SCP-7005

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No dia que enterramos a minha irmã, estava ensolarado. Estava escaldante. Era um pequeno cemitério na cidade, um pedaço de grama seca, amarela e queimada. Quando eu revisito essa memória, eu não me sinto em casa, mas eu acho que não era para eu me sentir. Eu nunca soube de mais nada.

Eu não chorei. Não me lembro de muito, mas eu lembro disso. O choque era muito profundo. Eu não conseguia entender o que havia acontecido com ela. Eu fiquei ali, entre meus pais, minha mãe com um véu e meu pai devastado e chorando. Eu só tinha oito anos. Ela estava sorrindo para mim.

O dia não era nada. Não significava nada. Não parecia com aqueles funerais que eu via na TV, aqueles que marcam o fim de algo. Era só um dia, enquanto os gafanhotos cantavam e o vento batia nos caules. Ela não se foi. Ela estava ali, naquela caixa. Não havia história a ser contada além daquela da terra dos coveiros, ritmicamente batendo no caixão.

Quando nós fomos embora, para nossa nova casa no país, pegamos o trem. Meus pais tentaram conversar a tarde toda, mas eu não precisava que eles conversassem. As rodas deslizavam nos trilhos, presas na grama e nos cabos, com a vegetação florescendo mais e mais. E eu estava feliz. Agora eu enxergava – a escapatória, a re-criação. A dança das nuvens, o vento no ar. As maçãs de outono.

Eu escrevo isso na última linha para a normalidade, só para descobrir que o conselho O5 ficou louco. Eles estão queimando a Fundação de dentro pra fora. O Kells provavelmente está bêbado no chão, xingando ele mesmo e todos que passam por ele. E o Deus Neon reza na minha visão periférica, quase visível, quase ali, mas sempre acima de tudo.

Ninguém lerá as palavras que eu escrevo. Mas, oh, meus queridos amigos, vocês não precisam. Elas estarão ali de qualquer jeito.

~ Dra. Rosie Hartlepool


SCP-7005


POR ORDEM DO CONSELHO O5

O seguinte arquivo está confidencializado sob Nível 5/7005. Acesso sem autorização é proibido.

7005

Item N°: SCP-7005 Nível 5/7005
Classe do Objeto: Thaumiel Confidencializado

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Um trem de SCP-7005 passando entre o Universo A001 “Prime” para o Universo A051 “Império Mongol Infinito”.

Procedimentos Especiais de Contenção: SCP-7005 foi colocado sob jurisdição do recentemente fundado Departamento de Logísticas Interdimensionais, que atualmente opera fora do Sítio-565 e está sendo provisoriamente chefiado pela Dra. Rosie Hartlepool e o Dr. Simon Kells. As atuais diretrizes operacionais, em vez de focar em contenção, foram projetadas para continuar a facilitar comunicação e viajem através do multiverso. Por esta razão, um grau incomum de liberdade foi concedido para o contrato de pessoal e acesso a pessoal fora da Fundação para SCP-7005.

No entanto, certas medidas de contenção no Universo A001 “Prime” foram consideradas necessárias. Especificadamente, pessoal da Fundação barraram todas as entradas conhecidas para SCP-7005, preservando a natureza pública de construções onde apropriado e caso contrário foram criados sítios de pesquisa temporários para que membros da Fundação viajem entre universos com facilidade.

O uso das informações obtidas de SCP-7005, especificadamente a observação de diferentes anomalias em diferentes universos, foi aprovada para melhorar a contenção de anomalias no Universo A001.

Descrição: SCP-7005 é uma rede de transporte multidimensional, comumente conhecida como Lampeter. SCP-7005 consiste em múltiplas formas convencionais de transporte – incluindo, por exemplo, trens, automóveis, aviões, balões de ar quente, e o sistema Mongol yam - na qual foram alterados de forma desconhecida para se mover entre diferentes linhas do tempo, universos e realidades, especialmente projetadas para servir de interseções e centros de transporte.

SCP-7005 faz um papel importantíssimo em comunicação e transporte para ambas a Fundação e organizações anômalas no geral. Sua amplitude completa, neste universo (A001 “Prime”) e em outros, abrange mais de 4000 universos conhecidos, com diversos outros suspeitos de existir. 12 pontos de embarque foram descobertos em A001 “Prime”, porém muitos mais existem por evidência anedótica.

A seguir estão alguns exemplos de pontos de embarque no A001 “Prime”:

  • Uma pequena porta de madeira da parte de trás da igreja de San Paolino, Lucca, que leva à uma estação de bonde elétrico com destinação a uma estação maior no Universo B723 “Hospice”.
  • Um píer abandonado e isolado no norte de Ishikari, Hokkaido; pisar nele transporta o viajante para um portuário na Linha do Tempo Q944 “Mintuci”.
  • Um gabinete de achados e perdidos em uma estação de trem em Lima, Peru, que conecta com outra estação de trem no Universo H020 “Grande Estado Inca”.
  • A entrada dos fundos de uma caravançarai Ilcanida em Kerman, Iran, que leva o indivíduo para um conjunto de caravançarais, no quais estão todos localizados em dez linhas do tempo diferentes simultaneamente.
  • Um pedaço do céu acima do norte da Mongólia; transportes aéreos que passem por esta área serão transportados para um aeroporto interuniversal (SCP-7005-77a), que serve a pelo menos 350 universos no que os chefes da estação da rede comumente chamam de “Corredor Extremo-Sudoeste”.

SCP-7005 foi fundado no século 13 em um universo atualmente inexplorado (Universo Z999 “Halogen”) por membros da família Lampeter por razões desconhecidas. Era gerenciado pela Companhia de Transporte Não-Euclidiano Lampeter (CTNE-L) desde o começo do século 17 até 2021, quando a CTNE-L veio a falência. Desde então, a Fundação passou a administrar a rede, com o objetivo de prevenir o completo colapso entre redes de comunicação interdimensionais e os diversos cenários Classe-Z que isso precipitaria.

A Fundação atualmente controla 832 estações diferentes; no entanto, aparenta-se que rotas importantes na rede maior continuam sendo mantidas por grupos de voluntários, pequenas empresas privadas e acordos entre guerreiros multidimensionais. Controle total da Fundação sob SCP-7005 está previsto para ser completo em 2035 2050 2070.

A mera escala de SCP-7005 é difícil de descrever. Sempre que encontramos um portão, outra porta em uma estação de trem ou um portal escondido em um pântano, eu penso nos primeiros Lampeters, e o que eles conquistaram.

O tamanho do poder necessário só pra mandar mensagens entre universos é imensa. É preciso uma fonte de poder anômalo capaz de direcionar saídas irregulares para uma dimensão extrafísica. Todos já lemos o registro de Scranton do lugar entre realidades – agora imagine tentar encontrar os parâmetros daquele não-lugar, aquele limbo. Tentando descrever o indescritível.

Até onde sabemos, nenhum universo novo entrou nessa rede faz algum tempo. A tecnologia parece que se perdeu décadas, talvez séculos atrás. Não temos ideia de como foi feito – os registros dos Lampeters foram perdidos dos momentos finais da CTNE-L. Alguns chefes da estação falaram de imagens enormes e murais detalhando a técnica, mas não encontramos um traço delas.

Quem sabe, um dia, encontraremos o lendário Z-999. Talvez lá tenha uma resposta para essa pergunta – quem foi louco o bastante, desafiador o bastante, para dar aquele primeiro passo entre universos? Que tipo de cérebro é capaz de trabalhar entre os problemas infinitos e anômalos da física e da realidade? Não temos ideia de qual batida na cabeça precisa-se pra ver o mundo do jeito certo.

O espaço físico que a Lampeter possui é imensa, e ainda assim negligenciável. É uma rede conhecida por poucos, suas estações estão escondidas nos lugares mais remotos, ou nos mais despretensiosos. Só sua existência já é uma enorme conquista técnica. Eu gosto de imaginar, uma rede de estações e pontos de descanso entrelaçando diversas linhas e fios, existindo em um eixo completamente diferente do que conhecemos – mas não é isso, nem um pouco, quando você para pra analisar. São só galpões e armazéns, uma cascata de salas dos fundos. Um monte de funcionários muito, muito cansados.

E uma decomposição interminável.

~ Dr. Simon Kells.

A seguir está uma entrevista entre a Dra. Hartlepool e M. Rameau, um funcionário de SCP-7005 no Universo G299 “Tumbas Fayre”. A entrevista foi conduzida como parte das tentativas da Dra. Hartlepool de ganhar mais entendimento sobre a história de natureza de SCP-7005, devido à grande perda dos registros arquivados da CTNE-L.

<Começo do registro>

A câmera mostra a encosta de uma montanha. A Dra. Hartlepool se dirige para uma pequena cabana de madeira a 70 ou 80 metros de distância. Está nevando fortemente, e o céu está um cinza sólido.

Após um minuto, a Dra. Hartlepool chega à porta da cabana, e abre. Dentro dela, uma figura – Rameau – pode ser vista na direita da cabana, sentado em uma mesa com um fone de ouvido. Há uma cama do outro lado. Diversos quadros, a maioria sendo de flores de cerejeira, estão colados nas paredes da cabana. Uma pequena mesa está no centro, e uma área de cozinha com uma chaleira e um fogão está no lado esquerdo.

Rameau: 94… 942… 94… não, sudeste… leste, Gerry, temos mesmo que ver todas essas-

Dra. Hartlepool: Olá?

Rameau: Ah!

Rameau se vira bruscamente.

Rameau: Depois eu te ligo, Ger.

Rameau tira o fone de ouvido e se levanta, sorrindo.

Rameau: Me perdoe. Eu não estava à espera de visitas. Um, por favor -

Rameau sinaliza para a mesa no centro da sala. A Dra. Hartlepool senta, e sorri para ele. Rameau começa a fazer duas xícaras de chá na cozinha.

Dra. Hartlepool: Eu não mordo.

Rameau ri.

Rameau: Quando se mora em uma pequena casa de madeira a centenas de quilômetros na encosta da montanha, não são esperados visitantes.

Dra. Hartlepool: Vou sugerir que a Lampeter não considerou mudar você para um lugar mais acessível? Algum lugar que não precisasse de uma quantidade enorme de poder e precisão para chegar?

Rameau: Ah, mas não precisa! Não precisava. Nos velhos tempos, quando esse lugar era habitado…

Dra. Hartlepool: E isso faz quanto tempo?

Rameau: Séculos. Aqui era um mundo-túmulo. Já foi em algum desses?

Dra. Hartlepool: Alguns. Passei por uns três no caminho até aqui.

Rameau: Hah. Bem. Já considerou pegar o teleférico ali?

Curta pausa.

Dra. Hartlepool: Existem… protocolos. Aqui está tecnicamente classificado pela Fundação como “recentemente reivindicado”, o que significa que-

Rameau: Mas você é a Rosie Hartlepool, não é? Nossa dama e mestra?

Dra. Hartlepool: Olha, se eu usar o teleférico, ficaria ruim para o departamento inteiro…

Rameau ri.

Rameau: Certo, certo. Não estou ofendido. Mas a linha é segura, sério.

Dra. Hartlepool: Não foi o que eu ouvi. Sete desaparecidos só nesse quadrante…

Rameau: Mas nenhum nessa estação! Eu administro bem as coisas.

Dra. Hartlepool: Então por que o resto não faz o mesmo?

Rameau retorna com duas xícaras de chá. Ele coloca em frente da Dra. Hartlepool, e se senta na cadeira oposta a ela, mexendo seu chá e intensamente olhando para ela. Ela toma um gole do chá, encarando de volta.

Rameau: Você nunca viu esse lugar nos velhos tempos, viu?

Dra. Hartlepool: Você viu?

Rameau: Como assim?

Dra. Hartlepool: As linhas Lampeter estão aqui fazem séculos. Sua era de ouro deve ter acabado bem antes da companhia ter falido. O último membro da família não se queimou vivo?

Rameau: Isso é um rumor.

Dra. Hartlepool: Um rumor impossível de confirmar, visto o que aconteceu com os arquivos.

Rameau: TÁ, ok. Eu não vi ela nos seus dias de glória. Mas ouvi sobre. Todos ouvimos. As histórias ao longo do tempo, passadas por passageiros e chefes da estação. Uma pequena parada como essa teria três, quatro funcionários o tempo todo. Cuidado constante. Centenas de teleféricos indo para cima e para baixo toda hora, dezenas e dezenas passando. E…

Dra. Hartlepool: E as pessoas, todas voando para tantas estações.

Rameau: Palácios dourados, eles diziam.

Dra. Hartlepool: Todos falam coisas assim.

Rameau: Mas faz sentido. Quem quer que os primeiros Lampeters tenham sido, cavando buracos na realidade… eles deveriam ter ambições altíssimas. Um monte de capital atrás deles.

Dra. Hartlepool: Sim. Eles deviam ter.

Rameau: Mas agora… olha, não estou dizendo que vocês não fizeram uma coisa boa, aparecendo do jeito que vocês fizeram. Mas está ficando difícil. Um dos cabos estourou mês passado – estamos fora de serviço faz uma semana.

Dra. Hartlepool: Eu – me desculpe, mas não sou eu que decide quanto dinheiro nós alocamos. Eu tento falar para eles, mas-

Rameau: Não, eu sei como funciona. A CTNE-L – é, ok, não era muito melhor, lá pelo fim. Mas é frio aqui. Os turnos aumentaram – agora eu fico aqui metade do ano, quase nunca indo pra casa.

Dra. Hartlepool: Você não tem casa.

Pausa.

Rameau: …Minha casa adotiva, então. Um lugar que não é uma cabana numa montanha congelada.

Dra. Hartlepool: Justo.

Rameau: As coisas estão tensas. A rede não pode continuar assim. Um pedaço inteiro da linha está sendo direcionada por aqui, por uma estação de teleférico! Não temos a mão-de-obra pra uma coisa assim. Só temos estações assim por que os buracos tinham que estar aqui, ou sei lá.

Dra. Hartlepool se encosta na cadeira.

Dra. Hartlepool: Tinham que estar aqui?

Rameau: Olha, eu não sei. É só história antiga da estação. Tinha alguma coisa sobre os locais que eles escolhiam. Pontos fracos, ou alguma coisa assim. Lugares onde era mais fácil de construir.

Dra. Hartlepool: Hmm.

Os dois se calam por alguns momentos, tomando seus chás.

Rameau: Por que você está aqui, afinal?

Dra. Hartlepool: Fiquei curiosa. Pensei em perguntar por aí, falar com alguns dos membros antigos da CTNE-L. Não temos arquivos, então eu pensei que…

Rameau: Tem que começar de algum lugar.

Dra. Hartlepool: Não é exatamente uma entrevista profissional, mas eu estava com tempo livre. Eu só queria ver tudo com meus próprios olhos, eu acho.

Rameau acena com a cabeça.

Rameau: Entendo. A Lampeter – SCP-7005, eu acho que deveria chamar assim – é importante. Ele vincula as coisas. Toda a realidade.

Dra. Hartlepool: Mas precisava de vinculação?

Rameau: Ah sim. Como acharíamos Deus?

Hartlepool ri.

Dra. Hartlepool: Você acha que tudo isso é para encontrar Deus?

Rameau: Eu não sei para que serve, mas é a única forma. E eu acho que não precisa ser Deus, exatamente, mas… tem algo a mais por trás de tudo isso. Todas as possibilidades, contidas em todo universo, se esticando pela eternidade… Realmente é a fronteira final, esse multiverso. Se tem alguma coisa que consegue encontrar uma unidade escondida, é a Lampeter.

Dra. Hartlepool: Talvez tenham mais multiversos além desse.

Rameau: O que isso significa?

Dra. Hartlepool: Eu… não sei. Foi só algo que um colega – Kells – estava falando sobre.

Rameau: Ah. Nosso lorde e mestre.

Dra. Hartlepool: Ele acha que ele realmente é isso. Mas tenho que discordar de você.

Rameau: Toda a realidade, interligada em uma só. É um sonho tão bom quanto qualquer outro.

Dra. Hartlepool: Mas um sonho tão grande assim tem que ser melhor “quanto qualquer outro”. Ninguém escapa de uma coisa dessas. Não vai sobrar nada se as coisas ficarem estranhas por “toda a realidade”.

Rameau: Talvez. Mas o que mais você tem?

Há outra pausa. A Dra. Hartlepool se levanta, vai para a janela, e olha para fora.

Dra. Hartlepool: Sabe o que aconteceu com os arquivos? Tem alguma história da estação sobre isso?

Rameau: Ah, sim. Eles dizem que John Lampeter, o último da família, ficou louco.

Dra. Hartlepool: Ah! Então ele realmente se queimou vivo.

Rameau: Bem, talvez. Não vou falar mal dos mortos. Mas dizem que ele achou algo, em algum lugar, nas profundezas do leste da linha.

Dra. Hartlepool: No “leste”? Não há direções no multiverso.

Rameau: Não, mas é mais fácil de pensar imaginando que tem. Isso – toda a área que vocês controlam – é o oeste. Vocês tem mais dele do que pensam. Tem o centro, cheiro de trevos e estações quase abandonadas, uma rede quebrada que um dia foi a coroa de glória da Lampeter.

Dra. Hartlepool: Por que?

Rameau dá de ombros.

Rameau: Como eu disse. Durante a minha carreira inteira eu trabalhei nesta parte da linha. Não tenho muito tempo para conversar com os passageiros – os teleféricos passaram direto por cima de mim.

Dra. Hartlepool: Então o John Lampeter encontrou alguma coisa lá…

Rameau: E isso deixou ele maluco. Aham. E então as chamas brilhantes rugiram alto.

Dra. Hartlepool: Poético.

Dra. Hartlepool olha pela janela. A neve continua grossa demais para enxergar muita coisa, mas uma pequena luz é visível, vinda da base da montanha.

Dra. Hartlepool: O que é aquela luz?

Rameau: Aqui era um mundo-túmulo.

Dra. Hartlepool: A maioria dos mundo-túmulos são, bem, cheios de túmulos.

Rameau: Exatamente. Os Padres Recuados do Coração Ardente acreditavam na glória da própria decomposição. Cada uma de suas tumbas queima eternamente, mantendo cada corpo em um estado constante de destruição. Cinzas caem continuamente, se transformando em combustível assim que caem no chão. O corpo nunca é completamente destruído, mas ele sempre está perdendo um pouco de si.

Dra. Hartlepool: Sabe quantos arquivos nós atualmente temos no banco de dados da Fundação? Mais de sete mil. Sete mil anomalias individuais. E mesmo assim, a quase dez universos de distância, as leis da entropia são suspensas, e milhares de tumbas poluem a superfície de um mundo alienígena.

Rameau: Era pra isso ser chocante?

Dra. Hartlepool: Não. Não, acho que não.

Dra. Hartlepool retorna a sua cadeira, olhando para a xícara.

Dra. Hartlepool: Você também é uma criatura de decomposição, eu acho. Todos vocês chefes de estação parecem ser.

Rameau: Está tentando me humilhar, doutora?

Dra. Hartlepool: Talvez um pouco.

Rameau: Eu sou filho de um pesquisador da Fundação. Fui criado para me juntar a Mão. Quando eu tinha trinta anos, encontrei por acaso um arquivo da Fundação que contava a história, de como Matthew Rumsfeld se perdeu no tempo durante a adolescência, mudou o nome para Rameau, e viveu uma vida triste e quebrada em um passado distante. Mas você já sabia disso.

Dra. Hartlepool: Me desculpe.

Rameau: Não se culpe. Eu sou um rato dos trilhos, Rosie Hartlepool, como todos nós. Como você. Eu adotei o nome do meu outro eu para me lembrar de que se eu não estivesse aqui, eu estaria lá, ou em outro lugar completamente diferente. Só que aqui, na fronteira entre possibilidades… talvez eu realmente encontre Deus.

Dra. Hartlepool: Espero que encontre.

A Dra. Hartlepool se levanta, e se dirige para a porta.

Rameau: Ei – espere.

A Dra. Hartlepool para, e se vira. Rameau vai para sua escrivaninha e escreve algo em um pedaço de papel. Ele o entrega para a Dra. Hartlepool.

Rameau: Se você realmente quiser saber o que tem lá, tente este cara. Universo F433. Ele trabalhava no leste, aparentemente. Talvez ele saiba de algo a mais.

Dra. Hartlepool: Obrigada. Obrigada, Mathieu.

Rameau: Por nada, doutora.

Dra. Hartlepool abre a porta, e sai. Ela olha para trás mais uma vez, e vê Rameau sentado de novo em sua mesa, colocando o fone de novo.

Rameau: 65…93… três, Ger, pelo amor de -

A porta se fecha.

<Fim do registro>

A seguir está um registro pessoal recuperado de uma estação de trem no Universo L453 “Buraco de Harald”, um universo localizado na área “central” de SCP-7005 mencionada por Rameau na entrevista anterior. É acreditado que este registro foi composto há 300 anos atrás.

Hoje, registramos 456 refugiados do Leste. Isso é mais de 12% do tráfico dessa estação. Somos uma estação pequena, com certeza, mas os números daqueles que fugiram são impressionantes pra mim. Eles vestem o que eles tem, o que eles conseguiram pegar, e eles dependem na misericórdia dos chefes de estação para dar a eles comida, água, e roupas.

Fizemos nossa parte – demos qualquer pano rasgado que tínhamos, tudo o que os outros passageiros nos deram. Eu penso, as vezes, nos planos do Sumo Sacerdote. Nosso Rei Escarlate é um rei e um Deus misericordioso, com certeza, mas por que tantos passam por aqui?

Eles vem em tantas formas diferentes. Tem ricos, ou uma-vez-ricos, vagando por aí em roupas rasgadas e casacos de ouro. Tem os pobres, rostos de ferro contra todas as privações que eles viram. Tem as crianças, algumas que acham que tudo isso é um jogo, outras que entendem que suas casas se foram para sempre. Tem tanta variedade que o que eu disse parece barato, apenas categorias triviais que nem eu entendo.

Tem tanto sofrimento aqui quanto tem no mundo terrestre, mas não tão distribuída. Agora todas as possibilidades colidem uma na outra, mas ainda tem algo que nos fazem fugir. Já ouvimos sobre o que anda pelo Leste, o que estica seus tentáculos de lugar a lugar. Eu não acredito muito, mas a evidencia é refletida em toda íris que é passada, todo olho abatido.

Eu cresci, como todos os Ghul crescem, no deserto distante, nas areias sob o céu escuro. Nossas únicas casas eram as coleções de barracas, e o ocasional refúgio levantado pelos mortos que vieram antes. Eu nunca soube da cidade até vir aqui. É como um deserto, no seu próprio jeito; tem uma pureza nela, uma rejeição de tudo que é selvagem, apesar da selvageria dentro dela. Em seu desejo por conglomeração, ela acaba criado sua velha selvageria.

Ouvi histórias sobre outros mundos, onde nosso Rei não é o céu benevolente com uma coroa vermelha, mas uma criatura cruel de rancor e inveja, uma ideia nascida do peso esmagador do sofrimento. É difícil de acreditar. Mas mesmo assim, eu farei as oferendas de pedra e cobalto, esperando que nosso Rei nos ouça. Quando eu vejo o sofrimento, eu lembro da sorte na qual eu fui abençoado. E um dia, eu acredito, todos os mundos serão unidos, e o Leste será livre de novo. Um dia, eu espero, todos iremos se alimentar em seu saguão, ricos e pobres iguais.

O documento seguinte foi encontrado nas ruinas dos arquivos Lampeter. Foi um dos poucos documentos que não foi destruído no fim da existência da CTNE-L.

A cidade brilha. Eu vejo pela minha janela.

Está dentro da minha janela.

Já tomou a maior parte do meu quarto. Só sobrou a cama. Eu não sei por que só eu vejo e o resto não – é tão obvio. Tem a cidade, e tem o resto do chão. E tem eu.

A cidade cintila contra a noite, e é lindo. Eu odiava, que nem os outros, mas agora eu amo. Eles se movem tão devagar, tentando achar espaços para escapar. Fugir no Carro. Mas eles nunca acham. Eles iram amar aprender, também. Eles precisam.

Sua expansão cresce, gradualmente, acariciando tudo que toca. Eles se levantam, o aço e vidro, se contorcendo para cima como plantas sobre o que era o Mojave, esmagando os cactos, enterrando raízes na areia. A física permite que a crosta derretida da Terra seja convertida em condomínios? As luzes vão cair quando caímos no sol? Mas isso também não importa, porque o sol se tornará parte dela.

Eu ainda não fui levado, mas eu quero ser. Eu carrego meu coração, eu dou a minha pele. A cidade coça, se embalando pelo mundo, seus trens cortantes criam novos empregos onde uma dia foi uma fazendo. O concreto escorrega e roda, brincando nas betoneiras, respingando através dos vales, os montes Welsh se tornando um monte de escombros de novo, a estepe Kazakh absorvida em uma Almaty maior em um Novosibirsk maior em um Beijing maior.

Eu amo a cidade. Amo ela inteira. Amo os becos e os teatros, jorrando sua luz branca em seus rostos gritantes e prazerosos. Amo as vilas intocadas, limpas até os ossos, como toda cidade respeitosa deveria ser. Amo seus monumentos antigos, demolidos e reerguidos de volta em metal, para serem demolidos e recontextualiazados no futuro. Amo tudo isso.

E mais do que tudo, eu amo as luzes. Amo aquelas lâmpadas, no topo de prédios onde costumavam ser montanhas, onde costumavam ser túmulos. Amo suas cores, vermelho cintilante, verde, amarelo! A grama é adorável, pintada de amarelo. Quero estar nela.

Eu me dou a você, ó cidade. Quero ser um deles. Uma luz neon, brilhando para fora, para fora, para fora para sempre. Deixe-me iluminar o mundo. Deixe eu mostrar como deve ser feito.

A seguir está uma entrevista entre a Dra. Hartlepool e Titus Quaker, um chefe de estação no Universo M433 “O Oco”.

<Começo de registro>

A Dra. Hartlepool está em um elevador, que está a levando para o último andar de um prédio. As paredes e chão de ambos o elevador e o prédio são feitos de vidro, fazendo com que o ocupante veja toda a estrutura. O prédio é extremamente grande, centenas de metros em altura, divido em diversos quadrados sem mobília ou habitantes visíveis.

Através das janelas exteriores, um vulcão enorme é visível; o prédio aparentemente foi construído na borda de uma caldeira vulcânica. Diversas plataformas de metal podem ser vistas protegendo a borda da caldeira, na qual diversos balões de ar-quente são visíveis. Estes balões parecem estas subindo e descendo das nuvens acima; nas plataformas, uma série complexa de embarques de passageiros está ocorrendo.

A Dra. Hartlepool chega ao topo do prédio. Um homem idoso pode ser visto do outro lado da sala, a alguns metros de distância; ele está vestido de preto, segurando uma bengala de prata, e observando os balões. Dra. Hartlepool sai do elevador.

Dra. Hartlepool: Ui… É bem alto aqui.

Quaker: Sim.

Dra. Hartlepool se aproxima de Quaker.

Dra. Hartlepool: Meu nome é Rosie Har-

Quaker: Hartlepool. Sim.

Dra. Hartlepool suspira.

Dra. Hartlepool: Olha, eu trabalho para a Fundação. Eu já tive o suficiente de respostas enigmáticas dos entrevistados. Você não tem nenhum truque na manga que eu já não tenha visto centenas de vezes, e se você tem poderes mágicos, isso não te faz ser especial. Ok?

Quaker se vira, e sorri.

Quaker: Me perdoe, doutora. Eu estava em outro lugar. Venha, se junte a mim.

Dra. Hartlepool se aproxima da janela, e observa os balões flutuando.

Dra. Hartlepool: Sabe o porquê…?

Quaker: Me disseram que era o único jeito. O buraco tinha que ser construído do lado do vulcão. Os balões – bem, eu não sei sobre isso, mas esse foi, de acordo com as antigas histórias do chefes de estação -

Dra. Hartlepool: - fofoca -

Quaker: - o único jeito que eles conseguiram fazer. Dra. Hartlepool, eu posso te ajudar em algo, ou você veio até aqui para me interromper com comentários sarcásticos?

Dra. Hartlepool: Desculpe.

Quaker: Não se preocupe. Agora…?

Dra. Hartlepool: Fui mandada aqui por Mathieu Rameau, no Universo G299.

Quaker: Ah, sim. O homem na montanha. Conheci ele brevemente em uma função ou outra, nos últimos dias da CTNE-L. Conversamos algumas vezes. Bom rapaz. Um pouco isolado, eu acho.

Dra. Hartlepool: Isolado? Você fica num prédio de vidro do tamanho de um arranha céu com ninguém mais dentro.

Quaker: Sim, mas ao contrário dele, eu entro em um balão no fim do dia e volto para casa com a minha família. Você deveria tentar fazer isso alguma hora.

Dra. Hartlepool: Eu não tenho família.

Quaker: Então arranje uma. Tem várias por aí. Algumas iguais a sua original, mas sem uma Rosie Hartlepool.

Dra. Hartlepool: Então foi isso que você fez? Arranjou uma nova família?

Quaker: Santo Deus, não. Eu não passo por essa depravação.

Dra. Hartlepool olha desconfiadamente para Quaker.

Dra. Hartlepool: Depravação?

Quaker: Ah, sim. Sabe – bem, eu nasci em um mundo que nevava toda hora.

Dra. Hartlepool: Que divertido.

Quaker: Sim, era. A neve mexe com você. Ela… mudou as coisas. Mudou o jeito que elas sempre foram. Você acorda um dia e as pessoas que você conheceu pela sua vida inteira nunca nasceram. Toda possibilidade se alterando, mudando, se estilhaçando em sua volta. Eventualmente, a linha do tempo inteira desapareceu, destruída pelas suas próprias contradições. Isso não é jeito de viver, se movendo entre possibilidades de vida, visando pular entre realidades para satisfazer seu desejo de concertar erros do passado. Todos temos nossos próprios caminhos, e todos deveriam ficar neles.

Dra. Hartlepool: …O-kay. Bem. Eu não planejo encontrar cópias de ninguém na minha família, obrigada, mas vou anotar isso. Agora –

Quaker: Não seja irreverente. As possibilidades aqui são infinitas. Você pode ir de pobreza para riqueza inimaginável, pois o algodão no seu bolso vale mais do que tudo para alguma realidade meia-boca no braço do leste. Você pode se perder nisso – prazer após prazer. Espelhos além de espelhos.

Dra. Hartlepool: Eu não estava sendo irreverente. Eu entendo a… tentação. Mas isso não traz eles de volta.

Quaker: Não. Não traz.

Tem uma pausa por vários segundos.

Quaker: Agora, eu suponho, você quer saber sobre minha história no leste.

Dra. Hartlepool: O Rameau te contou?

Quaker: Não, eu apenas sei como isso funciona. Para que mais você viria aqui? Não tem nada aqui. Aqui era um lugar agitado, até que -

Dra. Hartlepool: Até que a podridão chegou, a CTNE-L acabando, e assim por diante. Sim, eu já ouvi tudo isso antes. Eu quero saber o que foi que o John Lampeter encontrou no leste.

Quaker suspira.

Quaker: O que ele encontrou foi o que qualquer oriental, ou qualquer um do centro, te diria que vive lá. O que ele encontrou foi o Deus Neon.

Breve pausa.

Dra. Hartlepool: E o que é o Deus Neon?

Quaker: O Deus Neon é – é o que acontece quando você brinca demais com o tecido da realidade.

Dra. Hartlepool: E isso significa que?

Quaker: Você não precisa ir lá. O Rameau é cheio é ideias idiotas. Ele é jovem. Idealista. Todos devemos forjar nossa própria -

Dra. Hartlepool: Eu não ligo. Me conte.

Quaker suspira de novo.

Quaker: Havia um mundo – um mundo bem longe daqui. Um universo. Ele tinha uma Terra, como a maioria tem. Era bem parecida com a sua. Havia uma vila nesta Terra, um vila chamada – chamada Peiriant. Na Argentina.

Dra. Hartlepool: Uma vila?

Quaker: Sim. Era uma vila. Um dia, uma das casa começou a crescer. Novas salas cresceram. Coisa anômala. E então a Fundação interferiu.

Dra. Hartlepool: Como assim, “crescer”?

Quaker: Só apareceu. Uma sala, e depois outra. Estendendo e expandindo, indo de casa em casa. Nenhuma igual a outra, mas todas – mantendo, eu suponho, a estética da vila. No começo, pelo menos, antes de elas começarem a ficar mais… genéricas. Concreto, vidro, metal.

Dra. Hartlepool: Uma vila só – expandindo?

Quaker: Sim. E continuou. Para sempre. Sem parar.

Dra. Hartlepool: …Ah.

Quaker: Sim. Demorou décadas para cobrir toda a América do Sul, mais décadas para cobrir o planeta inteiro. Uma única metrópole, expandindo, para frente e avante, prédio atrás de prédio, devorando tudo em seu caminho. As pessoas… elas pararam de comer, beber, pararam de fazer tudo. No começo elas se tornaram maníacos idiotas, mas depois que acabou, depois que o mundo virou uma única cidade, toda conectada, eles apenas – pararam. Eles enlouqueceram. Eles choraram, socaram as paredes, balbuciaram, e depois… pararam. Olhando para as estrelas.

Dra. Hartlepool: Você sabe bastante detalhes.

Quaker: É porque não acabou ali. Aconteceu de novo.

Dra. Hartlepool: …Ah. Ah.

Quaker: O Leste está quebrado, Dra. Hartlepool. São pequenas ilhas de civilização entre mundos que se tornaram o Deus Neon. O primeiro, em Peiriant, foi há um milênio atrás. Só descobrimos o que aconteceu, onde começou, pois arqueólogos que voltaram lá, mundo morto após mundo morto. Nunca ousaram pisar no universo original. Agora, tem centenas, talvez milhares…

Dra. Hartlepool: Milhares?!

Quaker: Sim. Tentaram de tudo para parar, mas nada funciona. Até tentaram explodir os plantes para conter a propagação, mas tudo começa de novo. E de novo. E de novo. E ainda está indo.

Silêncio.

Dra. Hartlepool: Como foi que nós não -

Quaker: Refugiados geralmente não alcançam o oeste. A Lampeter é vasta, e ela foi má gerenciada por muito tempo. O Deus Neon é só outro pedaço de história, esquecido. É um conto entre centenas que vem das terras distantes. Mas quanto mais longe você for, mais isso se torna uma realidade.

Silêncio por vários minutos. A Dra. Hartlepool continua a observar os balões de ar quente enquanto eles sobem e descem.

Dra. Hartlepool: Então – tem um tipo de vírus. Transformando planetas em cidades.

Quaker: Qualquer lugar que tenha vida inteligente.

Dra. Hartlepool: E os trens levam os sobreviventes para fora.

Quaker: Sim.

Dra. Hartlepool: Incluindo você?

Quaker: Ah, Não. Meu mundo morreu pois – bem, isso é história para outra hora. Não existe mais. Nunca existiu. Eu saí quando pude, e deixei o resto para trás, e agora eu fico aqui, dia após dia, observando balões. Fazendo minha parte, pelo o que eu entendo.

Dra. Hartlepool: E isso te trás… conforto?

Quaker se vira e olha para a Dra. Hartlepool pela primeira vez.

Quaker: O que mais tem lá?

Dra. Hartlepool enterra seu rosto em suas mãos.

Dra. Hartlepool: Tem um vírus, transformando mundos em cidades, consumindo-as e deixando as pessoas balbuciando no chão. Milhares de universos sucumbiram. E não pode ser parado.

Quaker: Quem sabe pode. Eu não sei. Eu só administro a estação.

Dra. Hartlepool: Se isso te faz feliz.

Quaker: Ah, vá, tente pará-lo. Quem sabe você será a heroína. Eu manterei a estação funcionando, continuarei a deixar vidas serem vividas aqui, se não, elas serão paradas, pela praga neon ou por outra coisa. Gerações estão vivas pelos nossos esforços.

Dra. Hartlepool: Mais gerações também poderiam estar vivas. Por que não nos disse nada?

Quaker continua a olhar pela janela.

Quaker: Eu fiz a minha parte. Minha consciência está limpa.

Dra. Hartlepool encara Quaker por vários momentos, antes de se virar e sair.

<Fim do registro>

Registro por Diretor Kells no Deus Neon

Não estávamos completamente ignorando esse “Deus Neon” que o Quaker descreveu. Ouvimos historias, especialmente daqueles com conhecimento sobre o “Leste Multiversal”, como estamos provisoriamente chamando. Histórias sobre cidades que tomam conta do mundo, cidades falsas que imitam o jeito real das pessoas de viver, construir, desenvolver comunidades. Uma cidade-pesadelo, uma sombra da realidade.

Isso que é interessante sobre cidades. Elas essencialmente são conglomerações de pessoas presas juntas. As primeiras cidades foram formadas pois a agricultura permitiu que as pessoas “se especializassem” – ao em vez de passar o dia caçando comida o suficiente para sobreviver um dia, uma pequena parte da tribo poderia fornecer comida para todo mundo. Isso significava que algumas pessoas estavam livres para fazer outras coisas – como construir, barganhar, rezar e assim por diante. Conquistar, liderar, se tornar uma lenda viva.

Muitas dessas coisas precisavam ser feitas em lugares específicos, com outras pessoas – por isso, cidades foram formadas. Pessoas se juntando. É um simples exemplo de ação e reação, de certa forma. Uma coisa acontece, então outra coisa acontece.

Mas, em todas as histórias que nós ouvimos, todos os textos e lendas, era sempre a mesma coisa. A cidade apenas – aparece. E começa a crescer. Não é uma cidade de verdade, um conceito humano que faz sentido de acordo com como os indivíduos vivem suas vidas. Apenas está… ali. Os mesmos símbolos de nossa realidade replicados, de novo e de novo, constantemente.

Eu cresci em Londres – cidade grande, uma metrópole enorme. A cidade original era uma coisa pequena, sobrevivendo a base do Rio Tamisa, um rival a Westminster. Depois, diferentes secções se juntaram em algo maior que eles mesmos. Mas eles nunca foram completamente apagados. Ainda tem ruinas antigas, paredes, pedaços. As fronteiras das vizinhanças.

Aquela cidade não tem isso. É uma paródia nojenta, se transformando de novo e de novo, como se tivesse – tentando se tornar uma cidade de verdade, mas sem saber como. Ou talvez seja apenas um bug em algum sistema que não conseguimos ver.

Ainda temos milhares de anos – provavelmente – antes que nos alcance. Mas ainda é uma ameaça. Somos a Fundação, afinal – temos que encontrar uma forma de conter isso. É isso que fazemos. Esse é nosso objetivo. E estão nos dando uma migalha de capital para conseguirmos isso.

O poema a seguir foi encontrado pela Dra. Hartlepool enquanto ela estava indo para o “Centro Multiversal”

em círculos vem a mente impura
que atravessa as linhas ferroviárias
girando seu topo através da curvatura
procurando responder aonde ir

mas não há para onde ir. a cinza se alinha
com o aço enquanto ela soca através do papelão
e papel, cortando círculos
um novo mundo onde você nasce de novo, outro
onde você está preso na lama, em círculos vem

o trem de papel grita seu nome
o deus neon marcou sua hora,
seu mundo é halogênio e sorte,
você, em círculos, abençoa a lama
onde você nasceu, onde você enoja

suas escolhas feitas cem vezes
a árvore cresceu, através da linha,
a lampeter se estica no escuro,
e suas veias, o tronco obscuro,
o deus neon se apressando
seus túneis encontrados, seu reinado será criado
em círculos suas escolhas vem
as lanternas balançam sobre sua língua

todo o mundo é aço e vidro
agora, em círculos, em baixo do inxidro

~jean-antoine delacroix

A seguir está um registro de um encontro feito pela Dra. Hartlepool no Universo Q865 “Campos”.

<Começo de registro>

A Dra. Hartlepool está em um campo grande e aberto. Em sua frente, uma pequena estrutura de madeira pode ser vista; ela lembra uma estação yam Mongol do século 13, um ponto de referência para mensageiros do Império Mongol onde eles rapidamente trocariam de cavalo, permitindo jornadas longas de pouca duração.

Em volta da construção há várias pedras grandes. A maioria possuí marcações desgastadas nelas, que não são reconhecíveis. Algumas parecem ser novas, embora mais brutalmente projetadas, mostrando uma série de cabos bifurcados e pedaços de linha.

Dra. Hartlepool se aproxima da construção mais próxima do ponto de passagem.

Dra. Hartlepool: Olá?

Nenhum movimento vem de dentro da construção. A Dra. Hartlepool entra mais adiante.

Dra. Hartlepool: Olá? Tem alguém aqui?

PdI 7005-A: Eles não virão.

Dra. Hartlepool se assusta, e se vira. Um homem em seus 40 anos, vestindo um casado de pele, está sentado em uma das pedras, esculpindo um graveto.

PdI 7005-A: Eles não estão aqui. Eles voltaram em breve.

Dra. Hartlepool: Eu - você me assustou.

PdI 7005-A: Venha. Sente.

Dra. Hartlepool: Você é o chefe da estação?

PdI 7005-A: Em algum lugar, provavelmente.

Dra. Hartlepool: Eu não gosto de resp-

PdI 7005-A: -ostas enigmáticas. Sim, não achei que gostasse. Fundação geralmente não gosta. Muito bem: meu nome é [DISTORÇÃO].

Dra. Hartlepool: Rosie – uh, Dra. Hartlepool. Prazer. Por que está sentado numa pedra em uma estação yam multiversal?

PdI 7005-A: Ajuda a passar o tempo.

Dra. Hartlepool suspira. PdI 7005-A ri.

Dra. Hartlepool: Estou procurando informações sobre o Deus Neon. Sabe alguma coisa sobre?

PdI 7005-A: Ah sim. Mas não importa. Venha, venha, sente comigo. Vamos jogar um jogo de azar.

Dra. Hartlepool: De azar?

PdI 7005-A: Sim. Um de nós conta uma mentira sobre nosso passado, e o outro conta o que realmente aconteceu.

Dra. Hartlepool: Como? Como isso é um jogo de azar?

PdI 7005-A: Aqui é uma estação entre realidades. O tecido das coisas é diferente aqui; a resposta certa deve ser a mais fácil de adivinhar. E sobre como isso é um jogo de azar, bem – tudo está acontecendo em algum lugar, certo?

Dra. Hartlepool: Certo…

PdI 7005-A: É tudo sorte. Tem uma infinidade de Dras. Hartlepool, uma infinidade de [DISTORÇÃO], com toda escolha e toda possibilidade criando novas realidades a partir daqui. Mas por que você é você? Por que você sente as sensações dessa Dra. Hartlepool?

PdI 7005-A sinaliza largamente.

PdI 7005-A: Este campo existe como parte de um aglomerado de universos, onde o Império Mongol nunca acabou, onde o mundo inteiro virou um lugar de nômades. Apenas alguns são conectados com a Lampeter, mas os universos estão todos ali, atrás de outro. Tantos campos, tantos yurts. Escolhas atrás de escolhas. Mas cada indivíduo ainda é uma pessoa, inteira, única, feita de sangue, carne e ossos. E mesmo assim cada uma deve existir, pois tudo existe.

Dra. Hartlepool: Por que que todos vocês continuam tentando -

PdI 7005-A: Porque falar sobre esse tipo de coisa passa o tempo por aqui. Nos bastidores, atrás das câmeras. Cada universo é tão cheiro de narrativas e significados e tudo o que temos a dizer é, bem, como tudo é estranho.

Dra. Hartlepool: Hmm.

PdI 7005-A: Faz sentido, não?

Dra. Hartlepool: Um pouco. Certo. Vou jogar seu jogo de azar.

PdI 7005-A: Boa menina. Certo, eu começo: quando eu era criança, eu aprendi a tocar clarinete. Qual a verdade?

A Dra. Hartlepool encara ele por um momento.

Dra. Hartlepool: Você aprendeu a tocar piano?

PdI 7005-A: Violino. Mas você entendeu! Ok, sua vez.

Dra. Hartlepool: Hmm. Ok. Eu já me divorciei duas vezes.

PdI 7005-A: Certo…

PdI 7005-A esfrega o queixo por alguns segundos.

PdI 7005-A: Uma vez – oito anos atrás, eu acho? Você estava em… um lugar chamado São Francisco?

Dra. Hartlepool se inclina para trás rapidamente.

Dra. Hartlepool: Paredes porosas no universo conseguem fazer isso?

PdI 7005-A: Ah sim. Certo. Você tenta de novo: Eu nasci em Idaho.

Dra. Hartlepool: Não… você nasceu – você nasceu em um lugar que nem Idaho, que se tornaria Idaho, mas se chamava… [DISTORÇÃO]?

PdI 7005-A: Sim! Na mosca! Você é perita nisso.

Dra. Hartlepool: Obrigada. Mas – Ok, se tudo é um jogo de azar, o que isso impõe?

PdI 7005-A: Sobre o que?

Dra. Hartlepool: Bem – tudo. Qual o significado da -

PdI 7005-A: O significado da vida? Qual é, não somos crianças. É o que você quiser que seja. Você é quem você é por questão de sorte. Relaxe. Se divirta. Todo momento bom vai acabar eventualmente, então segure neles enquanto eles duram.

Dra. Hartlepool: Isso só conforta quem está passando por momentos bons.

PdI 7005-A: Bem – Ok, certo. Mas o que mais podemos fazer?

Dra. Hartlepool: Eu conheci um homem que vivia em uma montanha. Ele acha que o propósito de conseguirmos ver o multiverso, de ver todas as possiblidades, é para achar Deus.

PdI 7005-A: Mas se você achasse Deus, outro conjunto de realidades se formaria onde você não achou Deus.

Dra. Hartlepool: …Não entendi.

PdI 7005-A: O multiverso não é o fim da linha, entende? Não? Veja, o ponto é que, assim como toda decisão em um universo cria outro universo, toda decisão em um multiverso cria outro multiverso. Assim que você quebra as barreiras entre linhas do tempo, tudo apenas vira um universo maior, que significa que seu polo oposto sempre existiu. Espelhos depois de espelhos.

Dra. Hartlepool: Isso… a lógica aí parece -

PdI 7005-A: O que mais poderia ser? Seu Deus Neon vai cobrir todo o multiverso, o mundo será um, e então outro multiverso espelhará ele, onde o Deus Neon nunca existiu. É bem simples. Agora – é a sua vez.

Dra. Hartlepool: Certo. Minha irmã é uma bióloga marinha.

PdI 7005-A: Não… isso não está certo. Não…

PdI 7005-A inclina a cabeça pro lado.

PdI 7005-A: Não. A verdade é que você saiu da cidade em um trem quando você era garota.

Dra. Hartlepool: …O que?

A Dra. Hartlepool se levanta bruscamente. Ela começa a olhar em sua volta, aparente em pânico.

Dra. Hartlepool: Como – Como assim? Como você – Quem é você, porra?

PdI 7005-A: [DISTORÇÃO]. Eu te disse.

Dra. Hartlepool: Isso não é um nome! É um som! O som de – eu sei lá, filme falhando? Mas que porra está acontecendo? Onde eu estou?

A Dra. Hartlepool se afasta, rapidamente. PdI 7005-A continua a entalhar seu graveto, devagar, enquanto olha para ela.

PdI 7005-A: Você está se afastando, Rosie Hartlepool. É aí que você está. Você está se afastando, da mesma forma que você está jogando outra partida, ao mesmo tempo que este graveto atravessa você.

Dra. Hartlepool: …Porra.

A Dra. Hartlepool corre para os estábulos, e monta em um cavalo. PdI 7005-A continua a entalhar e encarar. Dra. Hartlepool cavalga para longe.

<Fim de registro>

Relatório por Diretor Kells

Os refugiados começaram a nos alcançar – ou, talvez, só agora conseguimos achar eles, agora que sabemos o que estamos procurando. Agora sabemos localizar histórias de cidades no meio de tanta confusão. E assim que começamos, haviam muitas.

O “Ghul” anônimo descreveu eles como “rostos de ferro contra todas as depravações que eles viram”. Não tenho tanta certeza. Não vejo pessoas que criaram defesas, mas pessoas que colocaram máscaras, tentando desesperadamente parecer normal quando nada é.

Pelo o que eu ouvi, as pessoas contaminadas pelas cidades se tornam idiotas chorões, maníacos. Isso não parece certo. Parece que cada um é afetado de forma diferente. Alguns se tornam maníacos; outros entram de desespero; outros se tornam fanáticos, pregando evangelhos de planejamentos urbanos e esquemas de desenvolvimento de alta potência. Não há reação de ninguém a o Deus Neon; ele não produz padrões, nem consistência.

No começo, pelo menos. Eventualmente, a mesma coisa acontece com todos. Pelo menos uma dúzia deles foram longe demais para serem salvos; colocamos eles em observação. Mas depois de um tempo, quando toda a raiva e desespero acabou, não tinha nada mais para observar. Eles deitam no chão e olham para o teto – não comem nada, não precisam de nada. Não sentem nada, até onde sabemos.

É como se não tivesse mais que faça eles se moverem, se levantarem. Fisicamente, não tem nenhum problema com eles. Mentalmente, eles estão inteiros e intactos. Não há efeito anômalo que conseguimos detectar – apenas o que podemos observar. Silêncio, com olhos esbugalhados e lindos.

As pessoas continuam evitando a equipe de pesquisa. Estamos trabalhando em dois edifícios perto do Sítio-565, com uma equipe cansada tentando coordenar centenas após centenas de pontos de embarque. Não está dando. Precisamos de mais fundos, mas o O5 continua desviando o dinheiro.

O que está acontecendo lá? Eles não entendem a importância da Lampeter? Ela é o principal órgão de viagens interdimensionais, nossa única forma de se comunicar com tudo aquilo lá fora. Mesmo assim o conselho parece mais e mais indiferente. Quase ninguém se importou em ler essa página em meses. Virou apenas a Rosie e eu escrevendo notas, relatórios, entrevistas. Não tem nada de sistemático aqui.

Como eu posso fazer eles entenderem? Eu poderia escrever páginas e páginas sobre SCP-7005. Eu poderia usar esse espaço para mapear a rede, descrever toda migalha de história que conseguimos recuperar, detalhar lendas dos velhos tempos – a Cascata Dourada, o Incidente Corialis, a Profecia Lampeter. Mas eu não vou. Eu escrevo minhas próprias impressões. Eu escrevo o que parece importante no momento.

Eu não sei o que nenhum de nós está fazendo.

A seguir está o registro de um incidente passado pela Dra. Hartlepool no Universo Z987 “Fim da Linha”.

<Começo do registro>

Está de noite, a Dra. Hartlepool está em um depósito de trem, antigamente pertencente a CTNE-L antes de seu colapso. Uma fogueira grande pode ser vista a 20 ou 30 metros de distância; uma figura irreconhecível pode ser vista atrás dela. Ele está usando um grande par de óculos de sol.

Em volta da Dra. Hartlepool estão uma série de trens arruinados, aparentemente de diferentes eras do século 20. Alguns deles parecem estranhamente desgastados, como se eles tivessem sido gradualmente afetados por condições climáticas variadas no decorrer de diversos séculos.

Dra. Hartlepool vai para mais perto do fogo.

Dra. Hartlepool: Olá? Tem alguém aqui?

PdI 7005-B: Ah! Olá. Me perdoe – eu não estava esperando visitas.

Dra. Hartlepool: Na verdade eu não esperava estar aqui. O que é esse lugar?

PdI 7005-B: Isso? Oh, isso é um depósito, querida. É o lugar para onde o trens vão para morrer quando a linha não precisa mais deles. Já viu esse?

PdI 7005-B sinaliza para uma carroagem.

PdI 7005-B: Essa foi a primeira! Foi lançada do quinto universo que os Lampeters descobriram. Está sem tempo, para sempre.

Dra. Hartlepool: Entendo. Que coisa estranha. Temos trens assim no meu universo, mas nenhum deles ficou tão velho que virou isso. O que são essas marcas nela?

PdI 7005-B: Ah, não são lindas? São as marcas dos próprios Lampeters. Todas as mais antigas tem elas. Elas contam a história do primeiro Lampeter, como ele construiu um dispositivo capaz de quebrar as paredes da realidade.

Dra. Hartlepool vai para mais perto do trem, e aponta sua lanterna para ele. Uma sequência de marcações desgastadas no metal do trem podem ser vistas, aparentemente demostrando vários homens e mulheres colocando tijolos em uma grande muralha.

Dra. Hartlepool: Incrível. Como eles fizerem isso?

PdI 7005-B: Eu não sei! Eu sou apenas um ministro. Não é meu trabalho descrever as visões dos profetas.

Dra. Hartlepool se vira, e olha para PdI 7005-B.

Dra. Hartlepool: Profetas? Os Lampeters?

PdI 7005-B: É claro. Eles criaram a rede. Eles permitiram que o Deus Neon entre em tudo.

Dra. Hartlepool: O Deus Neon?

A Dra. Hartlepool se afasta lentamente, mantendo os olhos fixados em PdI 7005-B. PdI 7005-B ri.

PdI 7005-B: Sim! Não ouviu falar de nós, a Igreja dele? Seus servos nestes vários mundos?

Dra. Hartlepool: Vocês adoram ele?

PdI 7005-B: Eu adoro. Eu entendo o que ele é, quando muitos não entendem.

Dra. Hartlepool: Ele parece ser uma força incontrolável que transforma mundos em cidades.

PdI 7005-B: Ah, mas ele é muito mais do que isso. Venha sentar perto do fogo. Eu não vou te machucar.

Dra. Hartlepool para. Depois de um momento, ela se aproxima, e se senta perto do fogo, opostamente a PdI 7005-B.

Dra. Hartlepool: Certo. Não tenho mais para onde ir. Nem sei como ir para casa.

PdI 7005-B: Você é do Oeste?

Dra. Hartlepool: Do extremo oeste. A001. Mas eu acho que nós mudamos o nome quando conseguimos posse.

PdI 7005-B: Nós?

Dra. Hartlepool: A Funda- vocês tem uma Fundação aqui?

PdI 7005-B: Eu não sei o que é isso. Fundação para que?

Dra. Hartlepool: …Acredita que, eu na verdade não sei? Só a Fundação. A Fundação SCP, se você quer ser formal. Sempre foi meio vago.

PdI 7005-B: Bem, garota da Fundação, você está sempre bem vinda em meu fogo. Ele nunca para de queimar, sabia?

Dra. Hartlepool: Não sabia.

PdI 7005-B: Estive sentado aqui por tanto tempo. Nunca soube como sair.

Dra. Hartlepool: Deve ser ruim no verão.

PdI 7005-B: Sim. Suponho que seja.

Hartlepool inclina a cabeça confusamente. PdI 7005-B sorri.

PdI 7005-B: Então. Você quer saber sobre nosso mestre?

Dra. Hartlepool: Hm. Se… se ele não é um vírus, o que ele é?

PdI 7005-B: Ele é nossa salvação. Você sabe o que é uma cidade, Fundação?

Dra. Hartlepool: É uma conglomeração de pessoas em um lugar específico. O que acontece quando você começa a se especializar como uma sociedade…

PdI 7005-B: Continue.

Dra. Hartlepool: Pessoas se juntam pois, quando você começa a plantar coisas, tem o suficiente para que nem todos precisem plantar. Assim, eles podem fazer outras coisas, e geralmente fazem o melhor em contato próximo. Começa com templos, barracas, armazéns, e depois fica maior.

PdI 7005-B: Sim. Sim, fica. Fábricas, não é?

Dra. Hartlepool: Podem ser feitas mais coisas, muitas coisas, nos confins de edifícios enormes onde todos estão concentrados juntos. Sem mais indústrias pequenas fazendo tapetes – agora, uma única sala pode produzir dúzias, centenas todo dia. A cidade se torna um ponto focado em produção.

PdI 7005-B: Sim. E por assim vai. A cidade existe para se justificar.

Dra. Hartlepool: O que isso significa?

PdI 7005-B: Por que fazer essas coisas? Qual o objetivo final? Lucro? Isso seria muito fácil. A força da nação? Mas a nação continua de qualquer jeito. Não, a cidade existe por ela mesma, se propagando feito um sistema. As coisas que fazemos, nossas razões para levantar de manhã…. eles só caem. Você nãos ente isso?

Dra. Hartlepool: Faz tempo que não.

PdI 7005-B: Mas já sentiu, não? Todos já sentimos. É isso que as cidades fazem. Quando você percebe que não tem ponto para nada, a forma de como tudo se formou se torna mais, e mais, e mais insignificante. Até tudo o que sobrar ser a imagem da cidade. As estradas foram feitas por um motivo – velhos caminhos de gado, calçadas fáceis – mas esses param de importar. Você não vê eles. Não vê como os arranha-céus se levantam, e eles perdem função na sua cabeça.

Dra. Hartlepool: Eu não -

PdI 7005-B: A cidade se torna algo mais que uma função. É uma imagem. É mil ideias, circulando-a. Seus onde os pobres vivem e morrem, suas estradas de ladrões e mercadores. Fica muito grande. Você não vê mais a lógica. Ah, livros descrevem, mas você não vê. Você sabe que essa cidade é construída em um morro ou em um porto, mas quando você olha para cima, tem apenas mais dela, prédios fazendo trabalhos arcanos que você não entende, ninguém entende. Está apenas ali. É apenas mais dela.

PdI 7005-B se levanta, abrindo seus braços.

PdI 7005-B: Oh, mas não é bonito! Eu era pastor. Eu controlava rebanhos em adoração ao Senhor. Mas quando o brilho neon veio até mim, e eu vi que tudo que eu achava que era a realidade era apenas um monte de luzes, um monte de sons. E que luzes lindas elas são!

Nisso, luzes correspondendo ao horizonte de uma cidade se ligam em volta do depósito. Uma grande série de arranha-céus pode ser vista, completamente iluminados. A Dra. Hartlepool se levanta assustada, tropeçando para trás.

Dra. Hartlepool: Meu Deus…

PdI 7005-B: Sim! Aqui é um deles! Ele tomou este mundo há muito tempo! Somos tanto sangue e matéria!

PdI 7005-B remove seus óculos. No lugar de seus olhos estão dois faróis cobertos de sangue seco, que iluminam o chão em uma curta distância da Dra. Hartlepool. A Dra. Hartlepool rapidamente vai para trás de um trem, onde a luz não pode alcança-la.

Dra. Hartlepool: Meu Deus, meu -

PdI 7005-B: Você também é um dos nossos, Fundação! Vá! Vá para frente! Encontre ele, encontre ele no fim da linha! Ele te mostrará tudo o que ele sabe!

A Dra. Hartlepool corre para a porta de entrada para SCP-7005, cem metro a sua direita. Enquanto ela corre, outro par de faróis pode ser visto: atrás de trens, no topo de armazéns, em volta das ruinas. Eles parecem estar se movendo aleatoriamente, mas figuras humanoides podem ser vistas, no quais os faróis estão conectados da mesma maneira que PdI 7005-B.

A Dra. Hartlepool alcança a porta, e rapidamente sai. Risadas podem ser ouvidas atrás dela.

<Fim do Registro>

O registro a seguir é uma gravação de uma entrevista entre o Dr. Kells e O5-9.

<Começo do Registro>

Kells: Senhor.

O5-9: Kells. Como vai?

Kells: Nada a reclamar, senhor.

O5-9: Família está bem? Ainda vivos?

Kells: Ainda amnesticados e bem longe onde eu nunca poderei ver eles de novo, senhor, sim.

O5-9 ri.

O5-9: Não me culpe por isso. Tinha que ser feito.

Kells: Como quiser, senhor.

O5-9 suspira, e sinaliza para uma cadeira oposta à sua mesa.

O5-9: Ok. Sente-se, por favor.

Dr. Kells se senta. O5-9 se inclina para trás, olhando para o teto.

Kells: Senhor, eu gostaria de saber por que, após sete pedidos no último mês para um aumento de fundos e mão-de-obra, eu fui informado de que você está cortando nosso orçamento em dez porcento. Um décimo, senhor. Em pesquisa na mais importante descoberta já feita.

O5-9: Kells, você não é o único departamento que precisa de orçamento. Temos centenas – milhares, até – de ameaças potencialmente destruidoras do mundo no catálogo. Pesquisa é uma parte importante da forma de agir da Fundação, mas contenção continua sendo nossa -

Kells: Senhor, com todo o respeito, a Lampeter – SCP-7005 – contém um infinidade de anomalias, todas nas quais podem nos destruir dezenas de vezes. Contém exemplos de como nós, como a Fundação, defendeu qualquer ameaça que o senhor possa imaginar. Senhor, em tese, ele contém tudo. Eu dei a minha vida a essa organização. Temos aqui uma ferramenta que pode acabar com todos os nossos problemas, e o senhor só está ignorando-o!

Tem uma pausa de vários segundos enquanto O5-9 encara o Dr. Kells.

O5-9: Eu poderia te matar em um segundo, e você ainda me interrompe?

Kells: Você vai me matar, senhor?

O5-9 encara o Dr. Kells por vários segundos, antes de sorrir para ele.

O5-9: Não. Não vou. E acho que você sabia disso.

Kells: Então você vai -

O5-9: Você acha mesmo que nosso conselho foi tão ignorante sobre esse multiverso que você sugere?

Kells: Eu – não, mas nós -

O5-9: A Lampeter não é nossa única rota para lá, Kells. Se você visse o que eu vejo dos arquivos, as centenas de milhares de anomalias catalogadas – a Lampeter não é nada. É apenas outro caminho.

Kells: E – é por isso que você negou nos dar orçamento?

O5-9: Eu neguei te dar orçamento porque eu não me importo, Kells.

O5-9 suspira, e senta em sua cadeira.

O5-9: Sabe quantos de você eu já vi? Tem um Simon Kells que lutou com o Devorador, e morreu. Tem um Simon Kells que soltou uma tempestade em constante mudança no mundo, aniquilando linha do tempo após linha do tempo, para sempre, constantemente, criando realidades que nunca existiram. Tem um Simon Kells que passou um século se tornando um tirano, preso em uma guerra infinita com um monstro antigo, e um Simon Kells que se matou para que isso não acontecesse.

Kells: Eu não -

O5-9: Tem um Simon Kells que andou por uma terra morta para ver sua esposa, e um Simon Kells que quebrou o pescoço dela. Eu vi você queimar na luz de um sol morrendo para salvar a humanidade. Eu vi muitos como você, Kells, e você ainda não é nada além de um ponto no radar para mim.

Kells: Como isso é p-possível. Como pode dizer isso? Tudo isso -

O5-9: Importa? Você não entende? Tem que acontecer em algum lugar. Tudo acontece. Você não entende o que a Lampeter é, Kells? É um espelho, para você, para mim, que mostra como tudo o que somos é questão de sorte. Eu te dou dinheiro, eu retiro. Eu fico louco, eu mantenho minha sanidade. A agonia da escolha não é agonia nenhuma!

O5-9 ri histericamente. Kells se levanta, e se dirige para a porta.

O5-9: E você vai voltar para seu escritório, e sentar, encarando a tela, esperando a Rosie te mandar mais relatórios enquanto você está preso aqui, Kells! Ela vai ter mandar e mais e mais, e você pegará sua garrafa – eu talvez não pegue. Talvez você morra, talvez você viva, talvez, talvez, talvez, talvez…

Kells saí da sala.

Fim do Registro.

Registro Final por Dra. Hartlepool.

Estou escrevendo isso no último trem saindo daqui. Escrevo isso olhando para os murais, entalhados no teto do trem enquanto ele desfoca o gelo, o fogo, a selva – eu olho para cima, eu penso na minha irmã, penso no mundo antes de ela morrer.

Eu cheguei, finalmente, no Universo Z999, mais por eu não saber mais para onde ir. Eu emergi – em algum lugar. A costa da América do Sul, eu acho, mas a cidade está se espalhando até na água. Logo não terá mais muito do oceano.

Não tem pessoas. Nem os observadores. O sol não nasce mais. A água brilha, a os corpos de peixes mortos flutuam na superfície, desesperados, enjoativos, o cheiro de tantos cadáveres exalando deles.

Eu achei uma linha de trem, e fui para o sul. Os trens tinham anúncios neles, sem palavras, apenas imagens que não poderiam mais existir naquele mundo. Eles mudaram quando eu olhei para eles. Eu me perguntei por que eu não estou sendo afetada como os outros, mas não achei resposta.

A cidade queima, a cidade brilha. Colunas de fogo se levantavam das fábricas que não fabricavam nada. A cidade parece um microchip, construções estranhas sem propósito se levantando e caindo, de novo e de novo. Haviam becos sombrios e escritórios iluminados, indústrias e comoção. Mas ninguém vivia lá. Não conseguia descobrir o que fazer com eles.

Eu fui aonde a Peirant estava. Onde tudo começou, se o Titus Quaker deve ser confiado. Eu pensei, de primeira, que eu estava de volta no depósito de trens, com grandes carcaças de metal me rodeando. Parecia um ferro velho, um cemitério. Eu não sabia para onde olhar.

Foi então que eu vi as luzes neon.

Eles estavam espalhados em volta da estação, tubos distorcidos de metal, brilhando e piscando. Haviam centenas deles. Estavam pendurados nos tetos de edifícios, emergindo do asfalto das estradas. Eles se juntavam, seguindo linhas, padrões. Arranha-céus poluíam o céu em minha volta, e eu segui as luzes.

Haviam tantas cores. Vermelho, azul, roxo. Mas assim que eu me aproximei de um centro imaginário, elas se tornaram brancas. Amarelas. Tudo parecia amarelo naquela luz, aquela luz ardente. As ruas ficavam grandes e pequenas, se distorcendo em direções anormais. Os subúrbios estavam se tornando um labirinto.

Finalmente, nós paramos. E ali, onde tudo começou, eu vi o Deus Neon.

Uma parede, trinta metros de altura e quinze de largura, se projetando do chão como uma lâmina, uma estalagmite de aço. Nenhum som se ouvia – nem mesmo o vento. Como se ele estivesse se esforçando para ouvir algo. Por toda parte, as luzes amarelas se espalhavam, queimando pedaços de cimento como um cemitério.

As luzes estavam ligadas a parede, coladas irregularmente com metal e arame. Elas estavam organizadas em linhas e colunas. Eu não sabia o que era – uma tentativa de arte? Um aviso? Mas, não – eu percebi, finalmente, que era para ser escrita.

Era para ser uma mensagem. As luzes estavam tentando soletrar algo. Mas elas não sabiam o que eram letras, ou frases, ou o que uma palavra significa. Era um rabisco de símbolos que não existiam.

E acima de nós, não haviam estrelas. Não havia nada mais, no centro de toda a devastação, além dessas coisas. Essas luzes amarelas e observadoras, tentando ser algo e falhando.


Agora eu estou aqui de novo, em outro trem indo para fora da cidade, escrevendo essas palavras. Acima de mim estão imagens de homens e mulheres com martelos e cinzéis, entalhando um buraco em seu universo, atingindo o infinito.

Enquanto eu observava o mural, eu percebi uma coisa. John Lampeter estava errado. Delacroix estava errado. Os primeiros Lampeters não espalharam o Deus Neon pelas suas redes. Não era isso.

Eles estavam escapando dele.

A Lampeter – SCP-7005 – todo esse esforço, séculos de construção, visando, sonhando. A Lampeter, aquelas noites solitárias de chefes de estações em teleféricos, vulcões, estábulos, poços dos desejos, e tudo mais, enquanto eles olhavam para as estrelas que um dia, quando crianças, faziam eles acreditar que o infinito foi prometido a eles. Todos eles, motivados por algo mais do que simples carne e matéria.

A Lampeter é uma rota de escape. Foi construída sem esperança, sem projeção. Foi construída em um ato de desespero no escuro, enquanto o sofrimento tentava fugir, sair, se remover daquele vazio neon que estava logo atrás deles. E fazendo isso, a Lampeter permitiu com que bilhões vivessem suas vidas. Histórias inteiras, civilizações inteiras vivendo e morrendo. Quem liga para a sorte, quando se há vidas a serem vividas?

Não tem aço e vidro aqui. Ele não se move com o vento. Os murais entalhados, fortes e firmes, em suas próprias formas. Qualquer sorte ou chance que influenciou suas projeções, na enormidade de tudo, é irrelevante.

No dia que enterramos a minha irmã, estava ensolarado, e eu fugi da cidade. Peguei um trem, para longe daquele dia, enquanto o sol queimava e os aflitos se moviam gentilmente, onde nada fazia sentido. Eu peguei um trem para fora da cidade, me tornei Rosie Hartlepool, junta das folhas do outono. As maçãs que eu comia. O sol dourado atingindo a grama.

Eu tirei cinzéis de minhas mãos dormentes, e entalhei murais no ar. Eu entalhei eles em metal castanho avermelhado, e em linhas após linhas de trilhos de trem, como eu me levei embora. Eu estava diante do neon, seu coração amarelo e cintilante, e eu vi ele pelo o que ele realmente era.

Nem sequer nada.

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