enquanto as que recusaram foram embora, Daniel pediu para que essas pessoas avisem os outros sobre quem recusou e que fiquem de olho neles, inclusive disse isso para mim, não curto muito a ideia de ser uma "vigilante", mas tentarei meu melhor mesmo que não goste.
Nunca pensei que teria de escolher facas para matar alguém, ou nesse caso uma coisa. Acabei por escolher um cutelo e um facão, quando chegar a hora vou pegá-los para levar no ritual. Só imagino como vai ser chegar armada no meio do todas aquelas pessoas, junta de outras pessoas armadas. É meio assustador pensar nisso, mas vai ter que ser assim. Só espero a hora de matar aquela coisa alada, quero lhe ver sangrar.
Hoje foi o pior dia da minha vida, eu fiz algo que não dá para voltar a trás, tudo porquê uma hora Daniel passou aqui para ver como as coisas estavam e se eu estava preparada para matar a besta, ele está fazendo isso com todos que aceitaram então não estranhei. Eu deixei ele entrar e eu achava que meu pai não estaria em casa, mas ele estava e ouviu nossa conversa, ele esperou Daniel ir embora e foi me confrontar. Meu pai me xingou, extremamente irritado, disse que eu poderia morrer. Meu pai ia falar para o padre sobre aquilo, tentei impedir, tentei implorar, mas não me deu ouvidos. Continuei tentando e meu pai me deu um tapa, logo eu tive que agir… Tinha que fazer alguma coisa. Quando ele se virou, pulei nele, fiquei batendo na cabeça dele. Meu deus. Ele é velho, então não tinha muita força ou resiliência para lutas, logo consegui nocautear ele.
Coloquei meu pai trancado em um dos quartos da casa, deixei um dos seus braços amarrado a mobília para que ele não tente fugir.
Jesus Cristo… Eu fiz isso, eu bati e derrubei meu pai aquele que me criou. Eu sei que ele nunca irá me perdoar, mas vai ter que ser assim. Talvez, só talvez ele me perdoe se nós conseguíssemos matar a besta… Eu sou uma péssima filha.
Tentei dialogar com meu pai, embora ele não ter me respondido, deve me odiar definitivamente agora… Contei ao Daniel sobre meu pai, foi bom de certa forma, Daniel foi compreensível, até tentou dialogar, mas também foi ignorado. Tenho que pensar em um jeito para resolver isso.
Isso me faz pensar, não apenas no meu pai, mas em tudo. Nunca cheguei a falar muito sobre isso, mas até hoje não entendo o porquê estamos aqui, para ser bem sincera talvez não haja um motivo. Nós apenas estávamos vivendo nossas vidas quando tudo isso aconteceu, simplesmente viemos parar aqui e toda essa dinâmica de rituais se iniciou, quase como se já soubéssemos o que temos que fazer. Penso em como deve estar minha antiga casa, espero que ainda esteja inteira se um dia eu voltar. Me lembro que vivia tentando fugir de problemas ou simplesmente não arrumar confusão e fazer tudo direitinho.
Alguns pertences da minha antiga casa vieram comigo quando viemos para cá, como os quadros, gostava muito deles, mas não consigo mais olhar para eles como antes, agora eles são lembranças de um tempo que se passou. Me sinto mal em escrever e pensar nessas coisas, mas acho que devo desabafar de alguma forma.
Para piorar sempre nesses momentos me lembro do que o padre acha e fala sobre nossa situação: "É triste dizer, mas temos que aceitar que pecamos e que devemos pedir a Deus por misericórdia, somente assim de tal maneira seremos salvos", imbecil, eu odeio ele, odeio esse lugar e principalmente odeio essa criatura que nos atormenta.
Escutei barulhos vindo do quarto onde meu pai está e ele estava se debatendo, queria se soltar e parou quase que imediatamente quando eu entrei. Queria conversar com ele, queria falar algo, mas não adiantou. Saia do quarto quando meu pai disse-me que eu era decepcionante, me sinto magoada. Isso me trás um desânimo forte, até para ter forças para lutar, mas não, eu tenho que ser forte, não posso ficar parada enxugando lágrimas, o próximo ritual está vindo e eu devo estar pronta para isso.
Vou colocar barricadas na porta do quarto caso ele se solte e queira sair pela porta. Talvez a única coisa "boa" nesse caso é a falta de janelas naquele quarto.
Não entrei mais no quarto desde ontem, não sei se ele se soltou, mas não ouvi mais nada, tomara que tenha se acalmado. De qualquer maneira, com meu pai gostando ou não vou provar para ele que isso que estamos fazendo era o correto. No dia que eu abrir aquela porta, ele pode até desejar que eu morra, mas não haverá um anjo para nos atormentar, porquê o ritual é amanhã e vamos matar aquele monstro. Pai eu farei isto por você.