O sentimento era de vergonha. Ele tinha certeza disso.
Uma nova onda de agonia afastou todos os pensamentos de sua mente, e ele lutou para se libertar com força selvagem e involuntária. Embora com o peso de seu irmão prendendo-o ao tapete, tudo o que aconteceu foi um espasmo momentâneo. "Se mexendo Herman," repreendeu Aloysius. Seu sorriso presunçoso era quase audível. "Fique quieto logo; você vai manchar de sangue o novo tapete turco da Mamãe."
Então você deveria ter esperado até que eu fosse até a cozinha, seu idiota, pensou Herman selvagemente, antes de buscar novamente o lugar quieto no centro de sua mente, o único lugar onde a dor não tocava. Ele poderia aturar isso. Ele poderia manter sua vontade concentrada e sair do outro lado disso com o suficiente de si mesmo para reconstruir. Mas isso era vergonhoso - humilhante! - ser tão facilmente superado, o fraco da família, fruto de sangue inferior e auto-indulgência da Mãe. Vicioso como era, o filho mais velho, Aloysius, ainda tinha um longo caminho a percorrer para alcançar a habilidade de sua mãe de esculpir a carne. Mesmo tendo finalmente dominado o truque favorito de Madame Fuller de paralisar a laringe para que a carne em questão não pudesse implorar por misericórdia. Ou discutir. Ou gritar.
Segundos se passaram como horas, as mãos frias de seu irmão mexendo no corte que ele abriu na base do pescoço de Herman. "Carótida, carótida… achei!" Ele estendeu a mão, beliscou algo entre o polegar e o indicador e, colocando a outra mão entre os ombros de Herman, começou a puxar.
Pensamentos foram varridos sob uma onda de dor. A mente chamada Herman Portunus Fuller era uma corda bamba em chamas, um fio esticado atravessando um oceano de carne sofredora, o silêncio rasgando em suas garras.
Depois de um minuto, ou um ano, ele voltou a si, piscando os olhos inchados de lágrimas, e respiro fundo algumas vezes, não querendo testar se sua voz funcionava ainda. Aloysius estava sentado ao lado dele, estilo acampamento, queixo apoiado em uma mão ensanguentada. "Bem, olhe só o que temos aqui. Funcionou. E você conseguiu não sujar o tapete afinal."
Herman juntou um bocado de saliva, trêmulo, erguendo-se sob um cotovelo. Ele ainda não tinha decidido se mirava no chão ou em seu irmão quando sentiu algo apertar em seu pescoço. Uma onda de escuridão momentaneamente nublou sua visão, o sorriso de prazer de Aloysius entrando e saindo de foco.
"Ah, isso funcionou perfeitamente! E é a sua própria pele ainda por cima, então com a gola levantada, ninguém vai notar a diferença! Vamos lá." Ele se levantou com um salto, se abaixando para arrastar Herman pelo braço. Herman afastou a mão, debilmente, e usou a perna de uma cadeira próxima para se erguer.
"Dói mais quando a Mamãe faz isso," ele rosnou, levantando-se com uma carranca, satisfeito por ouvir sua própria voz novamente. Mesmo que ela tenha falhado.
"Então por que você está chorando?"
"Fazer você se sentir melhor. Não gostaria que o menino de ouro da Mamãe ficasse desanimado."
Aloysius sorriu e virou-se para a porta da biblioteca, esperando que seu irmão o seguisse. Ele segurava o braço direito cuidadosamente perto do peito para evitar pingar sangue na tapeçaria.
Aos dezessete anos, Herman já era mais volumoso do que qualquer um de seus irmãos, embora a maior parte fosse músculo. Aloysius era esguio e perversamente rápido, e a esbelta Lucretia parecia flutuar em vez de andar. Mas músculos não eram muito úteis quando qualquer um dos membros de sua família podia deixá-lo fraco como um gatinho com um toque - compartilhar metade de seu sangue o tornava mais suscetível à magia, não menos.
Com um chute bem cronometrado, Herman bateu a porta da biblioteca contra o traseiro de seu irmão, fazendo o menino mais velho tropeçar em seus pés e cambalear sem graça até a parede oposta. Ele pegou um abridor de cartas da escrivaninha próxima, testando seu equilíbrio quando a porta se abriu novamente.
"Seu pequeno —" Seu irmão rosnou, e se virou para pegar uma lanterna encapuzada da parede, seus olhos semicerrando em concentração. Herman sentiu a extremidade contorcida do cabo em torno de seu pescoço rastejar para cima. O cabo puxou a pele sob sua mandíbula forçando sua boca a abrir.
Isso vai ser ruim, pensou ele, segurando a pequena lâmina.
Uma voz suave e melodiosa veio do corredor. "Garotos, que confusão é essa?"
Ambos os jovens congelaram. Eles cruzaram os olhos e, com expressões idênticas de cautela, cada um abaixou lentamente a arma improvisada que ele segurava.
"Muitas desculpas por tê-la incomodado, Mãe!" Gritou Aloysius. "Nós nos juntaremos a você logo!"
Apressadamente, eles verificaram se suas camisas estavam amarradas, os gibões abotoados e os cabelos alisados enquanto se dirigiam ao salão. A um gargarejo raivoso do menino mais novo, Aloysius balançou a mão, e o novo cabo de carne levantou dezenas de delicados apalpadores da pele que o ancorava e cuidadosamente se estabeleceu em seu local original. Herman rangeu os dentes experimentalmente e desejou um copo d'água. Ou, ele emendou, olhando para a parte de trás da cabeça loira de seu irmão, talvez um revólver.
O salão na frente da casa dava para a rua e era tão suntuosamente decorado quanto a biblioteca. Duas das cridas sentavam-se discretamente em um canto com uma cesta de remendos; os lampiões a gás ao longo da avenida haviam sido acesos para a noite, acrescentando forço ao sol poente de outono.
A Mãe ergueu os olhos de sua cadeira junto à lareira quando os meninos entraram; seu olhar era frio e pensativo. Lucretia, com as mangas farfalhando, deixou de lado o livro de poemas que estivera lendo, com um brilho de malícia nos olhos.
Isso, pensou Herman novamente, vai ser ruim.
Com um pequeno aceno, a Mãe reconheceu a presença deles, sua atenção no antebraço e queixo direito ensanguentados de Aloysius. "Onde vocês estavam brincando desta vez, meninos?"
"Na biblioteca, Mãe." Ela arqueou a sobrancelha e Aloysius acrescentou apressadamente: "Está tudo intacto, fomos muito cuidadosos.
"'Nós'?" Retrucou Herman. Lucretia levou as costas da mão sobre a boca, escondendo uma risada.
Madame Fuller endireitou-se na cadeira, olhando por cima do ombro para as criadas. "Sarah," disse ela calmamente. A jovem deixou o bordado de lado e se levantou, fazendo uma reverência. "Sim, senhora." Seus passos suaves rodearam os irmãos e ela saiu da sala, o rosto escuro composto, os olhos baixos.
"Agora, então. O que você tem para me mostrar?"
Sem dizer nada, Aloysius estendeu a mão e desamarrou o cordão que prendia a camisa do irmão. Herman fez uma carranca, mas não protestou. Afinal, ele não conseguiu impedir. E lutar agora só irritaria a mãe deles.
Lucritei saltou de seu assento e foi até os meninos, observando a modificação com interesse. Ela correu os dedos ao longo do cabo e o puxou experimentalmente. Apesar de tudo, Herman se encolheu, o que lhe rendeu um lampejo de sorriso. "Que pitoresco," exclamou ela. "É como uma pequena serpente! E isso," ela fechou os olhos e cheirou um momento, "isso é sangue arterial?"
"A carótida," respondeu Aloysius, esforçando-se par não parecer presunçoso. "De modo que, quando aperta, corta o fluxo sanguíneo para o cérebro, provocando um desmaio muito rapidamente."
Ele demonstrou isso. A escuridão nublou a visão de Herman e ele lutou para respirar, as mãos apertando a garganta. O som de um estrondo flutuou vagamente pela confusão e ele percebeu que tinha sido o som dele mesmo, caindo no chão.
"E você colocou isso do lado de fora?" O tom de Lucretia era levemente desdenhoso enquanto cutucava Herman com um dedo do pé revestido de seda. Mais uma vez, ele se levantou desajeitadamente. Ele desejou, e não pela primeira vez, ter conseguido pegar o jeito dos criados de impedir que o pavor e a rava assassina aparecessem em seus rostos.
Aloysius parecia perplexo. Por outro lado, Lucretia havia dominado a ate de colocar suas modificação não apenas dentro do corpo, mas de alguma forma em outro lugar vários anos antes, e adorava ajustar o orgulho de seu irmão mais velho. "Pensei," respondeu ele, "que poderíamos adaptar isso para uso geral. Talvez depois de… melhorar isso, como você descreve. Até mesmo os trabalhadores da fábrica poderiam se beneficiar desse tipo de motivação."
Madame Fuller suspirou. Ela sinalizou para que Lucretia voltasse para seu assento anterior no divã, e então cruzou as mãos no colo. "Eu aprecio seu entusiasmo, Aloysius, eu realmente aprecio. Mas eu me preocupe que as proteções desta caso o tenham tornado imprudente. Nós respondemos a ninguém além de nós mesmos, é claro, mas satisfazer-se de uma maneira que seja um desperdício de recursos cria vulnerabilidade. Um homem," sua voz ficou mais severa, "deve resolver seus próprios dilemas, deve pensar em seus planos antes de colocá-los em prática."
Sarah voltou, tão silenciosamente quanto havia saído, segurando um pano ensanguentado em uma das mãos. Madame Fuller olhou para ele franzindo a testa. "Onde?"
"Na lanterna do corredor, senhora. Em nenhum outro lugar." Ela ofereceu o trapo, que a senhora agarrou pela borda antes de se virar para jogá-lo no fogo. Com outra pequena reverência, Sarah voltou para seu assento o lado da cesta de remendos.
A boca de Aloysius se abriu em ricto silencioso, seu corpo estremecendo enquanto fiapos de fumaça subiam de seu rosto e mão, enquanto brasas acendiam e fumegavam em sua camisa salpicada. Sua mãe se levantou e caminhou até ele, passos pesados na sala silenciosa. Ela deu um tapinha no lado não marcado de seu rosto com uma mão branca e fina.
"Meu querido, doce menino. Eu valorizo você. Eu quero que você tenha sucesso, que você supere, e eu quero que você se lembre. Você tem poder. Você sempre terá inimigos, mesmo entre aqueles que o servem e temem. Não caia na armadilha de pensar que você está seguro. Ninguém está a salvo de nós - nem mesmo Deus, se cumprirmos nosso destino. Portanto, nós, por nossa vez, não podemos acreditar que estamos a salvo de ninguém, Você vai se lembrar?"
Tão rapidamente quanto começou, o calor se dissipou. Ofegando, Aloysius ergueu a mão rachada e cheia de bolhas diante do rosto, lutando para curá-la enquanto falava. "S-sim, Mãe. Obrigado, Mãe. Eu vou lembrar."
"Bom, meu filho, muito bom." Ela sorriu para ele e estendeu a mão para despentear seu cabelo. "E estou feliz em ver você experimentando novas técnicas."
Madame Fuller virou-se para Herman, seu sorriso assumindo um tom de pena enquanto ela o agarrava pelos ombros. "Meu pobre bebê. Você foi capaz de alterá-lo?"
Ele conseguiu não ranger os dentes. "Não, Mãe. Digo, eu não tinha - eu não tinha tentado ainda." Vergonha agitava-se em sua barriga. Vergonha que ela esperasse tão pouco dele e ainda assim ele a tivesse falhado. Ele tinha o talento, mas ele vinha a ele mais lentamente — ele precisava de tempo, ele precisava se concentrar para fazer funcionar. Violência física era muito mais fácil, e ele sabia que, desde que tivesse a vantagem da surpresa, poderia causar danos significativos. Não que isso importasse.
"Você sabe o alcance?" Lucretia meditou preguiçosamente, os dedos enrolando uma mecha de seu cabelo. "Se ele estivesse no porão, por exemplo, ou nos estábulos, ainda funcionaria?"
"Essa é uma excelente pergunta, minha filha. Vamos colocá-la à prova!"
Cavalos batiam e relinchavam na escuridão crescente. Herman esfregou as mãos, refletindo, como sempre fazia, que um cavalo bom e forte valia mais do que ele. Filho da casa ou não, se ele pegasse um e fugisse, seria por causa do cavalo que eles seriam seguidos.
Um aperto agora terrivelmente familiar em sua garganta trouxe Herman de volta ao presente, e ele olhou para cima. As cortinas se mexeram e ele reconheceu a silhueta do irmão na janela da cozinha. Desta vez, porém, Herman estava preparado e lutou contra a onda de desorientação para se concentrar na pequena cobra em volta de seu pescoço, no calor de seu sangue correndo por ela, desejando que seu aperto se soltasse.
Ela se soltou, só um pouco. Ele deu alguns passos para trás, inclinando-se para o portão do pátio. Ela se soltou um pouco mais. Passo a passo, como um camundongo avançando em direção à sua toca sob o olhar atento de um gato, Herman se esgueirou para a estrada.
Ele se virou e começou a andar pela rua sem pensar muito. Algo nele não gostava da ideia de voltar para casa. Aqui fora, o ar estava fresco, nuvens correndo sobre uma lua minguante na quietude da noite. Os transeuntes viam seu casco e chapéu finos e sua carranca estrondoso e, na maioria das vezes, se afastavam nervosamente, apesar de sua óbvia juventude. A deferência deles era um bálsamo para seu orgulho despedaçado.
Herman percebeu que poderia, se quisesse, simplesmente continuar andando com seus próprios pés. Nesse sentido, ele supôs que tinha sorte. Se um dos que sua mãe chamava de "inferiores" fugisse, com a cabeça cheia de segredos de família, eles provavelmente se encontrariam com Lucretia em uma rua solitária da meia-noite. Suas entranhas eram muito, muito maiores do que por fora, e ele não tinha o menor desejo de saber quantas coisas que um dia foram pessoas ela já coletara lá. E, além disso, ele tinha que ser discreto, para sua própria proteção. Aqueles que se alimentavam do poder de Yaldabaoth tinham muitos inimigos, é claro, mas qualquer uma das famílias rivais que estivesse se deslocando para o norte e leste após a guerra adoraria colocar as mãos até mesmo no menor dos descendentes de sua mãe. E se chegasse a isso, se ele se deixasse ser capturado — ela jamais o perdoaria.
Seus pensamentos o levaram além do bairro mais rico onde ficava a casa dos Fuller, passando por uma fileira de casas mais modestas, até o pé de uma ponte que lavava às fábricas do outro lado do rio.
A luz refletida das lanternas tremeluzia na água, e Herman semicerrou os olhos para o longo. Alguém tinha montado… uma barraca? Em um terreno acidentado próximo a uma das docas. A curiosidade acelerou seus passos pela ponte.
Era mesmo uma barraca. Dois jovens, não muito mais velhos do que ele, estavam parados na entrada, mas estavam muito concentrados no que estava acontecendo lá dentro para prestar muita atenção a Herman. A voz de um homem ergueu-se sobre o murmúrio da multidão.
"Que louvor é suficiente para tal dom? Que glória podemos, em nossa miséria, conceder Àquele que derrama Sua glória sobre nós?" O murmúrio se elevou em aprovação.
Herman deu um passo à frente, os lábios se brindo com fascinação. Sua família frequentava os cultos da igreja todos os domingos - nenhuma pessoa de sua posição social podia evitar isso. Mas aqueles eram rituais mortalmente monótonos, formulados, lançados inteiramente na sombra pelas práticas sangrentas e muito mais potentes com as quais os Fullers extraíam poder da vastidão crua e ondulante que eles chamavam de Deus. Um dos meninos na entrada sorriu para Herman de forma encorajante e levantou a aba da barraca, então junto com os chamados do pregador e as respostas da multidão, o cheiro da multidão humana flutuou ao seu encontro - respiração, suor e feromônios.
"O poder do sangue é a misericórdia do Senhor."
"AMÉM."
"O poder do sangue é a misericórdia do Todo-Poderoso!"
"AMÉM!"
"Eu repito, eu não consigo te ouvir, eu disse que o PODER do sangue é a MISERICÓRDIA de nosso Senhor Jesus!"
"AMÉM!!!"
Seu talento para esculpe podia ser vergonhosamente inadequado, mas o nariz de Herman era quase tão bom quanto o de sua irmã. O ar aquecido pelos corpos da tenda de avivamento rodava com uma profusão de emoções, vazando pelos poros da congregação - eles eram animais famintos, ansiosos, desesperados, tesudos, solitários, imundos. Mas neste momento, arrebatados pelas palavras do pregador, neste momento, quase nenhum deles tinha medo.
Seu mundo sempre girara em um eixo de medo. Medo da dor que ele já havia suportado, e medo da dor que ainda estava por vir. Mas se alguém detinha o poder de tirar o medo de uma pessoa - oferecer a isca irresistível de esperança e misericórdia - não iria esse alguém, com a mesma certeza, se revelar o mestre de seu medo? Aquele que eles seguiriam e obedeceriam?
O pensamento o atingiu como um raio. Por um longo momento, Herman ficou parado, boquiaberto, um sorriso ridículo se espalhando por seu rosto. O outro garoto que havia levantado a aba da tenda avançou para lhe dar um tapinha no ombro em saudação amigável, confundindo sua revelação com fervor religioso.
Aqui, finalmente, estava um poder ao qual até mesmo homens comuns, cuja herança não lhes conferia talentos secretos, tinham acesso. Isso, disse Herman a si mesmo, ISSO é magia que posso fazer.
Endireitando os ombros, Herman entrou.